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sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Conta de Sebastian

 


Convidaram Sebastiana para dançar um xaxado na Paraíba... Tocava no rádio. Sebastian não tocava guitarra. Tocava bodes. E tinha um bode bem na sua sala: mudara da chácara para a cidade. Resolveram que a melhor coisa que podiam fazer era afogar seu vilarejo.

Resolveram assim do nada. Não perguntaram ninguém. Não fizeram um plebiscito. Chegaram a conclusão de que faltava energia lá no sul e que tinham que fazer uma usina no seu estado que por assim dizer já produzia umas dez vezes a energia que consumia.

Não deu muito tempo de vender seus cinco bodes. Teve que soltar dois no mato e torcer pra não se afogar. Três vendeu para um restaurante da capital que é pra onde desgostosamente foi.  As galinhas foi tudo numa galinhada pra despedir dos vizinhos antes de todos terem que capar o gato. Expressão infeliz de quem nunca teve que capar um gato.

O arroz foi da mercearia do Seu Zé, que na verdade chamava Dêmocles, mas era mais fácil chamar de Zé mesmo. As mercadorias que tinham prazo ele revendeu a preço de custo para uns supermercados da capital. O arroz que estava vencendo foi todo pra galinhada. Por sorte Sebastian tinha muitas galinhas.

Sebastian ia morar na Vila da Investco. Mas decidiu que não ia entrar em acordo com a empresa não. Afogaram seu bongô. Isso era inaceitável! Sua cachorra foi ficando doente a medida que chegava o tempo do alagamento. Morreu um dia antes. Era uma espécie de anuncio da tragedia.

A cadela foi perdendo os pelos. Já tinha muitas falhas. Perdeu os dentes também aos poucos. Ficou banguela antes de ficar sem pelos. Era de dá dó, mas não era um caso isolado. Muitos caninos perderam parte dos pelos ou dos dentes ao internalizar a angustia de seus donos. Mas nenhum outro ficou careca e banguela como a Esperança, cadela de Sebastian.

Nunca ia perdoar aquele povo da usina e aqueles políticos por terem feito aquilo. Afogar o povoado era suma maldade. Tirar um povo que vivia lá há muito mais tempo que o pessoal da capital pra umas empresas ter energia pra fabricar cimento, moldar aço... era um absurdo. Acabar com um dos luares mais lindos do mundo pra ligar lâmpadas num galpão de fábrica...

Era revoltante aquilo. O bode estava na sala. Ninguém podia explicar aquilo. Ficou abestalhado como os entreguistas haviam conseguido se reeleger. Mas dinheiro compra tudo, até dignidade. Até a ponte que atravessa o lago que afogou sua localidade ganhou o nome do presidente que soltou dinheiro (verba federal) para construí-la e depois tiraram o nome pra pôr o do governador da época.

Mas bode na sala não chateia tocantinense. Até a sede da FIETO (Federação das Indústrias do Tocantins) tem o nome do presidente da CNI (Confederação Nacional das Indústrias) que liberou o dinheiro pra construí-la. Só mesmo Sebastian é que tinha um bode chifrudo na sala. Que incomodava por demais.

Essa é a história do bode, quer dizer do Sebastian. Não boto nem a canela dentro d’água pra continuar a contá-la. Não acredito em destino, mas parece obvio que tem uns, que não importa a situação, sempre vencem. Sebastian não é um deles. Nem eu. E, provavelmente nem você.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Conto de Rafael


 

Rafael não era um anjo. Mas parecia. Um anjo trincado. Daqueles de porcelana com uns poucos cacos faltando. Voava em seu skate com extrema elegância. Exibia seus arranhões e roxos como cicatrizes de guerra. Dificilmente batia no chão ou na parede. Mas quando chocava... não era só um galo, só umas escoriações, alguns calos e joanetes.

Usava sempre seu velho tênis acolchoado dentro com algodão e penas. Até mesmo joelheiras e cotoveleiras tinham suas proteções extras. Capacete sempre usava. Por um bom tempo usou até protetor de pescoço. As asas, nunca protegeu. Vai ver que é por isso que não se viam. Sei lá se não tinha mais. Ou se ficou só um potoco.

Gostava de viver aventuras. Voar alto. Alcançar velocidades inéditas para ele. Não daqueles de extrema técnica que faziam os lances com aparente naturalidade. O que fazia era por instinto. Acreditava piamente que cada manobra era possível, ia acontecer. Não as fazia pra enfeitar movimentos. So as fazia porque era necessário para se mover na velocidade desejada. Porque precisava voar. Tinha que desviar de algo ou de alguém.

Se deslocava de casa para o trabalho, do trabalho pra casa no velho skate remoldado várias vezes. Seria um paradoxo de Teseu se Rafael entendesse de mitologia grega ou de paradoxos. Shape várias vezes refeito. Rodas constantemente trocadas. Amortecedor constantemente refeito e aperfeiçoado. A pintura trocava constantemente de acordo com sua vibe. Nem tanto assim. Mas digamos, a cada quatro ou cinco meses.

No trabalho usava uma moto para sair por aí pegando, pagando, distribuindo documentos. Era motoboy. Queria ser skateboy, mas não dava. Mas mesmo assim levava o skate consigo. Se tivesse uma brechinha para usá-lo... Também tinha medo de alguém pegar e estragar sua prancha sobre rodas.

Quando sobrava um tempinho no fim de semana pintava seus quadros. Não era lá uma Capela Sistina, mas... pintava até bem. Não era um De Sanzio. Mas tinha suas desproporções nada arbitrarias. Um quadro seu foi arrematado por milhões num leilão. Tanto o leiloeiro quanto o comprador confundiram o autor. Depois ficaram com vergonha de demonstrar a ignorância. Foi a única vez que vendeu um quadro seu. Passou a pintar para si mesmo e para encomendas. Mas toda vez que vinham pechinchar ele ficava ofendido. Daí vociferava sua frase: “Vai. Leva essa merda!”.

No tempo que não sobrava estava a cultivar o jardim do vizinho do fundo. Por uma dessas infelicidades urbanas sua casa não tinha nem quintal, nem varanda. Passava por um corredor exíguo  à esquerda ou direita das casas toda madrugada e alta noite pra regar as bromélias, lírios e alfazemas plantadas. Elas perfumavam seu sono. Sonhava.

Bom deixa sonhar. Não vou atrapalhar os sonhos. É hora de terminar.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Antônio e a vida

 


Antônio via a vida. Corria em suas vias suave suco. Bombado ora violentamente, ora compassado. Antônio não pensava nisso. Como eu disse, ele via a vida. A vida floria. A vida secava. A vida se desdobrava. A vida não era um rio. Não tem leito. A vida não tem pulsação. A vida tem ciclos? Tem revolução? Digo: tem frequência?

Antônio observava. Os cenários se desdobravam. Mas tem lógica? Era caos absoluto ou a ordem não foi descoberta? A vida seria um teatro? Uma peça sobre a guerra ou a guerra mesmo? Uma tragédia ou uma comédia? Somos todos atores? O enredo já está escrito? Os gregos ou Espinosa estão certos? Existe destino? Ou existe um livre-arbítrio individual que no conjunto, na soma das forças não altera a providência?

A vida vai passar e Antônio não. Antônio vai ficar em algum ponto. Vai virar esterco ou cinza. No final, Antônio passa e a vida não. A vida é que observa Antônio.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Conto de Queila


 

O que diria Queila? É sempre uma boa pergunta que teria sempre uma resposta inesperada. Queila certamente diria algo que não desejasse dizer. Não pra agradar ninguém. O que, aliás, não agradava. Tinha sempre aquela resposta a uma pergunta não feita disfarçada de má compreensão da pergunta feita. Era como se fosse um exercício de contorcer, torturar as palavras, desfazer rimas e colocar farinha na areia.

Foi assessora da câmara municipal por muito tempo. Sempre deixava todo mundo insatisfeito. Não comprometia os vereadores, mas também não os defendia. Ah! Então ela se limitava aos fatos? Longe disso! Seu discurso até tinha alguma veracidade, mas fato era o que menos tinha ali.

Tudo pra ela era um causo onde em nome de ilustrar a história retirava todos os fatos, as narrativas centrais e amarrava uma serie fuxicos marginais de modo a dar uma interpretação mais justa às coisas. No meio da conversa deslocava uma ou duas rimas de lugar de modo a tirar todo o ritmo da conversa.

Ninguém era mais atenta às seções pra que nenhum fato saísse sem o seu floreio. Bom floreio é uma péssima palavra porque se tivesse qualquer gramínea ali o que ela fazia era passar um dessecante. Tornava tudo aquilo ali desinteressante para quem não tivesse paciência para minerar as histórias. Transformar minutos de conversa em um ano de constatações ao apurar todas as pistas deixadas.

Queila precisava ser compreendida. Quase ninguém a compreendia. Sobretudo os vereadores e funcionários graduados da casa. Se a compreendessem seria sumariamente demitida por vazar tantos indícios. O grande problema é que ninguém tinha um on. Precisava cavoucar os indícios pra achar os fatos denunciados. Quando perguntavam a um vereador não podiam dizer de onde tiraram e muitas vezes estes se indignavam, diziam que é um absurdo e retoricamente perguntavam de onde teriam tirado aquelas perguntas absurdas, aquelas blasfêmias, injurias e difamações.

Certa vez, no meio da conversa, disse que os funcionários de uns vereadores tinham uns meses que não recebia os salários integrais. Uns dias depois que o partido de um tal vereador estava com muito dinheiro pra campanha. Outra oportunidade que outro tinha comprado um barco enorme. Se tivessem perguntado a ela se alguns vereadores estariam desviando dinheiro dos funcionários ela diria que não poderia afirmar, não tinha como saber disso.

Ela só repassava as conversas da câmara. Nada além disso. Sem nenhuma intenção por traz. Apesar de dizer que ninguém ali era ingênuo. Ninguém. Sempre tinha desdobramentos. Toda fala. Ela mesmo não falava mal de ninguém. So repassava o que essas pessoas maldosas falavam pras pessoas saberem como são as coisas. Se tinha uma coisa que odiava era fofoca.

Essa é a Queila que só não era sincera porque é perigoso. Se fosse sincera ninguém suportaria ela, segundo ela mesma não cansava de dizer. Dizia que mentia, mas mentia só pra se defender porque as verdades são muito agressivas. Fiquei com medo! Tchau! Hora de terminar esse relato...

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Conto da Pâmela


 

Pamela acordou aquele dia com os olhos melados. Coisa estranha isso! Todo dia tinha que levantar da cama e correr pra fila do banheiro pra poder ver alguma coisa. Depois de lavar o rosto, ou mais especificamente os olhos, voltava pro quarto a enxergar vultos pra pegar seus óculos fundo de garrafa que usaria por pouco tempo.

Ainda sofria os efeitos da operação na vista que fizera pra diminuir sua hipermetropia de periclitante para alta. Foi uma coisa mesmo de pressa porque com o tempo e o aumento natural da miopia sua visão tenderia a melhorar. Tinha dificuldade de atravessar avenidas muito largas. Conseguia ler com dificuldade até sem óculos. Estava trocando um pouco de um por outro com o tempo, mas uma troca muito injusta que dificilmente lhe ajudaria a ver de longe e ia lhe tirando a visão de perto.

Pegava o ônibus do outro lado da rua ou no meio da rua. Não conseguia perceber esses detalhes. O que percebia é que era um flagelo chegar lá. Difícil perceber se estavam lhe sacaneando quando perguntava que ônibus era antes de entrar. Já pegara muitos ônibus errados porque alguém decidia dificultar sua vida. Tinha que por a cabeça na janela para parar no ponto certo, ver a placa bem de perto.

Chegava no banco e passava a vassoura por todo o lugar porque não conseguia enxergar onde estava sujo. Então era uma espécie de esquadrinhamento para passar a vassoura por todo lugar. Quando derramava alguma coisa no chão era um desespero. Tinha que passar pano molhado com convicção tentando perceber pelos outros se estava limpando o lugar certo.

Mas a maior parte do tempo estava lá na cantina ou na compensação fingindo fazer alguma coisa pra escapar de ter que agir de improviso e perceberem a sua condição. Faltavam ainda cinco anos pra aposentar embora tivesse contribuído por mais de quarenta anos. Daqui cinco anos talvez enxergasse muito melhor e estaria aposentada.

Talvez saísse pelo mundo pra ver as coisas que nunca viu. Talvez refizesse seu cotidiano caminho só pra enxergá-lo. Talvez descansasse sua vista num tricô ou croché. Ou pelo contrário cansasse. Talvez fosse a praia pra enxergar a areia. O mar já estava cansada de ver. Talvez, talvez fosse uma possibilidade.

Pamela via muito futuro nisso. Enxergar melhor fora sempre seu sonho. Isso se a catarata não viesse e enublasse sua visão novamente. Isso se a presbiopia antecedesse o aumento da miopia. Bom... pelo menos tinha essa visão, esse futurismo, esse sonho. Vamos ver...

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

A arte



Estava no meio da selva. Era uma formiga em seu próprio jardim. Ervas daninhas não incomodavam. Ele próprio se reconhecia como uma. Sugara o conhecimento de todos os sábios que conhecera. Uns dois ou três. De todo modo era um ser perdido numa amplitude infindável. Era um camelo perdido no deserto, longe de qualquer oásis. Ou não, perto da foz do Nilo.

Era um ser humano qualquer, nem mais, nem menos privilegiado. Apenas plenamente consciente. Apavoradamente consciente. Um pingo de ordem num oceano de caos, poderiam dizer. Mas era um pingo de caos mergulhado em infinitas outras desordens. Percebia que nada daquilo poderia ser racionalizado. Não adiantava ir com a corrente ou contra a corrente. Aquilo estava mais para um redemoinho.

Pensando bem, redemoinho tem uma ordem. A vida real não tem nenhuma. Saber disso é muito fácil. Ter consciência disso é desesperador. Sabia que ser cínico era impossível. Era possível a ilusão da hipocrisia. Era preciso se alienar. Fingir existir alguma ordem mesmo que grupal, comunitária ou só individual.

Saber desse pouco impediria qualquer um de viver, sabia. As pessoas alienavam a própria alienação. Viver era um apesar de todo o resto das coisas. Consciente ela sublimava suas verdades pintando, escrevendo... fazendo o possível. Pois sabia que só a arte pode expressar a realidade em forma de ficção. Ou essa ficção chamada de realidade só pode ser retratada pela arte.

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Conto da Ofélia

 


O que dizer de Ofélia? Estaria ela numa opera? Ofélia diz de si mesma e basta: “eu sou o que sou. Nada mais!”. Na estante da sala reluzia o clássico Cozinha de Ofélia. Comprou mesmo antes de quitar seu apartamento pra ter uma ideia de como seria sua cozinha. O livro era de culinária. Nunca o leu.

Ofélia passava o dia na rua. Vendia de tudo: perfumes, bijuterias, prata, joias e ouro. De vez em quando vendia um lote. Se virava pra conseguir um dinheirinho. De pouco em pouco tocava a vida. Não dava pra almoçar no Jockey Clube todo dia, mas podia ir umas três vezes por semana lá se quisesse. Não dava tempo. Estava sempre daqui pra lá, de lá pra cá.

As vezes não dava tempo nem de almoçar. Sorte quando marcava de almoçar com algum cliente. Algumas vezes pagava um almoço numa conversa que não ia dar em nada só pra almoçar. Mas era difícil ter esse tempo. Se deslocar de um lado pro outro era essencial. Era preciso recolher cada peça do quebra-cabeça do mês, cada moeda pra fechar as contas. E se possível juntar um pouco mais.

Fruto desse vai e vem conhece o centro como ninguém. Talvez menos só que os ambulantes. Os bairros novos melhor que quase todo mundo por vender lotes sempre que possível. Não conseguiu adentrar nos feudos das concessionárias, mas no das imobiliárias de vez em quando lhe sobrava algum. É um dinheiro que garante mais tempo, dizia.

Quando vendia algum lote, o que vendesse era um algo a mais por algum tempo. Mas lote não era algo que conseguia pra vender todo mês. Vivia mais do varejo de perfumes e joias. As vezes algumas bijuterias. O que vendia era um almoço ou café da manhã garantido. Em algumas oportunidades fazia uma venda maior no varejo. Ganhava um pouco mais que pra sobrevivência imediata. Mas era uma vida incerta: hoje tinha um pouquinho mais, amanhã só pra uma refeição.

Não tinha um plano de saúde. Não tinha uma regularidade de dinheiro pra isto. Mas já fez checkup nos mais famosos hospitais quando tinha dinheiro. Com exceção da casa, comprava tudo a vista quando tinha dinheiro. Sabia que tinha, mas daqui a pouco não voltaria a ter. Gastava o absolutamente necessário. Já tinha se acostumado com essa gangorra na sua vida. Geralmente tinha o necessário, mas algumas horas tinha muito, outras não tinha nada.

Teria sido uma excelente especuladora financeira pelo sangue-frio, quase indiferença com a situação financeira. Saberia comprar os ativos que iriam se valorizar e não se afligir com a inicial queda de preço.  Embora sua especialidade não seja comprar e sim vender. Mas essa é uma conjectura que cabe na história. Pois não, essa é Ofélia.

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Luxúria



Quisera fazer uma viagem. Partir de onde desejava e chegar onde estava. Não seria uma viagem longa, mas custosa. Enfrentar o percurso talvez fosse uma vida. Ou a capa dela. Não haveria vida nenhuma. Só duro trabalho consigo mesmo. Constante reflexão sem espelhos. Ou melhor com um espelho projetando ora a imagem de si ideal, ora real.

Procurou parque de diversões. Todos fechados. Aquilo era nada divertido. Uma casa de espelhos seria talvez uma boa música, não um bom parâmetro. Precisava meditar, mas não com mantras preestabelecidos, mas construir suas próprias meditações. Criar uma consciência. Procurar uma essência, embora esta não exista, seja um ideal.

A viagem estaria floreada de paisagens belas, seda perfumada, mas sabe criaria pântanos infernais pelo caminho. Nestes sabe que aprenderia. Nos campos floridos descansaria. Então desejava desafios. Embora lhe fossem bem custosos e o desgastassem bastante. E, sobretudo, era muito desagradável. As saídas e fugas sim, eram muito reconfortantes. Sabia que não podia viver a vida no infortúnio, mas era o preço de aprender.

Não esperava recompensa pelos desafios. Sabia que eles nada lhe acrescentavam. Suas soluções sim, simbolicamente. Tinha uma enganosa sensação de vitória. Mas só era conduzido ao novo problema. Que solucionado revelava o próximo. Entremeado a isso viu flores, sentiu perfumes, sentiu a pele, o pelo, o osso. Deitou na grama em luxuria do contato com terra, agua e ar.

terça-feira, 25 de novembro de 2025

Sobre Queila e o anarquismo

 


Asseveram que Queila atravessou sete estradas. Eu não duvidaria se o seu corpo não estivesse sempre quente. Se o terreno não fosse tão inóspito. Atravessar um deserto na beira do mar é quase impossível. Mas quem construiu sete estradas no Atacama. Alguma dessas construtoras falidas brasileiras? A Mendes Júnior não foi porque ela faliu no Iraque. A Odebrecht se inviabilizou na Operação Lavajato.

Há um histórico de empreiteiras brasileiras ganharem notória experiencia, juntar títulos que permitem fazer qualquer obra em qualquer lugar do mundo e, condições adversas inesperadas as levarem a falência. O que não acontece com empreiteiras chinesas, americanas ou italianas.

Bom... não importam as empreiteiras. Falamos de Queila, a sobrevivente. É notório que Queila andou muitas trilhas. Talvez tivesse escalado muitos morros. Romper serras não lhe seja impossível. Mas andar centenas de quilômetros entre os Andes e o Pacífico no deserto mais seco do planeta Terra? Sim, Queila faria isso. Não com tranquilidade. Porque é uma tarefa que não deixa ninguém tranquilo.

Dizem que bebeu seu colete com gelo durante o caminho. Queila disse que deixou quase tudo pro final. Isso é difícil descobrir com todo mundo variando com aquela temperatura e sol escaldante. O que se pode dizer é que não foi integralmente bebido. Será que fizeram as sete estradas só pra Queila atravessar? Pouco provável. Umas três ou quatro estradas é possível que tenha atravessado.

Queila sempre manteve sua pulsação levemente abaixo do normal. O fazia para manter a tranquilidade. Efeito disso suava com maior intensidade e quem tocasse sua pele acreditaria que ela estava febril. Ela dizia que nada disso. Era uma mulher quente. Disso eu não sei. Intrigada por desafios com certeza. Se impunha desafios. Queria sempre superar dentro do que ela acreditava ser seguro.

Era hora de voltar pra uma bacia hidrotermal e passar uma quinzena ou mês relaxando pra depois planejar com cuidado o resto do ano o desafio do ano vindouro. Enquanto isso corria seus quilômetros diários e reforçava a musculatura para estar pronta para o que desejasse. Era uma linda morena que pela atividade interditava os menos atrevidos, (homens ou mulheres) os que tinham chances, e demolia os pretensiosos ou pretensiosas. Afinal ela sempre gostou de desafios. Timidez é um belo desafio.

Já nadara no Amazonas e no Nilo. Já subira o Everest e o K2. Nunca correu uma ultramaratona porque ela sempre achou que é muito mais exibição que desafio com toda a estrutura disponível. Já foi correspondente de guerra, mas não dessas guerras midiáticas em que você está minimamente protegida no front e sim de guerras na África e guerrilhas na América Latina quando tinha. Agora pensava em passar três meses no partido anarquista sem ser expulsa, o que seria um recorde três meses maior que o recorde anterior.

Tá bom... eu até acredito em atravessar sete estradas e sete cachoeiras no deserto de Atacama. Mas alguém que ficou mais de um dia filiado a um partido anarquista legitimo, melhor acreditar em São Jorge na Lua ou uma tripulação respirando oxigênio em Marte sem mascaras. Aliás um partido anarquista é uma contradição. Legitimidade disso é outra. Bakunin e Malatesta nunca se filiariam a mesma organização. Queila não quer saber disso. Vai pensar em outro desafio. Ano que vem saberemos.

domingo, 23 de novembro de 2025

As briófitas e o surfista

 


Dizem que nascera por ali mesmo entre Cejana e Trajano. Talvez numa praia quase deserta. Não sei se Cejana e Trajano são vilas de pescadores de Alagoas ou Sergipe. Ou se seriam os progenitores dele. Ignoro se em Alagoas, Sergipe ou Pernambuco ainda existem praias inexploradas ou quase isso.

   O importante é que fora bem recebido por aqueles franceses radicados na foz do Rio Negro. Quase nunca frequentara uma praia. Uma vez foi a Salinas. Mas achou a agua muito salgada. A areia ele achou muito agradável. Entretanto aqueles filhotes brancos de urubus sempre vomitando de medo das pessoas lhe embrulhavam o estômago.

Desde cedo aprendeu a nadar contra e a favor da correnteza. A nadar como qualquer ribeirinho. Aprendeu a conhecer todas as briófitas. Conhecer os seus usos e o perigo deles. O casal que o adotou eram botânicos. Tinham as angiospermas e as gimnospermas, mas ele gostava mesmo dos fungos e seus parentes.

Quando tinha um dinheirinho ia passear em Manaus.  Era uma espécie de faz tudo. Era pescador, fabricante de canoas, pesquisador de briófitas, guia turístico para as raras visitas na região. Costumava ir a Manaus. Mas já tinha ido umas duas vezes a Belém. Uma vez guiou uma visita de um surfista ao encontro do Amazonas com o mar. O turista o desafiou a surfar a pororoca. Ele surfou como se fosse de sua natureza. Nunca tinha surfado e nunca mais surfou. Mas o fez tão bem que passou a ser conhecido como o surfista de pororocas.

Talvez por comedimento, talvez por se interessar mesmo por briófitas, por mais que insistissem nunca mais surfou, nem ondas, nem pororocas. O que o fez se tornar uma lenda. Quem viu, viu. Quem não viu, acredita ou duvida. O que só aumenta sua lenda.

sábado, 22 de novembro de 2025

Da praia à montanha

“Armei a rede. Fiquei um tanto ressabiado de usar. Os peixes não ligaram pra isso. Nenhum me disse nada”, gritava desesperadamente Amanda. Eu nem ouvi. Estava a duas praias dali. Fiquei sabendo das más, aliás, péssimas línguas. Não confiei. Não porque eram, provavelmente, fofocas. Mas porque não acredito em notícias. Tá bom, não é que não acredito, mas que confio desconfiando.

Pulei dois córregos. Tudo bem, dois regos, e cochichei: Amanda vem cá. Me conta do seu passeio. Amanda começou: “tio, sabe aquela rede que deixa a gente quadriculado? Levei pro passeio e um cara pegou emprestado pra usar na canoa”. Me senti muito enredado pela narração/descrição.

Decidi sentar no toco e puxar a criança: vem cá, Amanda. Me conta mais! O Dasenhor prefere a descrição algébrica ou a geométrica? Menina, para de racionalismos. Me descreve geograficamente as coisas. Se não se sentir à vontade, pode descrever filologicamente. Ah, tio, para de sandices e me escuta... a praia era de uma areia que esfolia a gente e você tem que andar quase sempre de costas pro mar.

O mar rumina uma melodia bem compassada de três tons: baixa, alta e depois média. Parece um ritmo hipnótico, mas muito mais sereno que tecno. Não é batidão. É mais uma flauta em três tons. O oceano dá pra entrar de costas e é muito sereno, de ondas muito pouco frequentes e baixas. Uma água muito morna e salgada.

À meia-noite dizem que um peixe sai da água e canta uma ária muito própria em tons muito altos. Sua cauda brilhante serve de holofote para destaca-lo num “palco”. Mas isso tudo é mentira que eu criei na minha cabeça agora, disse-me Mariana. Tá bem, Amanda. Fiquei encantado com tua história, Amanda Mariana. Boa Noite! Vai dormir que amanhã tu vai me contar tudo de novo só que numa montanha.

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Conto de Nanda



 

Nanda, Nandinha, digo Fernanda. Não a Montenegro, nem a Torres, nem a Lima. Não era uma Meireles também. Não era economista, nem milionária. Era tampouco uma Souza. Silva. Sim, Silva era seu sobrenome. Fez muita cena quando criança pequena. Agora tentava economizar algum. Não por nada. Tinha ficado adulta e como por maldição as contas começaram a bater em sua porta e sem cerimonia invadir sua casa. Sim. Ainda tinha uma. Não sabia por quanto tempo.

Nada de especial. Só a Serasa Experian querendo fazer parte da sua vida. Sabe quando toca um tambor e você se empolga com o ritmo... pois é... chegando a idade adulta você é obrigado a aprender a rebolar. Quando você não tem gingado você sofre. Se a escola passar com o seu enredo e você conseguir evoluir adequadamente no conjunto corre o risco de não ser convidado na próxima.

Nandinha fazia seus bolos. E dava bolo em todos os compromissos possíveis. Menos nos que podia vender seus bolos. Fazer um dinheirinho pra poder cozinhar o próximo. Cozinhar os credores pra ver se podem receber na semana que vem. Ver se os fornecedores podem colocar algo no caderninho pro mês que vem.

Desajeitadamente evoluía pela pista se desviando dos perigos. “Eu posso pagar com um bolo? Olha! Eu faço um bolo muito bom!” tentava Nanda as vezes. “O aniversário da sua filha tá chegando, né. Deixa que eu faço o bolo e os docinhos” propunha. Infelizmente, mais dava bolos que vendia. Quem recebia os bolos não era agradecido.

Chegou a pedir pra um primo espalhar uns papeis pela rua. Não literalmente jogar na rua. Distribuir pros pedestres e motoristas. Mas o destino foi a rua mesmo. Teve que interromper a operação pra não ficar com fama de porca além de caloteira. Tudo muito injusto! Se pudesse pagar, pagaria tudo antecipado pra não ficarem lhe cobrando. Se não precisasse de alguma divulgação não teria proposto propaganda.

Sua vida mesmo era dar e vender bolos. Mais dar que vender. Uns dias da semana fazia faxina numas madames lá de um condomínio. Chegava cedo e saia de tardezinha da casa da contratante. Não recebia nenhum cafezinho. As patroas acham que intervalo na limpeza é improdutivo. Saía umas quatro da tarde do cercado chique e ia comer uma quentinha no bar lá perto e limpar a goela com um gole de caninha.

Entrava se esgueirando pela vida pra não passar pelo mercado que tinha prometido pagar ontem, mas só pagaria amanhã se vendesse um bolo hoje pra completar o dinheiro. Se vendesse, beleza! Ninguém dava cano. Se dava era só por uns minutos, no máximo um dia.

Essa era sua vida agora. Que saudade de quando era gari como Marianna na sua vila natal! Ganhava uma miséria. Sua rua era fedida. Descontavam de seu salário já miserável. Mas tinha o que comer. “Que inferno ter ouvido coach coachar, coisa de sapo, que devia empreender. Ano que vem eu passo no concurso de merendeira e saio dessa!”, pensava ela. Com esperanças, assim termina nossa história, não a de Nanda.


quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Liberdades

           


       Nascera sem desejar, nem ser desejado. Ou melhor, nascido desejado era. Concebido não. Não estivera nos melhores lugares, nem nos piores. Sempre esteve onde deveria estar. Esse o seu problema. Era tudo perfeito demais. Per – feito, feito completamente ou com completitude. Ele sentia, sabia que ainda tinha muita trilha no caminho. Nada estava terminado, finalizado.

Logo nos primeiros meses desesperadamente percebeu como era frágil, completamente dependente. Morria de medo de ficar incompleto, pois a maior parte de si estava em outros. Ao mesmo tempo temia que a maior parte de si era controlada pelos demais. Descobriu cedo a sociedade, esse temível conceito econômico.

Nascera numa comunidade muito fechada e colaborativa, a dos curdos na Síria. Seria sempre um estrangeiro por onde fosse. Talvez um pouco menos no Iraque. Na Turquia provavelmente seria um defunto ambulante. Era estranho como as pessoas mesmo com ideias tao diferentes pensassem com unidade (comunidade). Depois quando estudou a democracia grega percebeu similitudes: os gregos “quebravam o pau” em praça pública, mas a decisão era uma lei natural, inquestionável, a verdade.

Não avaliava aquilo. Era o que era. Provavelmente um despotismo da democracia. Um regime que permite a todos discutir e escolher, mas veda contestar o consenso. Aprendeu cedo liberdade positiva e negativa. Entre os curdos e gregos a positiva existia e era mais plena que nos outros povos, mas inexistia a negativa. Achava isso muito bom e uma porcaria ao mesmo tempo. Era muito prático e eficiente, mas era difícil evoluir a comunidade.

          Assim sem nenhuma naturalidade cresceu, viu a história mudar tudo ao redor. Achou muito confortável viver numa sociedade tradicional. Mas aspirou por muitas vezes se modernizar. Mas ao primeiro espirro mudou de ideia. Não que estivesse satisfeito, mas morreu feliz de ter feito o que fez e vivido o que viveu. 

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Conto de Marianna

 


Ah! Marianna veio de Maria. Não Nossa Senhora. Uma Maria qualquer. Uma Maria vai com as outras. No caso outro, muito melhor que o primeiro. Não era porque fosse descabeçada que não soubesse escolher. Mariana ía às novenas todo dia às seis da tarde com sua meia-irmã na igrejinha no alto do morro. Era uma delícia subir correndo escalando aquela trilha, pedras.

Rezava sempre uma ave-maria e um pai nosso ao dormir. Ao acordar não dava tempo. Nem tinha paz pra tomar café direito. Seu x-tudo sempre ficava pelo meio. Embrulhava num papel alumínio pra depois da novena. Punha na assadeira e esquentava no fogão. Saía toda atabalhoada de casa pra varrer as ruas da vila. Era muito divertido o dia que as varredeiras passavam pela rua porque aí só precisava juntar os lixos e arremessar nos caminhões compactadores. As varredeiras não era a gente. Eram caminhões com engrenagens que passavam as fibras pelas ruas.

Depois das varredeiras que passavam uma ou duas vezes por semana rezava por uma chuva pra lavar e polir as ruas. Não fora sempre gari. Quando mais nova acompanhava o falecido pai nas minas. Era um pouco surda por causa das explosões. Assim que completou doze anos fez uma promessa pra virar gari. Sua vassourinha tá lá na sala de milagres. Aos quatorze graças a enganos e documento fraudado virou varredeira, quer dizer, gari.

Era quase uma varredeira graças a eficiência que varria as ruas. Sobretudo nos raros dias de chuva contínua. Não chegava a ser tão rápida quanto a máquina, mas varria melhor. Era a melhor varredeira humana daquela cidade. Não só da vila, mas talvez do estado.

Nunca vira uma escola. Não era novidade. Só quem viajasse pra cidade veria uma. Tinha um ônibus que vinha buscar alunos pra escola e deixar na primeira curva da rodovia. Quem estudasse de tarde podia pegar o ônibus cedo e completar o percurso a pé. Já tentaram construir uma escola na vila. Tem três esqueletos como prova da intenção. Um deles tem até duas paredes. O resto não passou da fundação.

Fundação, aliás, é o que mais tinha na vila. Fundação disso. Fundação daquilo. Uma tal de ABBC era a que mais afligia Marianna. O uso de privadas era muito recente na vila. O saneamento básico meio que chegou nas primeiras casas há menos de uma década. A Associação Beneficente dos Bons Costumes (ABBC) além de etiqueta ensinava as pessoas a usarem o vaso sanitário. Tinha um banheiro com uns dez vasos que além de serem usados pelas aulas também era usado por quem passava ali perto. A fossa sanitária não foi projetada pra tamanho volume e velocidade de despejo e vazava umas duas vezes por mês.

Viviam pedindo dinheiro para adequar as obras. O prefeito da cidade que não morava lá sempre achava um jeito de Marianna fazer uma “contribuição voluntária” de seu parco salário pra associação dirigida pela tia do ex-prefeito, pai do atual. As melhorias sempre estavam próximas de acontecer. Já fazia dois anos que só faltava um tiquinho pra obra terminar, embora nem tivesse começado.

Só restava a Marianna confiar na promessa feita a São Carlo Acutis, padroeiro da internet, mas que era um santo muito bonitinho. Um de seus santos de maior devoção. A promessa de não varrer o pé de ninguém pra ver se a obra termina. A rua deixa de feder e de tirarem um dízimo do seu misero salário. Pois é. É isso.

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Conto da Lana

 


Lana plana sacana na cama. Era só uma sonequinha de uma hora. Lana engana. Já faz mais de três horas pregada naquela beliche. A escada grudada de suor naquele dia de 50º. Lana coberta com lençol, cobertor. Deve estar com febre pensei. Nada! Queria brincar de sauna.

Lana sobe no coqueiro e pega dois cocos para nós! Nada! A essa hora já devia estar delirando de tanta desidratação. Fui eu mesmo colocar uma escada no coqueiro. Não dou conta de trepar na coisa. Já derrubei logo um cacho de cocos sem me preocupar se algum cairia na cabeça do cachorro ou de algum calango.

Pronto! Lá estão uns três ou quatro cocos no chão. Laninha vem cá beber uma água de coco! Nada da Lana! Fui eu lá levar um coco com canudo de papel pra menina beber. Agorinha termina meu turno e é hora dela ir pra frente da mercearia. Pronto! Deu duas da tarde! Saio eu, entra Laninha, a fofinha.

Vem toda faceira pra conferir o dinheiro do caixa. Tem uns poucos trocados da manhã. A grana mesmo já botei no cofre. Passa Tia Luna e dá oi: Oi, Laninha! Laninha nem! Laninha dá um breve aceno. O carteiro chega em ponto. Duas e cinco. Cinco minutos atrasado. Laninha deu os parabéns pelo atraso. Nunca tinha conseguido atrasar tanto.

Foi ver se no meio das contas tinha uma carta. Viu um monte de anuncio que o carteiro recolheu no caminho. Um monte de contas. Meu Deus! Esse mês vamos ganhar o suficiente para pagá-las? Vamos ficar sem a barraca na quermesse? Tudo se ajeita com o tempo... resignava-se ela.

Clientes pipocavam pelo balcão. Ninguém queria pipoca nesse inicio da tarde. Pediam café com leite. Pão na chapa. Roscas. Suco de laranja, de limão. Tapioca. Café da manhã essa hora? Não sabiam que já estava de tarde? Será que acordaram agora ou é algum fetiche? Talvez os funcionários do contraturno da usina. Trabalhavam das quatro às duas da tarde.

Mas os funcionários do contraturno não eram tantos. Muitos aproveitavam a oportunidade pra ver a espevitada. E lá estava Lana com seus parcos um e sessenta se esgueirando entre prateleiras, clientes e cobradores. Cobradores só eram três. Cobravam uma dívida do dono anterior que escafedera de lá. Já tinham perdido a esperança de receber, mas o café da mercearia era muito bom. Um arábica plantado numa fazendo próxima colhido com o máximo cuidado. Torrado ao relento e selecionado com o cuidado de quem faz café pra si mesmo.

Laninha ficava lá só das duas às seis, talvez sete. Depois fechava a mercearia. Só contava o dinheiro e colocava os elásticos. Não conferia. Ia pra academia pra manter a elasticidade pra contornar como agua aquelas pedras no caminho. E também pra ter um bom sono. Pra ter bons sonhos tomava um café com flor de laranjeira.

Isso é tudo! É o que me disse Lana. Lana engana. Mas quem não quer ser enganado por Lana?

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Conto de Kaique

 


Quem era Kaique? Sei lá? Me mandaram contar a história. Tinha ele um caiaque? Seria o Kaique do Caiaque? Não sei. Só sei que me deram essa ingrata tarefa. Se brincar é um desses vereadores eleitos pela balsa do Espirito Santo. Um funcionário do Pedro Iram (PIPES) ou um dos vendedores das bordas.

Bom... tem duas chances maiores: Palmas ou Tocantinópolis. Ou sei lá, era de Lajeado mesmo. Não importa. Com esse nome duvido que fosse apenas um vereador. Deve ter sido deputado estadual ou até federal. Senador ainda não. Não duvido no futuro ter um Leozinho do Jet-ski, mas hoje ainda não cabe.

Não me informaram nada desse Kaique. Será que tem sigilo nessa investigação? Vou procurar um promotor pra ver se abre pra mim as informações. Se não der certo, vou ter que procurar um juiz. Mas se o diabo do Kaique for o procurador ou juiz? Ah! É melhor eu inventar a história. Depois o editor transforma a história na que ele quiser.

O nosso tão famoso e benquisto Kaique nasceu em uma cidade da região norte. É a maior e a menos povoada do país. Provavelmente no Tocantins ou em algum estado que faz divisa com o Tocantins. Se for assim tem mais chance de ser do Nordeste ou do Centroeste. Da região norte só o Pará faz divisa com o Tocantins. Do Nordeste, Bahia, Piauí e Maranhão. Do Centroeste, Goiás e Mato Grosso.

Como eu sou o narrador e me interessa coloca-lo como natural de Porto Alegre do Tocantins, cidade onde fica o projeto de irrigação Manoel Alves, vai ficar assim. Vai ter que comer muito abacaxi, melancia e manga na infância. Laranja, limão e mixirica também. Sorte dele! Hoje se fosse lá só iria comer ração de porco, digo soja e gramíneas como o milho. Teria sorte se chupasse uma cana restante em alguma plantação. As frutas? Essas desapareceram.

Certamente muito cedo migrou para Natividade, Porto Nacional ou Palmas. Ou para Porto Nacional e de lá pra Palmas. Com vias futuras de migrar para o outro lado do rio, quer dizer, novamente Porto Nacional se a região não se emancipar. Por sua afinidade com a agua certamente deve trabalhar numa náutica ou na marinha. Ou seja, ou regula a ocupação das margens do lago do Lajeado ou vende motos náuticas, jet skis, caiaques e lanchas.

Talvez até plante coqueiros nas margens do rio para lembrar da feliz infância no Manoel Alves. Se plantar coqueiros, podia me arranjar uns cocos. Ficaria feliz de terminar essa história bebendo uma água de coco. Mas sei que não vai dar então tchau! Fim. Caba logo, sô!

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Conto de Jack

 


Jack é Jack. Ninguém é Jack e ele odeia Skank. “Tequila é a mãe!”, diria ele. A mãe de todos os meus males. Nascera incomodado com uma musica para Jackie e não para ele. Jack é dinamite prestes a explodir. Preferia ser um zé, um zé ninguém. Mas não podia era um Jack, um uísque. 12? 16? 18 anos?

Seu nome era uma esculhambação, pensava. Seu pai, um abstêmio, cognominá-lo de Jack Daniels? Só faltava morar no 51º bairro de João Pessoa. Felizmente a capital da Paraíba não era tão grande pra ter tantos bairros. Escapara do 51, mas de morar na 79ª rua da cidade não. Mas Pirassununga é coisa de paulista. E João Pessoa não é muito enfronhado com paulistas como sabem. O nego da bandeira da Paraíba é a posição de não apoio aos paulistas pela continuidade da república velha.

Essa posição era compartilhada por Jack. Negava todos os convites para beber até a ultima hora. Preferia beber em casa uma garapa velha envelhecida em barris de aroeira e cega-machado. Descia rasgando a goela e o ventre como um bisturi cirúrgico cego e enferrujado.

Todo domingo tinha que ir na taverna da Naninha comer buchada e encontrar os patrícios aflitos com tanta salsinha. Não cabia um coentro? Naninha não era bem da terra. Nascera lá, mas... vivera uma vida toda nas minas mais gerais do Brasil, região entre Minas, Bahia, Goiás e, agora, Tocantins. Mas tirando algum excesso de cominho o prato era delicioso.

Jack tá aí, perguntavam seus detratores. Não tinha muitos. A não ser na família. Já que tá aí, me traz um golinho da tua pinga. Já que tá aí, me diz qual é a boa. Um poço infindável de azucrinações. Tinha muitos Daniels em casa. 18, 21 anos. Mas só abria nas ocasiões especiais.

Preferia correr na praia. Não corria muito. Só nas meio-maratonas. Mas essas eram muito pouco frequentes. Treinava todos os dias de manhã e de tarde. À noite só queria dormir se desse conta. Mas essa não era sua especialidade. Tinha que acostumar a ler os anúncios da madrugada depois de ler dois ou três livros.

Acordava com o carro da pitanga ou o de suco de murici. Saía pra praia sem luz pra treinar. Tinha que cochilar até os primeiros fios de sol pelas quatro horas. Logo às cinco treinando era um pleno clarão de cegar os olhos. Esquecera novamente o incômodo óculos de sol. Na verdade, não sabia se era melhor levá-lo ou esquecê-lo.

Pronto! Jack lá pode começar o dia e eu posso me mandar. Fazer o quê? A vida é essa mesmo: correr na praia, beber agua de coco, comer buchada aos domingos. Uma baita dificuldade...

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Conto da Isadora

 


Isadora namora, namora ninguém. Isadora adora, adora um amém. Essas eram algumas das frases dirigidas a Isadora. Fervorosa defensora dos animais, não se incomodava com as indevidas comparações com Francisco de Assis, o santo italiano. Mas lhe incomodava a santidade. Aturdia a sanidade.

Dorinha com suas centenas de cães baldios e seus 1,80m pelejava para se adequar aos lugares. A frestas eram sempre muito curtas. Os lugares muito apertados para seus súditos vira-latas. Era um incômodo pra vila. Intensas brigas com a administração local.

Acusavam-na de trazer cachorros da cidade para a Vila. Atazanavam-na pelo aumento de cachorros, mas a principal defensora da esterilização dos cães era ela. Os vilões vilipendiados achavam um absurdo gastar tanto dinheiro. Vilão é habitante de vila. Preferem que gaste com a limpeza pública pra limpar os dejetos dos animais.

A vilaneza da vila era uma característica intrínseca. Não demorou a ser criado um esquadrão da morte. O departamento até tornou a caça de cães legal. A subprefeitura chegou a pagar R$ 0,15 por corpo de animal morto. O departamento de cremação chegou a não conseguir mais cremar corpos. Corpos de humanos, digo. Os jazigos nos cemitérios começaram ser ocupados com mais velocidade pela impossibilidade de se cremar.

Na falta de cemitério público os particulares passaram a cobrar mais com base na lei da demanda e da oferta. Os hospitais tiveram mais demanda, sobretudo os prontos-socorros com uma coleção de balas achadas pra tirar. As perdidas ficavam pela rua e, de vez enquanto, um incauto achava.

Por muito pouco não matavam Dorinha. De bala ou de coração. Ou de fome. Isadora passava os dias caminhando pela Vila. Não dormia. Não comia, não bebia água senão a de um dia de chuva. Quase morreu várias vezes. Escapou de tiros mortais mais de uma vez. Mais por destino que por pretensão.

Os habitantes sabiam também que se a matassem tornariam-na um mártir. A padroeira dos cachorros na Vila. E, detalhe, a vila tinha muito mais cães que gente. Ficariam em minoria. Logo se estabeleceria uma romaria da cidade pra vila pra cultuar Santa Isabela dos cachorros do vilarejo. Isabela mesmo. Não Isadora. Mudariam o nome da santa pra esquecer o nome da outra.  

Escapou da exaustão final por vários tiros. Quando era socorrida, uma ampola de soro salvava-a da inanição. Sua vida estava em contraponto a vilaneza. O que os vilões e vilãs necessitavam eram o oposto de seus desejos. Estavam em pleno contraponto, mesmo quando algum cão salvava uma criança de ser atropelada. O condutor reclamava dos danos em seu veículo. Ninguém jogava um biscoito canino pro herói. Até porque era proibido vendê-los na vila.

Cansei... santa ou diaba essa é a história de Isadora, a Dorinha dos cachorros.

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Conto de Hector

 


Hector, o belo, mais belo que marmelo, vivia em seu imenso mundo. Nem tão limpo, nem tão imundo. Sabia dizer as coisas, ser prolixo, mas não profundo. Andava com alguma dificuldade. Nada que os muros não ajudassem. Paredes que nunca travessou, digo, nunca pulou. As pontes sim, nunca pulava. Atravessava todas as pontes possíveis.

Era um demagogo da melhor qualidade. Não, nunca pretendeu ser candidato a nada. Mas era o grande político da cidade. Estava em todas as rodinhas. Embora não entendesse quase nenhuma, conhecia todas as tendencias, correntes, inclusive os disse-me-disses. Sabia dizer algo razoável em cada rodinha. Dar sua opinião mais sincera sem se comprometer.

Era o cara dos cosméticos. Dava opiniões que não construíam nada, mas agregavam todos os aspectos da roda. Sabia que oferecer um café ou um bolo ou realçar o canto do sabiá ou canário do reino era muito mais útil que uma convicção. Não torcia por nenhum time, mas pela vitória da competitividade e a compaixão pelos derrotados. Ia a todas as disputas, mas não comparecia a estádios ou ginásios por mais que cinco ou dez minutos.

Era capaz de arrastar multidões, sobretudo nos dias de Reis e Cosme e Damião. Adultos e crianças. Não arrastava sozinho, é verdade. Mas era uma espécie de líder das frivolidades. Obviamente não são datas frívolas, nem suas comemorações. Mas ele era. Só sendo um mestre nas frivolidades conseguiria ser tão agradável.

Andava pelas ruas sem se desviar de ninguém. Não precisava. Para tudo tinha uma fala tão inútil que poderia passar desapercebida a não ser agradável notícia para as pessoas de que elas eram notadas. Podia ser um idiota. Suas palavras não levavam nada pra frente, nada acrescentavam, mas era a cola da cidade. A ponte entre todas as diferenças.

Poderia ser um carteiro como o Hermes, o mensageiro dos deuses que tinha asas nas sandálias. Hermes que era padroeiro dos diplomatas por interligar reinos e pessoas. E dos ladrões, por ser muito furtivo. Essa ultima característica não tinha. Era muito honesto com outros. Não consigo. Tinha dias que preferiria se enfiar pelado num barril como Diógenes, o maior dos cínicos. Cínico em grego era cachorro. Talvez cachorro fosse uma boa definição da agradabilidade de nosso personagem.

Talvez fosse tratado como um cachorro mesmo. Recebia tanta simpatia quanto desimportância. Quanto mais era ignorado, mais era adorado. Uma baita cachorrada! Me revoltei! Não tenho a paciência, malemolência de Hector. Termino por aqui.

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Conto do Guilherme

 


Guilherme Tell, ou Guilherme de Tell, foi um arqueiro famoso cantado em prosas e verbos pelo mundo ocidental todo. Mas nunca foi nem a sombra de seu bisneto Guilherme de Tal, que não precisava de frutas tão vistosas como uma maçã para acertar a poucos quilômetros de distância.  Coisa de amador! Gostava de cortar longitudinalmente fios de cabelo arremessando do arco pequenas agulhas para infligirem módicos furos em fios de cabelos em sequência.

Com tamanha precisão não podia trabalhar num castelo, nem mesmo num teatro. Precisava se exibir num circo de pulgas. Era preciso uma micro atenção, uma visão microscópica para sua arte. Só mesmo com a ampliação de milhões de vezes numa tela era possível se maravilhar com tamanha destreza. Era muito complicado! Confundiam arte milimétrica com minimalismo.

Tinham que ampliar milhões de vezes num telão para as pessoas verem. Tanta destreza e eficácia dificultava tudo. Não era uma habilidade que lhe sustentaria por muito tempo. Virou chefe de cozinha molecular. Assim podia fazer seus malabarismos e se exibir em pratos exóticos acuradamente calculados. Reações vistosas e belas.

Adorava fazer luzes, controlar luzes. Ver as mudanças de cores, odores, sabores. Mudar texturas. Transformar a culinária em laboratório para fazer malabarismos. Lançar temperos aos pratos com precisão milimétrica. Virar omeletes, tortas, tortilhas, panquecas...  Arremessar pratos às mesas.

Chegava todo dia de madrugada na cozinha pra treinar os seus novos truques, testar composições. Se divertir com cores, odores e sabores. Depois ia a feira quase no amanhecer pra fazer malabarismos com frutas e verduras. De volta a cozinha picava os ingredientes em diferentes formas e texturas. Tirava um cochilo num quartinho ao fundo da cozinha. O restaurante só abria uma hora da tarde.

Quem quisesse provar só tinha das 13h ás 17h pra aproveitar. O restaurante ficava aberto até às 22h mas o artífice era outro. Guilherme era irredutível com o horário de trabalho: das 3h ás 9h, das 12h às 17h. Dia sim, dia não. Nos dias não treinava em casa a tarde inteira os arremessos de pratos com o arco.

Era uma espécie de teste de qualidade dos pratos. Era o maior descobridor dos lotes com defeitos. As louças eram testadas com muita delicadeza. Pois ele sabia fazer os pratos aterrizarem com maior cuidado que se fossem colocados com a mão na mesa. Também testava os forros de mesa pra descobrir se eram lisos o suficiente para serem retirados sem mover o que estava acima deles.

Uma rotina muito regular que não permite o descanso de Guilherme que aliás já me confidenciou que é o momento. Boa noite, Guilherme! Bom dia leitor. Eu sigo minha insônia por aqui, mas não nesse texto. Descansem!

O sabiá sabia assobiar

  Assim cantou o sabiá Como sempre Sabia assobiar Com a melodia assombrar E o ritmo encadear O sol sobe e a lua baixa As estrela...