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quinta-feira, 27 de março de 2025

A lei como forma

     


     Hegel, um dos mais notáveis filósofos que conseguiram explicar a modernidade e o liberalismo que a cria, viveu numa época em que a maioria dos regimes eram absolutistas, a maioria tirânicos. Ou seja, as decisões do estado eram subjetivas. Uma pessoa poderia morrer por uma birra de um adolescente (um adulto infantilizado ou até uma criança mesmo).  Por isso, Hegel tem uma grande devoção pela burocracia moderna, um conjunto de regras impessoais. Quer dizer, teoricamente ficaríamos livres do despotismo da emoção. É verdade que não ficamos livres da pessoalidade e que nenhuma fase histórica fica livre de resquícios da outra.

    Essa ideia de que regras neutras e objetivas poderiam administrar melhor o mundo é a marca do estado moderno com suas constituições e direitos compartimentados, civil, público, penal, etc. Até mesmo as regras não escritas, que sempre existiram, mas que se tornaram vitais apenas com o surgimento da sociedade civil, o para além do Estado. Nos despotismos, quase tudo ou tudo é Estado.

    Raras pessoas refletiram como Kafka sobre essa realidade. Sobre a lei, a justiça (que abarca o poder judiciário, mas vai muito além dele):

              A teologia negativa ou da ausência, a transcendência da lei, a priori da culpa são temas recorrentes em muitas interpretações de Kafka. Os textos celebres do Processo (e também da Colônia penal e da Muralha da China) pressentem a lei como pura forma vazia e sem conteúdo, cujo objeto permanece irreconhecível; a lei não pode, portanto, enunciar-se a não ser em uma sentença; e a sentença não pode se apreender senão em um castigo. Ninguém conhece o interior da lei. Ninguém sabe o que é a lei no interior da Colônia; e as agulhas da máquina escrevem a sentença no corpo do condenado que não a conhecia, ao mesmo tempo em que elas lhe infligem o suplício. “O homem decifra a sentença com suas chagas”. [...] Kant fez a teoria racional do reviramento, da concepção grega à concepção judaico-cristã da lei: a lei não depende mais de um Bem pré-existente que lhe daria uma matéria, ela é pura forma, da qual depende o bem como tal. É bem o que enuncia a lei, nas condições formais em que ela mesma se enuncia. (DELEUZE, 2004. p. 81 e 82).

     Kafka mostra como a burocracia, as regras escritas ou não escritas ocupam todos os espaços na modernidade. Disciplinam a convivência e permitem a racionalização do Estado e a existência da sociedade civil. Mas acabam se espalhando para todos os espaços, inclusive as relações mais intimas. Principalmente como essa necessidade de ocupar todos os espaços e a dificuldade de se adaptar às particularidades faz com que as regras se tornam vazias tendo apenas forma, fórmula. Como não há conteúdo, não existe argumento pra contraditar

segunda-feira, 17 de março de 2025

O que somos?


   

O Renascimento e o Iluminismo nasceram centrados na figura do sujeito. Um sujeito ainda muito limitado no Renascimento, mas reivindicando bastante autonomia no Iluminismo, sobretudo na sua primeira fase de Kant a Hegel, da Crítica da Razão Pura (1781) à Fenomenologia do Espírito (1807). Um curto período, mas que perpassou todo o século XIX. Só em meados do século XIX começamos a pensar na modernidade tardia com Nietzsche, com Marx (1818-1893), Nietzsche (1844-1900) e, principalmente Freud (1856-1939). Começa e desconstrução da razão autônoma e, por consequência, do sujeito nos moldes do Iluminismo.

  Um fenômeno que nunca cessou de se auto-alimentar. O sujeito foi constantemente desmontado. Foi progressivamente alienado como Marx e Nietzsche denunciam de maneiras diferentes. Mas sobretudo desmontado e reconstruído seguida e constantemente como objetos diferentes (ou maquinas diferentes, como preferiria Deleuze). A modernidade ou o capitalismo foi progressivamente tomando os indivíduos por suas funções. José não é um semita ou um religioso. Também o é. Mas é sobretudo um carpinteiro. Tiago e João não são pregadores, nem viajantes, são pescadores. Cito exemplos religiosos da antiguidade para ser questionado justamente. Lá não havia essa demarcação, essa percepção. Mas na era moderna inegavelmente as pessoas perderam sua individualidade (no sentido de serem únicas) passaram a ser sobretudo o que fazem.

  Seu trabalho passa a ser o que são. E ser ocupa toda a existência. Não importa se adotemos uma ontologia antiga, medieval ou moderna. Ser ou Dasein. Não importa se fujamos para o existencialismo. O sujeito foi desmontado. Não há um ser-em-si, talvez nem um ser em relação à. Somos todos particularmente iguais no que nos é imposto de fora pra dentro, sobretudo por nós mesmos. Um poeta vive a sua vida captando signos. Um ferreiro a observar colunas ou outras coisas que desconhecia sobre seu oficio ou que poderia fazer melhor do que foi feito. Um jornalista na eterna angústia por acontecimentos ou desdobramentos. O oficio ultrapassa o período trabalhado e invade a vida. Tanto a pessoa (pessoa?) não se vê mais como uma razão autônoma, um sujeito no mundo, como os outros indivíduos também não o veem. Esclarecedora é uma passagem de Deleuze sobre Kafka:


   Se a calderaria, contudo, não é descrita por si mesma (o barco, aliás, é preso), é que jamais uma máquina é simplesmente técnica. Ao contrário, ela só é técnica como máquina social, tomando homens e mulheres em suas engrenagens, ou, antes, tendo homens e mulheres dentre suas engrenagens, não menos que coisas, estruturas, metais, matérias. Bem mais, Kafka não pensa somente nas condições de trabalho alienado, mecanizado, etc.: ele conhece tudo isso de muito perto, mas seu gênio é considerar que os homens e mulheres fazem parte da máquina, não somente em seu trabalho, mas ainda mais em suas atividades adjacentes, seu descanso, seus amores, seus protestos, suas indignações, etc. O mecânico é parte da maquina, não somente enquanto mecânico, mas no momento em quede cessa de sê-lo. [...] A máquina não é social sem se desmontar em todos os elementos conexos, que fazem máquina por seu turno. [...] É que a máquina é desejo, não que o desejo seja desejo da máquina, mas porque o desejo não cessa de fazer máquina da máquina, e de constituir uma nova engrenagem ao lado da engrenagem precedente, indefinidamente, mesmos essas engrenagens parecem se opor, ou funcionar de maneira discordante. O que faz máquina, falando propriamente, são as conexões, todas as conexões que conduzem a desmontagem. [DELEUZE, 2024. p.147 e 148]

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Kafka: burocracia ou rotina?

     


    Eu sempre achei que Kafka mostrava que o mundo era completamente burocratizado, que sua metanoia era um totalitarismo da burocracia que preenchia todos os espaços possíveis chegando a colonizar inclusive as reflexões e as relações humanas. Uma descrição que sempre me encantou, no sentido tanto de agradar como de levar da física à metafísica. Numa comparação ruim (toda comparação é ruim porque ao simplificar o real, tolhe grande parte de sua complexidade) e pensando em Aristóteles, um filósofo da antiguidade e portanto um metafísico, seria como se passássemos da política e da ética ou mesmo da sua arte (todas ligadas as limitações da realidade) para a metafísica que pelo menos acredita capturar e discutir a essência.

    Essa burocratização do universo acaba racionalizando o mesmo. Classificando, ordenando, organizando tudo de modo a que se torne o quanto possível racional, entendível. Deleuze e Guattari tem um modo diferente de ver a literatura de Kafka, a entendem como a descrição de uma maquina que abarca tudo, preenche absolutamente. O que eu vejo como burocracia, rotinas, leis, eles veem como rotina, processo da maquina:

     "Uma máquina de Kafka é, portanto, construída por conteúdos e expressões formalizados em graus diversos como por matérias não formuladas que nela entram, dela saem e passam por todos os estados. Entrar, sair da máquina, estar na máquina, percorrê-la, aproximar-se dela, ainda faz parte da máquina: são os estados do desejo, independentemente de toda interpretação. A linha de fuga faz parte da máquina. No interior ou no exterior, o animal faz parte da máquina-toca. O problema: de modo algum ser livre, mas encontrar uma saída, ou bem uma entrada, ou bem um lado, um corredor, uma adjacência, etc. Talvez seja preciso levar em conta vários fatores: a unidade puramente aparente da máquina, a maneira pela qual os homens são eles mesmos peças da máquina, a posição do desejo (homem ou animal) relativamente a ela. Na Colônia penal, a máquina parece ter uma forte unidade, e o homem se introduz completamente nela - talvez isto que acarrete a explosão final, o esfacelamento da máquina. Em América, ao contrário, K permanece exterior a toda uma série de máquinas, passando de uma à outra, expulso desde que tenta entrar: a máquina-barco, a máquina capitalista do tio, a máquina-hotel... No Processo, trata-se de novo de uma máquina determinada como máquina única de justiça; mas sua unidade é tão nebulosa, máquina de influenciar, máquina de contaminação, que não há mais diferença entre dentro e fora. No Castelo, a aparente unidade cede lugar por seu turno a uma segmentação de fundo ("O castelo era, no fim das contas, apenas uma pequena vila miserável, um amontoado de choupanas vilarinhas... Não fui feito nem para os camponeses nem, sem dúvida, para o castelo. - Não há diferença entre os camponeses e o castelo, diz o professor"); mas, desta vez, a indiferença do dentro e do fora não impede a descoberta de uma outra dimensão, uma espécie de adjacência marcada de pausas, paradas, onde se montam as peças, engrenagens e segmentos: "A estrada fazia um ângulo que se teria dito intencional, e, apesar de não se distanciar mais do castelo, ela cessava de se aproximar dele". O desejo passa evidentemente por todas essas posições e esses estados, ou, antes, segue essas linhas: o desejo não é a forma, mas processo, procedimento." [DELEUZE, 2024, p.17 e 18]

    A compreensão de Deleuze e Guattari parece dar mais plasticidade, aproximar-se mais de um conceito por permitir maior raciocínio à posteriori. No entanto, é mais totalitária no sentido em que se fragmentando em máquinas distintas muito menos resíduos escapam. Não podemos pensar como em Agamben (2004) que a perda da subjetividade, no sentido de não ser mais um sujeito e com isso não ter mais direitos ou não ser mais o retira de alguma máquina. Simplifiquei absurdamente o Agamben, até o distorci de algum modo, mas só para termos a compreensão do totalitarismo das maquinas multiplicadas. Nem o marginal (que está a margem das regras), nem o marginalizado (que foi colocado a margem da Lei) estão fora de alguma máquina. Um pouco mais a fundo, nem para Agamben. Mas tomei essa superficialidade para fazer diferença.


AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua I, Belo Horizonte: UFMG: Humanitas, 2004.

DELEUZE, Gilles. Kafka: por uma literatura menor, Belo Horizonte: Autêntica. 2024.

 


O sabiá sabia assobiar

  Assim cantou o sabiá Como sempre Sabia assobiar Com a melodia assombrar E o ritmo encadear O sol sobe e a lua baixa As estrela...