Hegel, um dos mais notáveis filósofos que conseguiram explicar a modernidade e o liberalismo que a cria, viveu numa época em que a maioria dos regimes eram absolutistas, a maioria tirânicos. Ou seja, as decisões do estado eram subjetivas. Uma pessoa poderia morrer por uma birra de um adolescente (um adulto infantilizado ou até uma criança mesmo). Por isso, Hegel tem uma grande devoção pela burocracia moderna, um conjunto de regras impessoais. Quer dizer, teoricamente ficaríamos livres do despotismo da emoção. É verdade que não ficamos livres da pessoalidade e que nenhuma fase histórica fica livre de resquícios da outra.
Essa
ideia de que regras neutras e objetivas poderiam administrar melhor o mundo é a
marca do estado moderno com suas constituições e direitos compartimentados,
civil, público, penal, etc. Até mesmo as regras não escritas, que sempre
existiram, mas que se tornaram vitais apenas com o surgimento da sociedade
civil, o para além do Estado. Nos despotismos, quase tudo ou tudo é Estado.
Raras
pessoas refletiram como Kafka sobre essa realidade. Sobre a lei, a justiça (que
abarca o poder judiciário, mas vai muito além dele):
A teologia negativa ou da ausência, a transcendência
da lei, a priori da culpa são temas recorrentes em muitas interpretações de
Kafka. Os textos celebres do Processo (e também da Colônia penal e da Muralha
da China) pressentem a lei como pura forma vazia e sem conteúdo, cujo objeto
permanece irreconhecível; a lei não pode, portanto, enunciar-se a não ser em
uma sentença; e a sentença não pode se apreender senão em um castigo. Ninguém
conhece o interior da lei. Ninguém sabe o que é a lei no interior da Colônia; e
as agulhas da máquina escrevem a sentença no corpo do condenado que não a
conhecia, ao mesmo tempo em que elas lhe infligem o suplício. “O homem decifra
a sentença com suas chagas”. [...] Kant fez a teoria racional do reviramento,
da concepção grega à concepção judaico-cristã da lei: a lei não depende mais de
um Bem pré-existente que lhe daria uma matéria, ela é pura forma, da qual
depende o bem como tal. É bem o que enuncia a lei, nas condições formais em que
ela mesma se enuncia. (DELEUZE, 2004. p. 81 e 82).