Acompanham

Mostrando postagens com marcador Benjamin. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Benjamin. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Sobre a arte e as hermenêuticas



A arte é muito mais eficiente ao capturar (ou ser capturada) pelo Zeitgeist (o espírito do tempo).  Portanto contar a história geral, humana, dita universal pela arte dos povos, grupos, nações parece ser uma abordagem muito mais rica, plural e sujeita a mais interpretações e mais erros. Quanto mais é possível errar, melhor é o método. Como assim seu idiota??? Você diz que o método menos rigoroso é melhor??? Não!!! Que métodos abertos são melhores que fechados.

 Não é possível descobrir uma verdade quando se sabe há pelo menos um séculoBa que as verdades são particulares. Que as ditas “verdades universais” são verossimilhanças consensuadas, algo que nos dá chão pra pisar. Estar próximo ou muito próximo da verdade é melhor que se prender a fantasias como se fossem realidades. Então você quer dizer que dois mais dois igual a quatro não é uma verdade? É sim. É uma verdade analítica, que é uma autoproclamação: só garante a si mesma.

Não era o propósito, mas estico: duas bananas mais duas laranjas são quatro frutas. Duas mangas mais duas jaboticabas igualmente. Duas bananas e duas laranjas são iguais a duas mangas e duas jaboticabas? As situações, os sujeitos, as interações mudam a reação. Usei uma lógica física ou química. Nem sociologia, nem filosofia, porque para essas é muito mais óbvio. Para qualquer hermenêutica, tudo é muito susceptível.

Textos se tornam eternos porque podem ser reinterpretados. Universais também porque a tradução permite ultrapassar realidades dispares entre as línguas. Não há fidelidade nenhuma nisso. Há a lealdade possível. Para isso há a verossimilhança de criar metáforas e metonímias para mudando tudo mostrar os aspectos primordiais do texto que se julga que deveriam ser preservados.

Somente a arte consegue numa mesma obra se dizer e desdizer do modo de sua época. Mostrar os conflitos não como discurso, as vezes nem como descrição, mas como narrativa. A narrativa do conflito é muito mais complexa: mocinho não é mocinho, nem bandido é bandido. Sem defender um ou outro, em muitas situações fazem o inverso. Na maioria, não é muito claro quem é quem. Salvo os casos limítrofes, as pessoas tendem a variar entre um ou outro, virtuoso e desvirtuado com frequência e precisam de uma narrativa para se estabelecerem como mocinho ou bandido. As melhores obras são as que não tem nem mocinho, nem bandido.

Quanto mais uma obra é particular, tem as dores, os prazeres, o espírito de seu tempo, mais ela é universal. A obra mais universal é a que explora a singularidade, as dores do individuo em seu tempo porque por mais que seja subjetiva (e, portanto, limitada) será lida por sujeitos que se identificarão. Quando se diz que o sertão, a vila isolada é o mundo é uma verdade porque mostra os aspectos essenciais. Embora as metrópoles mostrem muito mais o mundo que é intrinsecamente interligado. Essa é uma visão geral, panorâmica que não alcança as especificidades.

As narrativas particulares (escritas, pintadas ou cantadas) mostram lugares, épocas, ambientes que não vivemos, mas tem maior verossimilhança com nossa realidade do que textos que tentam descrever ou dissertar sobre o real. Não há verdade, mas verossimilhança graça por todo o lado. É muito mais completo descrever uma goteira numa poesia que num relatório técnico. O ultimo tem a virtude ser objetivo, mas deixa escapar quase tudo do que é uma goteira.

domingo, 30 de novembro de 2025

Cortando e desvirtuando o conceito de história de Benjamin



Vou continuar a refletir sobre a minha concepção desvirtuada de Walter Benjamin. Vou pensar apenas um pequeno recorte da sua concepção de história. Os historiadores estão sempre voltados para o passado. Nós comumente construímos a história com base no passado. A construímos com base em nossa experiência. Nada mais natural porque partimos do que conhecemos.

Com isso sempre trazemos o passado para o nosso presente. Pior, o colocamos no futuro quando o usamos pra planejar. Impossibilitamos nascer o novo por estarmos sempre presos ao passado. Poxa! Mas se esquecermos o passado podemos repetir os mesmos erros de novo. Sim, mas se levarmos o passado para o futuro os erros são transportados. Não podemos esquecer o passado, mas não podemos construir o novo sem romper com o passado.

Pra fazer o novo é preciso partir do novo, de um presente ideal. É preciso romper com a linearidade. Começar uma nova história livre dos absurdos do passado. Não estou falando de uma revolução socialista ou anarquista. Estas estariam relacionadas a um passado. O negando, provavelmente. Não seria um corte epistemológico.

Para criar o novo, as escolas devem ensinar o passado como uma era repugnante já terminada e focar na criação do novo tempo desligado das mazelas do passado. Um tempo sem a lembrança da escravidão que impõe o racismo e a misoginia. Aí está o ponto que vou ser mais polêmico e vou tomar todas as porradas possíveis e justamente porque o novo não está aí. Não defendo o esquecimento. Como eu disse, 15 minutos após o estabelecimento do novo, o passado deve ser uma era desprezível já terminada. O escravismo precisa ser tirado da história da nova era para que deixe de ser referência. Mesmo que seja negativa, abominada continua sendo uma enorreferencia que pode ser retomada, fantasiada, sublimada como é hoje.

Para fazer uma nova história, é preciso fazer o novo a partir do novo, de novos pensamentos. É preciso romper com o velho. Romper, não negar. Desligar-se. Perder as referências. Reconstruir com base no que nunca foi feito ou adotado. Do passado só podemos se muito adotar ideias perdedoras por razões econômicas, políticas ou de preconceito se convenientes. Para fazer uma nova história é preciso agir diferente. Para agir diferente é preciso romper com a velha história: o tempo antigo, o tempo morto.

O que proponho é algo muito perigoso. O fascismo e o nazismo propuseram algo semelhante. Mas tem uma enorme diferença: não estou propondo uma volta a um passado mitológico poderoso. Estou propondo romper com qualquer passado, real ou mitológico. Proponho deixar de repetir erros. Cometer erros novos. Nós temos horror ao desconhecido, mas se quisermos algo novo precisamos avançar para o incógnito.

sábado, 29 de novembro de 2025

A percepção segundo minha interpretação de Walter Benjamin

     


     Walter Benjamin tinha uma ideia sobre a apreensão/representação nas obras de arte muito interessante. Desejo somente explorar um pedacinho dessa percepção. A filosofia se faz muitas vezes pelo obvio que deixou de ser observado ou não é observado. Ele percebe como a representação dos objetos em uma pintura, foto, filme, descrição narrativa tende a perder aspectos/qualidades/atribuições dos objetos.

Digamos uma foto simples escolhe um ponto de vista e mostra como se está vendo o objeto. Mais ou menos porque as fotografias não tem acuidade de um bom olho ou por serem externas sofrem influencias que desajustam. Uma pintura que pretende ser realista escolhe um ponto de vista, tem dentro de si uma representação do objeto. Uma subjetividade que acrescenta mais atributos ao objeto. Algo que deixa menos vazio, descaracterizado.

Uma descrição narrativa emerge em subjetividade mais claramente que as outras. As outras também estão banhadas, mas não tão objetivamente. A descrição está tão cheia de subjetividade que pode mostrar a essência do objeto para o autor da obra permitindo, inclusive, que o leitor capture outra essência. De toda forma, a representação é redutora. Não pode mostrar tudo. Os aspectos são escolhidos. É impossível passar a integralidade do objeto. Mas evidentemente são escolhas subjetivas. Mesmo que fosse possível mostrar a integralidade, o autor provavelmente preferiria mostrar seu ponto de vista, sua interpretação do objeto.

O autor pode mostrar a essência do objeto, a negação do objeto, pode “desobjetificar” o objeto, mas não pode escapar de fazer escolhas. Mostrar algumas coisas, esconder outras. Pode até negar escolhas, o que é uma decisão. Desse modo toda obra são cortes da realidade ou da negação da realidade ou da relação com a realidade. Nunca a realidade em si, sobretudo no que deseja ser verossímil.

           Essa é de longe a parte mais importante do que eu deveria dizer. O que eu quero dizer é que a melhor descrição da realidade é a ficção que deseja mostrar algo real ou que acontece porque os construtos imaginativos permitem uma interação mais real com as propriedades do objeto que foi certamente metaforizado para facilitar a interação. Complicou e explicar minunciosamente não é produtivo porque a explicação é sempre um corte que esconde partes do objeto. Pensem. Se em algum momento eu conseguir acrescentar sem destruir parte do anterior volto.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Duas histórias para dois filósofos

 







    As concepções de história para Hegel e Benjamin são sob vários ângulos diametralmente opostas. Enquanto Hegel como o espírito de sua época, a moderna, apresenta uma história que apresenta uma enorme fé no progresso. Benjamin apresenta o progresso da técnica como a perda de muitos valores, como a degradação da humanidade.

    A razão garante o progresso da liberdade cujo seu máximo manifestação se encontra no Estado para Hegel. Benjamin denuncia justamente a razão, a razão técnica como causa da regressão dos valores humanos. Justamente por se ancorar na razão, Hegel mostra uma história que é dos vencedores, das ideias vencedoras, ou seja, as ideias vencedoras são justificadas por serem mais racionais, pois a história é conduzida pela astúcia da razão.

    Benjamin acredita que restringir a história à história dos vencedores não é contar a história de todos, a história da humanidade. O frankfurtiano entende que as ideias perdedoras também fazem história e que qualquer escolha é arbitrária, fazendo com que a história dos perdedores tenha no mínimo a mesma importância que a dos vencedores, pois é um recorte da mesma maneira e ainda pode ser a história da maioria, pois numericamente há mais ideias perdedoras que vencedoras. A cada situação há uma ideia vencedora que vence várias outras não necessariamente racionalmente, pois a razão nem sempre é o fator mais importante numa escolha. A desigualdade de poder, por exemplo, tem forte influência numa disputa de ideias.

    Hegel, que não era, nem poderia ser um marxista[1], assim como a maioria dos marxistas na época de Benjamin tinham um componente profético em sua teoria: os marxistas afirmavam que o sucesso do capitalismo levaria a ampliação do conflito entre proletariado e capitalistas de modo que o comunismo era inevitável; do mesmo modo o espírito condutor da história em Hegel inevitavelmente levaria ao conhecimento do espirito de si mesmo. Entretanto Hegel não falava do futuro. Ele foi o primeiro a defender que a modernidade é a última era: onde o espírito encontra a si mesmo.

    Benjamin troca esse componente profético do marxismo por um componente messiânico: os socialistas, o proletariado, todos deveriam estar preparados e vigilantes para a boa nova: o retorno aos valores importantes esquecidos do passado não como um retorno, mas como lembrança e valorização. Assim, Benjamin incentiva a luta contra a técnica e o capitalismo em vez de esperar que naturalmente o socialismo venha como a interpretação profética do marxismo provoca. Não se pode esperar um messias que venha para resolver tudo, pois este é a própria humanidade. A luta contra a razão técnica do capitalismo não é um caminho que assegura o socialismo segundo Benjamin, mas é um trajeto que pelo menos evita a catástrofe iminente causada pela técnica.



[1] Boa parte da teoria de Marx é uma contestação a Hegel.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Reflexões sobre Kafka e a modernidade tardia

     Perguntamos-nos se a mudança da autonomia para a heteronomia seria um dos fatores que divide as etapas da modernidade. E se em caso afirmativo, as obras de Franz Kafka são um retrato dessa mudança? Buscamos investigar se os livros de Franz Kafka retratam uma sociedade em que a política (enquanto poder ou Estado) invade o domínio particular e substitui o papel central da razão da primeira fase da modernidade pela opressão da cultura (no sentido mais amplo que se possa dar à cultura). Assim a sujeição do Sujeito (Ego) ao Pai ou ao Estado (Superego) na obra de Franz Kafka possivelmente retrate a mudança de etapa na modernidade.

    Assim pensando na troca da autonomia pela heteronomia como uma das principais condições para o surgimento de uma segunda etapa da modernidade, no livro Carta ao pai de Franz Kafka, o autor demonstra ser oprimido por algo externo: seu pai que lhe repassa os valores societários e reage, dentro de suas possibilidades ao que lhe impede de ser tão autônomo quanto gostaria.

    Na aurora da modernidade como resposta à heteronomia da Idade Média, surge um sujeito autônomo que garante sua autonomia usando a razão. Segundo Nery:

Com a inauguração dos tempos modernos, o homem se torna o centro, a medida do conhecimento em que tudo está estritamente ligada à razão. Daí a importância da compreensão da modernidade para, então, se compreender como foi descoberta a ideia de sujeito, de agente dominador. [...] Não é mais a vontade da divindade e entidades que garantem ou definem o sentido do agir humano, é o próprio sujeito quem dá significado à sua existência. O próprio indivíduo é responsável pelo progresso ou decadência da sua vida. (NERY, 2011, p.34 e 35).

    Nery afirma que o grande propagador do projeto moderno, o Iluminismo, depositou uma confiança cega e ilimitada na razão. Esta chegaria “a um estágio de desenvolvimento que ela seria capaz de dissipar as trevas da ignorância que obscurecem o espírito humano” (2011, p.35 e 36). E, partindo do mesmo pressuposto, Habermas demonstra como a exacerbação dos valores da modernidade conduz ao esvaziamento do sujeito.

O mundo de exteriorização e apropriação das forças essenciais deve-se, por um lado, à dinamização do conceito aristotélico da forma: o indivíduo desdobra suas forças essenciais mediante sua própria atividade produtiva; e, por outro, à mediação conduzida pela filosofia da reflexão do conceito aristotélico com o conceito de forma estética: as objetivações, nas quais a subjetividade assume forma exterior, são simultaneamente a expressão simbólica de um ato de criação consciente e de um processo inconsciente de formação. A produtividade do gênio artístico é, por isso, o protótipo para uma atividade em que autonomia e auto-realização se unificam de tal modo, que a objetivação das forças humanas essenciais perde o caráter coercitivo em face da natureza tanto externa como interna. (HABERMAS, 2000, p. 111 e 112).

    Nery caracteriza mais detalhadamente esse fenômeno que é a desconstrução do sujeito “onipotente” da primeira fase da modernidade. Mostra como o capitalismo e a sociedade civil vão desarticulando e mostrando o quão eram falsas as liberdades do início da modernidade até o seu auge com Kant e depois Hegel. Nery mostra sobretudo como é a própria radicalização do sujeito, ou melhor de sua individualidade que leva a isso:

Numa incessante busca do seu bem-estar e uma supervalorização do EU, o indivíduo moderno torna-se frágil e vulnerável á medida que se fecha para o outro e imerge dentro de si. Esse individualismo estimulado pelo consumismo foi esvaziando o sujeito a tal ponto que ele já não tem mais forças para lutar pelos ideais comunitários e transfere a responsabilidade política para os partidos por não ter tempo disponível para a “res publica” estando envolvido nos seus próprios negócios, em seu mundo, cuidando dos seus interesses. [...] Todas as instituições, organizações e todos os valores estão sendo esvaziados de sua substância. O saber, o poder, o trabalho, o exército, a família, a Igreja, já não estão em funcionamento como princípios absolutos e intangíveis. Há uma descrença geral em todos eles. [...] Entretanto, o sistema funciona e as instituições se desenvolvem multiplicando-se assustadoramente, a diferença é que agora num ritmo livre e leve, no vazio e sem sentido. É preciso saber viver ou sobreviver nos “espaços desativados”. (NERY, 2011, p.42 e 43).

    Sigmund Freud, que juntamente com Nietzsche e Marx, são responsáveis pelas três investidas mais impactantes contra a autonomia do sujeito, propôs que o homem além do eu (ego), é controlado por outras duas instâncias: o ID (instintos, o original) e o Superego (a domesticação do Complexo de Édipo). Deste modo Freud explica a formação do Superego como superação do Édipo e consequentemente uma parte do Id (dos instintos) dentro do Ego (o Eu racional):

O superego, contudo, não é simplesmente um resíduo das primitivas escolhas objetais do id; ele também representa uma formação reativa enérgica contra essas escolhas. A sua relação com o ego não se exaure com o preceito: ‘Você deveria ser assim (como o seu pai)’. Ela também compreende a proibição: ‘Você não pode ser assim (como o seu pai), isto é, você não pode fazer tudo o que ele faz; certas coisas são prerrogativas dele.’ Esse aspecto duplo do ideal do ego deriva do fato de que o ideal do ego tem a missão de reprimir o complexo de Édipo; em verdade, é a esse evento revolucionário que ele deve a sua existência. É claro que a repressão do complexo de Édipo não era tarefa fácil. Os pais da criança, e especialmente o pai, eram percebidos como obstáculo a uma realização dos desejos edipianos, de maneira que o ego infantil fortificou-se para a execução da repressão erguendo esse mesmo obstáculo dentro de si próprio. Para realizar isso, tomou emprestado, por assim dizer, força ao pai, e este empréstimo constituiu um ato extraordinariamente momentoso. O superego retém o caráter do pai, enquanto que quanto mais poderoso o complexo de Édipo e mais rapidamente sucumbir à repressão (sob a influência da autoridade do ensino religioso, da educação escolar e da leitura), mais severa será posteriormente a dominação do superego sobre o ego, sob a forma de consciência (conscience) ou, talvez, de um sentimento inconsciente de culpa. (FREUD, 1927)

    O fundador da psiquiatria mostra que o Superego (ou ideal do Ego) tem uma natureza tanto histórica quanto biológica o que o aproxima muito do tipo de construção que Piaget, Genet e os estruturalistas proporiam bem depois. Mas a coincidência se resume apenas a essa conjunção biológico temporal, pois Freud privilegia os aspectos morais. Desse modo, Freud demonstra como os valores de autoridade são internalizados. Mostra que através do desejo do poder do pai que tem a posse do que mais deseja, o menino passa a incorporar os valores do pai por cópia. Tudo isso graças ao processo de domínio do Complexo de Édipo:

Erigindo esse ideal do ego, o ego dominou o complexo de Édipo e, ao mesmo tempo, colocou-se em sujeição ao id. Enquanto que o ego é essencialmente o representante do mundo externo, da realidade, o superego coloca-se, em contraste com ele, como representante do mundo interno, do id. Os conflitos entre o ego e o ideal, como agora estamos preparados para descobrir, em última análise refletirão o contraste entre o que é real e o que é psíquico, entre o mundo externo e o mundo interno. (FREUD, 1927)

    Ele também demonstra, o que é mais importante para nossa tese, que o processo não termina neste momento, mas prossegue por toda a vida como incorporação da autoridade. Afirma ele:

É fácil demonstrar que o ideal do ego responde a tudo o que é esperado da mais alta natureza do homem. Como substituto de um anseio pelo pai, ele contém o germe do qual todas as religiões evolveram. O autojulgamento que declara que o ego não alcança o seu ideal, produz o sentimento religioso de humildade a que o crente apela em seu anseio. À medida que uma criança cresce, o papel do pai é exercido pelos professores e outras pessoas colocadas em posição de autoridade; suas injunções e proibições permanecem poderosas no ideal do ego e continuam, sob a forma de consciência (conscience), a exercer a censura moral. A tensão entre as exigências da consciência e os desempenhos concretos do ego é experimentada como sentimento de culpa. Os sentimentos sociais repousam em identificações com outras pessoas, na base de possuírem o mesmo ideal do ego. [...] A religião, a moralidade e um senso social - os principais elementos do lado superior do homem - foram originalmente uma só e mesma coisa. Segundo a hipótese que apresentei em Totem e Tabu, foram filogeneticamente adquiridos a partir do complexo paterno: a religião e a repressão moral através do processo de dominar o próprio complexo de Édipo, e o sentimento social mediante a necessidade de superar a rivalidade que então permaneceu entre os membros da geração mais nova. (FREUD, 1927)

    Em seu livro Totem e Tabu, Freud, falando sobre obsessão (dos neuróticos),[1] afirma que “a [...] mais óbvia coincidência das proibições obsessivas [...] com o tabu está em que são igualmente desprovidas de motivação e enigmáticas em sua origem” (2013, p. 21). Há um paralelo formidável também com a internalização da autoridade pelo superego, que embora descrito pelo psiquiatra como forma de superação do Complexo de Édipo, atua de maneira inconsciente como intromissão do Id no Ego. Freud prossegue a explicação:

Apareceram um belo dia e têm de ser observadas, devido um medo invencível. É desnecessária uma ameaça de castigo externa (uma consciência) de que a transgressão ocasionará uma intolerável desgraça. O máximo que um doente obsessivo pode comunicar é o vago pressentimento de que uma determinada pessoa de seu ambiente será prejudicada por tal transgressão. Não se sabe qual será este prejuízo, e mesmo essa pouca informação é obtida mais por ocasião dos atos expiatórios e defensivos [...] do que das proibições mesmas. (FREUD, 2013, p. 21 e 22)

    Como podemos notar, há mais semelhanças ainda entre os tabus e as determinações do superego para as quais a sanção apesar de temida não é clara, possivelmente até desconhecida. É bom lembrar que essas determinações do superego constituem segundo as próprias palavras de Freud o mais nobre de nosso ego. Estão relacionadas à nossa civilidade como podemos encontrar em outro livro dele: O mal estar da civilização onde demonstram que as instituições civilizatórias como escolas e igrejas castram o que há de mais natural e original no sujeito, mas possibilitam a civilização, a convivência civilizada.

    É sobre esse caldo todo que procuraremos entrecruzar as informações e tentar demonstrar a factibilidade da tese que é o máximo que poderemos fazer, provar sua veracidade fica para pesquisadores mais argutos e com maior conhecimento das partes. Primeiro é preciso demonstrar uma possível relação entre a compreensão filosófica e a psicológica da passagem da primeira para a segunda fase da modernidade[2]. Depois será tentado correlacionar a obra Carta ao Pai de Franz Kafka com as manifestações do superego e as mudanças ocasionadas pelo período, tanto do surgimento no autor do superego quanto com as relações societárias percebidas a partir da segunda fase do modernismo.

    Cabe então fazer uma breve contextualização, já que o início já está longe, tentando correlacionar os conceitos sobre a mudança da percepção entre as fases da modernidade. É interessante lembrar que a primeira fase está alicerçada (ou fundada, não sei qual termo expressa melhor) na autonomia do sujeito, ou seja, de um eu (ego) independente. É bom lembrar que o mais autentico da modernidade, o iluminismo, firma-se precisamente na oposição entre a idade da luz (da razão, podemos traduzir precariamente em um ego) e a idade das trevas (onde a razão não tem domínio, portanto anterior ao ego o que pra Freud seria um Id ainda não domesticado) [3]. A segunda fase da modernidade surge exatamente da descoberta de que o sujeito não é tão autônomo como se pensava.[4] Curiosamente o superego é exatamente a constatação feita por parte do Id ao domínio egóico. Para Freud, ao contrario do que comumente se pensa as três instancias[5] não são independentes, sequer são definitivamente separadas. Há uma parte do Id (inconsciente) restante dentro do Ego (consciente) e parte desse Id se transforma em Superego. Essa parte do Inconsciente transformada se transforma numa instancia que está sempre a cobrar as falhas do Ego. A segunda fase da modernidade não nasce justamente com esse pensamento: a fragilidade do sujeito (eu, ego) ou da racionalidade do sujeito ou do sujeito racional? Obviamente raciocinar por paralelismos não pode assegurar veracidades, só garante semelhanças, mas o que se pretende é tão somente levantar um assunto, demonstrar sua viabilidade.

    Rosa afirma que Franz Kafka “[...] trata de modo constante e progressivo o tema da Lei e, em especial, da Lei paterna”.  Ela exemplifica isso ao revelar que o escritor considerou a possibilidade de publicar um volume intitulado "Punições", que incluiria as obras: O veredicto (1912), A metamorfose (1915) e Na Colônia Penal (1914). Ao descrever a obra, Rosa mostra como a sombra da autoridade paterna debilita o autor:

Em O Veredicto (KAFKA, 1998[1912]), surpreendemo-nos com o despertar aparentemente imotivado e caprichoso da ira paterna, ira que dará lugar ao enunciado de uma sentença de morte ("eu o condeno à morte por afogamento") que o filho se apressará em cumprir. Em A Metamorfose (KAFKA, 1965[1915]), um dia o filho acorda transformado em inseto e enfrenta o poder destrutivo do pai. Em Na Colônia Penal (KAFKA, 1998[1914]), temos um observador que assiste a uma cerimônia de tortura e execução, cerimônia levada a efeito por uma máquina, operada por um oficial, que escreve nas costas de cada condenado a sentença que lhe cabe: o sujeito recebe assim, na carne, o peso da Lei.

    A própria perda de potencia do sujeito na segunda fase da modernidade está também bem expressa em Kafka, segundo Carone apud Rosa:

[...] diante do impasse moderno da perda da noção de totalidade, aquele que narra, em Kafka, não sabe nada ou quase nada sobre o que de fato acontece - do mesmo modo, portanto, que o personagem. Trata-se, quando muito, de visões parceladas, e é essa circunstância que obscurece o horizonte da narrativa e obriga quem lê a mapear por dentro a falsa consciência se se quiser, a alienação -, pois o narrador não tem chance de ser um agente esclarecedor ou 'iluminista' (CARONE apud ROSA).

    Outros traços como a perversidade do Superego e como ele fragiliza o Ego com as suas constantes criticas infundadas também estão presentes em Kafka. Benjamin apud Rosa mostra como em vários livros de Kafka,

[...] o pai é a figura que pune. A culpa o atrai, como atrai os funcionários da Justiça. Há muitos indícios de que o mundo dos funcionários e o mundo dos pais são idênticos para Kafka. Essa semelhança não os honra. Ela é feita de estupidez, degradação e imundície. O uniforme do pai é cheio de nódoas, sua roupa de baixo é suja. A imundície é o elemento vital do funcionário (BENJAMIN apud ROSA).

    O sujeito (ou o ego) é tão fragilizado que mesmo o pai, embora sua autoridade persista se torna o mesmo nada que os personagens angustiados de Kafka. É como se os homens fosse niilizados segundo Rosa:

A atração pela culpa une o pai aos funcionários da Justiça, degradando-os e lançando na abjeção o mundo do funcionalismo e em seu funcionamento burocrático. Se nos servirmos da teoria da burocracia, tal como a concebeu Max Weber (2010) em seu A ética protestante e o espírito do capitalismo, encontramos entre seus elementos definidores uma impessoalidade que faz com que os funcionários se limitem a cumprir tarefas em um funcionamento considerado completamente previsível, dado que fundado em normas e regulamentos rígidos que acabam sendo um fim em si mesmos. Além dessa última, a burocracia gera disfunções tais como um formalismo excessivo, uma conformidade à rotina, uma incapacidade de lidar com a informalidade e a variabilidade humana e, essencial para o que nos interessa no momento, uma despersonalização. Posto isso, ao aproximar o pai dos funcionários da Justiça, Kafka deixa subentendida uma leitura da função paterna não apenas pela via de uma satisfação pulsional perversa, uma vez que atraídos pela culpa, mas também pela via da burocracia, ou seja, da impessoalidade, da despersonalização, [...] do anonimato.

    Portanto, os textos de Kafka, de forma metafórica espelham o seu tempo com sujeitos debilitados e oprimidos por suas obrigações, por uma sociedade burocrática. A burocracia é fruto da modernidade e é exaltada por Hegel, por exemplo, um dos filósofos que mais exaltaram o progresso do mundo moderno e a sociedade burocrática como espaço da liberdade. Kafka demonstra exatamente o oposto, pois, apoia-se no espirito de seu tempo já bastante influenciado pela alienação de Marx, o Inconsciente de Freud e a crítica da razão de Nietzsche.

    Basta ler trechos do inicio da carta de Franz Kafka a seu pai para perceber como o poder paterno repercute nele como um apequenador que o torna quase um não-sujeito. Mostra como o psicológico torna a autoridade do pai, mesmo fora de seu papel típico, grandiosa e assustadora. Vejamos:

Querido Pai:

Você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Como de costume, não soube responder, em parte justamente por causa do medo que tenho de você, em parte porque na motivação desse medo intervêm tantos pormenores, que mal poderia reuni-los numa fala. [...] também ao escrever, o medo e suas consequências me inibem diante de você e porque a magnitude do assunto ultrapassa de longe minha memória e meu entendimento. [...] Naturalmente não digo que me tornei o que sou só por influencia sua. Seria muito exagerado (e até me inclino a esse exagero). É bem possível  que, mesmo que eu tivesse crescido totalmente livre da sua influência, eu não pudesse me tornar um ser humano na medida do seu coração. Provavelmente seria um homem sem vigor, medroso, hesitante, inquieto [...], mas completamente diferente do que sou na realidade [...] Eu teria sido feliz por tê-lo como amigo, chefe, tio, avô, até mesmo (embora mais hesitante) como sogro. Mas justamente como pai você era forte demais pra mim, principalmente porque meus irmãos morreram pequenos, minhas irmãs só vieram muito depois e eu tive, portanto, de suportar inteiramente só o primeiro golpe, e para isso eu era fraco demais. (KAFKA, 1997, p.7, 9 e 10)

    Como se vê demonstrando muitos dos os elementos do mito da formação do superego, tal como a fragilidade com relação ao adulto que detém poderes que ele não dispõe e que torna a luta desigual.  No mesmo livro estão presentes também o temor da autoridade provocado pelo superego e a fragilização da autonomia do sujeito que mesmo podendo decidir sem nada que materialmente ou realmente o entrave, se torna um vacilante, inseguro das decisões mais seguras que pudesse tomar.

 

Referencias:

KAFKA, Franz. Carta ao Pai. São Paulo: Companhia das letras, 1997. 88p.

FREUD, Sigmund. Ego, Id e outros trabalhos – volume XIX de Obras Completas de Freud. Londres: Hogarth Press e Instituto de Psicanálise, 1927.

FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2013. 169p.

HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 540p.

NERY, Daniel. A discussão filosófica da modernidade e da pós-modernidade. Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.13, 2011 in http://www.ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/revistalable/3_DANIEL_NERY_DA_CRUZ.pdf

(http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=1984-0292)

ROSA, Márcia. Franz Kafka: a ultrapassagem da burocratização da instância paterna e da voz áfona do supereu.  Fractal : Revista de Psicologia vol.23 no.2. Rio de Janeiro, 2011 in (http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=1984-0292)



[1] É bom não se impressionar obsessivamente pela palavra que para alguns ainda é tabu apesar de vivermos numa sociedade neurótica e obsessiva (vejamos o consumo, o medo, a insegurança pessoal, etc.).

[2] A conceituação das duas fases está no início do texto.

[3] Em Ego, Id e outros trabalhos, Freud mostra que o Ego é uma domesticação de parte do Id ainda na pré-história.

[4] Os três principais pensadores que introduziram essa dúvida já foram anteriormente citados: Freud, Marx e Nietzsche.

[5] Id, Ego e Superego

O sabiá sabia assobiar

  Assim cantou o sabiá Como sempre Sabia assobiar Com a melodia assombrar E o ritmo encadear O sol sobe e a lua baixa As estrela...