Acompanham

Mostrando postagens com marcador Arendt. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Arendt. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 23 de setembro de 2025

É hora de política

         


 

      O Congresso brasileiro durante os governos Temer e Bolsonaro foi muito sensível aos Lobbys econômicos empresariais aprovando pautas que além de danosas são absurdamente impopulares mesmo com ajuda da mídia cujo os donos são parte de uma mesma elite financista. De dezembro do primeiro ano de Bolsonaro o Congresso foi libertando de qualquer amarra e até mesmo progressivamente dos lobbys porque percebeu que não precisa mais do apoio dos grupos organizados porque podem ser eleitos na base do dinheiro bruto inclusive inflacionando o mercado propositalmente para restringir a oferta. Ou seja, os deputados estão fazendo dumping.

É preciso que os grupos populares, que a base organize seus lobbys não só pra fazer lobbies, mas para fazer abaixo-assinados, realizar protestos... constranger os parlamentares. É preciso pipocar pelo Brasil vaquinhas para colocar os rostos dos traidores apoiadores da PEC das Quadrilhas de cada estado no seu domicilio eleitoral. Se alugarmos outdoors por uma semana pra expor os Joãos Silverios e os Judas e ameaçarmos fazer outras vezes... os legislativos vão se tornar mais cautelosos.

Hannah Arendt em Condição Humana foi mestra em nos mostrar como fomos regredindo de majoritariamente construir coisas, inovar para trabalhar para sobreviver. Ocupar todo o nosso tempo com a própria sobrevivência ficando sem tempo para agir. Agir na gramatica arendtiana é colocar algo novo mundo tanto que o nascimento é uma espécie de ação. Agir é uma atividade pública por excelência em contraponto a economia que cuida do privado. A praça publica tem sido as redes antissociais que são no mínimo tuteladas pela economia. Na melhor das hipóteses capitalista. Na mais provável tecno-feudalista. É preciso tornar as ruas e praças o espaço público novamente.

sábado, 7 de junho de 2025

Da Política à Economia Política: da democracia à poliarquia

 




A Política na Antiguidade, ou no discurso presente ainda em boa parte da Idade Média, visava ou pregava a república, onde o bem era visado por todos e este se sobrepunha a qualquer interesse individual ou de grupos. Até porque se tinha a noção evidente de que o cidadão só existe por causa da cidade, assim como a política dependia fundamentalmente da polis. Assim, deste modo, as primeiras frases de A Política são:

 

§ 1. Sabemos que toda cidade é uma espécie de associação, e que toda associação se forma tendo por alvo algum bem; porque o homem só trabalha pelo que ele tem em conta de um bem. Todas as comunidades, pois, se propõem qualquer bem – sobretudo a mais importante delas, pois visa a um bem maior, envolvendo todas as demais: a cidade ou sociedade política. (ARISTÒTELES, 2009, p.13).

 

Tanto na Idade Antiga, quanto na Idade Média (quem preferir pode substituir os termos por Escravismo e Feudalismo) ainda imperam modelos políticos centralizadores: Monarquia, Aristocracia, Democracia... todos modelos que por mais participantes que tivessem  sempre desejavam no uno, na única ideia aceita esta ora pelo medo, pelo respeito ou pelo consenso. Os homens em seus múltiplos desejos, múltiplas necessidades tinham que se submeter a um único agir porque quem agia era a polis, melhor dizendo, o Estado e não o individuo dentro deste.

Para se mudar um modo de agir mudava-se o Estado. Esse é praticamente o pano de fundo de muitas obras antes de Nicolau Maquiavel, sobretudo em A política, de Aristóteles: cada povo tem o estado que merece, cada cultura tem um tipo diferente de governo adequado, resumindo até de forma bastante perigosa, mas tornando bastante clara a importância vital do Estado nesses momentos históricos.

Mas com o surgimento do capitalismo no fim da Idade Média e sua pungente consolidação na Idade Moderna, aos poucos a política vai perdendo a importância para a economia política. Basta analisarmos lexicamente a troca do termo comunidade, que ressalta o que é comum, pelo termo sociedade, termo econômico e contratual, durante a idade média e sua consolidação na idade moderna instaurando uma grande hegemonia hoje.

Quanto mais os interesses divergentes e ao mesmo tempo em que consolidavam a própria hegemonia em sua diversidade, mais o Estado perde a sua importância como agente, como promotor da política; mais se torna mais evidente a vida fora do Estado: a sociedade civil. Mais se torna evidente o homo laborans de Hannah Arendt que necessita trabalhar em uma tarefa sem sentido para ele pois não domina o que faz, ao contrário é dominado pelo mesmo e o faz unicamente para sobreviver (isso num sentido duro) e, que portanto não tem tempo para agir, não tem tempo para a política.

Mas essa mesma sociedade (é bom lembrar a carga do termo) cria a sociedade civil onde as pessoas se associam em nome de interesses comuns, mas não mais comuns a todos nem à polis ou Estado como um todo. Nasce assim uma “democracia pluralista (poliárquica e policêntrica) , em contraste com o ideal da democracia monística ou monocrática” (BOBBIO, 2000, p.85). Desse modo a democracia tem seu significado substituído, agora ela precisa ser plural, abranger e respeitar todos os pontos de vista, não precisa mais construir necessariamente o consenso.

Assim a política, assim como o capitalismo vive da pluralidade, do dissenso. Não tem outra razão de existir que não a de um grupo conseguir o poder para impor seus desejos aos outros e da esperteza para se manter no poder. É claramente uma economia política com a consolidação das ideias de competição, de funcionalidade, de eficiência.

Aliás, em nosso tempo, a imposição de um consenso desagrada a todos. Prefere-se um impasse permanente que nos impossibilite agir do que um consenso forçado por qualquer necessidade. Tem-se a impressão de ‘engolir a seco’. Assim em nosso tempo o não-político tem muito mais importância em nossas vidas.  A política como o espaço da ação por excelência, essa é uma definição clássica de política, acaba acontecendo muito mais fora do Estado, na sociedade civil, onde está o não-político. As fronteiras entre o político e o não-político à medida que a sociedade civil cresce de importância vão se tornando mais tênues até que a política invada de vez através da biopolítica.

Assim a todo o momento agimos politicamente, mas não fazendo política. Em todo instante somos governados integralmente, inclusive nossos corpos pela política. Desse modo a morte da política na modernidade ou contemporaneidade constitui-se no império totalitarista da política que desse modo não deixa mais espaço para nada ou parafraseando Agamben: a política se tornou teologia e a teologia se tornou política.

 

 

Referências:

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I; tradução de Henrique Burigo. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

AGAMBEN, Giorgio. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo; tradução Selvino G. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2011.

ARISTÓTELES. A política; tradução Nestor Silveira Chaves. 2ª ed. Bauru, SP: EDIPRO, 2009.

BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos; organizado por Michelangelo Bonavero; tradução Daniela Becária Versiani. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

ZINGANO, Marco. Aristóteles: tratado da virtude moral; Ethica Nicomachea I 13-III 8. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.

 

 

quinta-feira, 5 de junho de 2025

O DESLOCAMENTO DA POLÍTICA DO OBJETIVO DA POLÍTICA DO ZOÉ



 Pretendemos muito antes de propor qualquer solução possível, expor os efeitos captados por Giorgio Agamben através de sua leitura de mundo, do seu principal influenciador Michel Foucault e de Hannah Arendt ocasionados pela mudança do centro da política do zoé para o bíos.

Os gregos não possuíam um termo único para exprimir o que nós queremos dizer com a palavra vida. Serviam-se de dois termos, semântica e morfologicamente distintos, ainda que reportáveis a um étimo comum: zoé, que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais, homens ou deuses) e bíos, que indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo. (AGAMBEN, 2010, p.9)

 

Com essa passagem um maior evidenciamento da biopolítica e do controle sobre a ação humana, que classicamente é o que definia a política. O interesse da política na Idade Antiga e boa parte de Idade Média se restringia aos que dela participavam e por ela se interessavam. Portanto tinha enorme importância se interessar e participar das decisões políticas, pois não se legislava pelo interesse geral, ou seja, dos que não participavam dela.

Tal é, pois, o fim principal que eles se propõem comum ou individualmente. Algumas vezes, também, é unicamente para viver juntos que eles se reúnem e estreitam os laços da sociedade política. Porque talvez haja um pouco de felicidade no próprio fato de viver assim , sempre que a vida (bíos) não seja sobrecarregada de males demasiado difíceis de suportar.  O que há de certo é que a maioria dos homens suporta muitos males devido ao seu agarramento à vida (zoé), como se ela encerrasse em si própria uma doçura e um encanto naturais. (ARISTÓTELES, A Política 1278b, 23-31)

 

Portanto em nenhuma hipótese poder-se-ia delegar poder ou esperar que suas demandas fossem atendidas sem agir. Para Aristóteles, os terrenos da ação por excelência eram a política e a ética.

E quando, em um trecho que deveria tornar-se canônico para a tradição política do Ocidente (1252b, 30), define a meta da comunidade perfeita, ele o faz justamente opondo o simples fato de viver (to zên) à vida politicamente qualificada (tó eû zên): ginoméne mèn oûn toû zên béneken, oûsa dè toû eû zên “nascida em vista do viver, mas existente essencialmente em vista do viver bem” (AGAMBEN, 2010, p.10)

Entretanto quando a política passa a se interessar por tudo e todos, desde o seu princípio na Idade Média ainda, mas que alcançou a sua onipresença apenas na Idade Moderna, passa a controlar não só o Estado ou suas leis, mas a absolutamente todos os corpos.

“Por milênios, o homem permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivente e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente” (...) Segundo Foucault, o “limiar de modernidade biológica” de uma sociedade situa-se no ponto em que a espécie e o indivíduo enquanto simples corpo vivente tornam-se a aposta que está em jogo nas suas estratégias políticas. (AGAMBEN, 2010, p.11)

 

Deste modo, toda a ação passa a ser controlável e, mais que isso, controlada. Os cidadãos perdem o seu poder de influenciar os destinos da “polis” por assim dizer. A ação, no sentido arendtidiano torna-se algo raro e precioso e a economia onipresente assim como a vida comum, que não fazia parte das origens da política.

Por outro lado, já no fim dos anos cinquenta (ou seja, quase vinte anos antes de La volonté de savoir) Hannah Arendt havia analisado, em The human condition, o processo que leva o homo laborans e, com este, a vida biológica como tal, a ocupar progressivamente o centro da cena política do moderno. Era justamente a este primado da vida natural sobre a ação política que Arendt fazia, aliás, remontar a transformação e a decadência do espaço público na sociedade moderna. [...] É provável, aliás, que, se a política parece hoje atravessar um duradouro eclipse, isto se dê precisamente porque ela eximiu-se de um confronto com este evento fundador da modernidade. [...] Se  algo caracteriza, portanto, a democracia moderna em relação à clássica, é que ela se apresenta desde o início como uma reinvindicação e uma liberação da zoé, que ela procura constantemente transformar a mesma vida nua em forma de vida e de encontrar, por assim dizer, o bíos da zoé. Daí, também, a sua específica aporia, que consiste em querer colocar em jogo a liberdade e a felicidade dos homens no próprio ponto – a “vida nua” – que indicava a sua submissão. [...] Tomar consciência dessa aporia não significa desvalorizar as conquistas e as dificuldades da democracia, mas tentar de uma vez por todas compreender por que, justamente no instante em que parecia haver definitivamente triunfado sobre seus adversários e atingido seu apogeu, ela se revelou inesperadamente incapaz de salvar de uma ruína sem precedentes aquela zoé a cuja deliberação e felicidade havia dedicado todos seus esforços. (AGAMBEN, 2010, p. 11, 12 e 17)

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Três conceitos - três recortes - dois autores fundamentais sobre Política


 

A) Hannah Arendt

“A Condição Humana (The Human Condition), publicada em 1958, pretendia, portanto, com base numa antropologia filosófica, responder à pergunta que fora deixada sem resposta em Origens do Totalitarismo: em que condições um universo não totalitário é possível? A análise toma por objeto a vita activa (vida ativa em oposição ao que a filosofia tradicional chamada de vida contemplativa), e a vê segundo três modalidades fundamentais: trabalho, obra e ação. Tomado no processo biológico das necessidades e da sua satisfação, o trabalho é uma atividade indefinidamente repetitiva, voltada para a satisfação das necessidades vitais: só produz o que é perecível. É à obra que cabe produzir coisas duráveis, artefatos e objetos que não sejam aniquilados assim que consumidos. Mas essa durabilidade é ainda relativa e está submetida, em ultima instância, à utilidade e ao ciclo dos meios e dos fins. Resta, pois, a ação única capaz de transcender o ciclo da necessidade vital e da cadeia infinita dos meios e dos fins. Inseparável da palavra, a ação é revelação do quem num espaço público de surgimento em que cada um é visto e ouvido por outros. Embora não seja privilégio apenas do ator político (no sentido estrito do termo), a ação enseja a constituição de um espaço público – distinto do domínio privado – em que se estende a rede das relações humanas. A condição humana de pluralidade, correlata da ação e da palavra, é para Arendt um verdadeiro conceito fundador que se encontra em todas as etapas de sua análise. (...) Mas toda a dificuldade é que a ação que nos insere no mundo não tem outra validação além do seu próprio aparecer. Não deixando atrás de si – como já sabiam os gregos – nenhum produto fabricado, introduzindo os homens num tecido de relações que eles não dominam, a ação é eminentemente frágil, seus resultados são imprevisíveis e não podem ser desfeitos”. (HUISMAN, 2001, p.60 e 61)

 

B) Aristóteles

“O termo ‘política’ é essencial. Vem do grego polis, ‘cidade’, ou ainda ‘Estado’. ‘Política’ é a possibilidade de civilizar, abrandar os costumes do Estado através de instituições, da cultura. O Estado é sem dúvida a forma mais elaborada da sociedade: só ele tem por finalidade a ‘vida bem-aventurada’ dos homens livres. Verdadeiro ‘animal político’, o homem não pode, sozinho ou no seio de uma família ou de uma aldeia, assumir ou realizar seus desejos e aspirações de modo satisfatório; também não pode atingir essa perfeição à qual chega o Estado: este vale em si mesmo e por si mesmo”. (HUISMAN, 2000, p.434 e 435)

 

C) Habermas

“As ações humanas (quando orientadas para o sucesso) têm como mediação o dinheiro (economia) e o poder (Estado). Mas o universo da intercompreensão tem como mediação os ‘atos de fala’. (...) A ação comunicativa remete às interações mediadas pela linguagem, em que, retomando a expressão de Habermas, ‘todos os participantes, por ações de linguagem, perseguem (...) para obterem um acordo que propicie fundamento para uma coordenação consensual dos planos de ação perseguidos individualmente’”. (HUISMAN, 2000, p.524)

quarta-feira, 28 de maio de 2025

A oralidade, a escrita, a máquina de escrever e o computador

              


          Um técnico brasileiro com cidadania na capital mais nova do Brasil. Talvez o maior técnico brasileiro desencavou uma grande verdade: todos os técnicos campeões do mundo pela seleção brasileira eram brasileiros. Notável verdade! Todas as grandes obras do século XX e talvez do XIX foram escritas em máquina de escrever. Outra verdade! Talvez na década passada (e, portanto, muito recentemente) ainda existissem autores que escrevessem em maquinas de escrever. Hoje devem ser incrivelmente raros dada a facilidade que os processadores de texto possibilitam para escrever, reescrever, mexer no texto.

Não há menor dúvida de que a maquina de escrever produz textos melhores que o computador por seu ritmo mais lento e as constantes possibilidades de reflexão. Como não há plena certeza de que a escrita é ainda muito melhor. Produz textos muito mais elaborados pela possibilidade de escolher palavra a palavra dentro da própria escrita, sobretudo para alguns como eu que precisam desenhar as palavras devido a sua péssima ortografia. Os gregos até a sua decadência não aceitavam sequer escrever suas obras. Certamente o Theodor Adorno certamente seria fã disso porque cada exemplar seria de certo modo original por causa do telefone-sem-fio ou fofoca, ou seja, a cada narração de uma obra haveria peculiaridades.

Até a invenção da impressão, as obras eram escritas e copiadas a mão. O que até garantia certa originalidade a cada obra ou conjunto de obras. Depois de Gutemberg imprimir a bíblia, imagino que muita gente protestou contra aquela pasteurização toda das obras. Os autores até gostaram porque as obras passaram a ser mais fidedignas ao que escreveram. Os leitores perderam a originalidade de seus artefatos comprados. A história anda e ninguém escapa das ações dela. Sim, é possível que muitas obras daqui em diante continuem a ser concebidas em escrita manual. Mas é extremamente improvável que o sejam através de maquinas escrever, visto que essas já são uma mediação muito artificial. Nesse nível de artificialidade os computadores são incrivelmente melhores. Na escrita não. Porque a escrita é um exercício e um desenhar ao mesmo tempo.

Ou seja, um fato do passado não é verdade indefinidamente. Até hoje nenhum técnico estrangeiro foi campeão da copa do mundo de futebol. Não quer dizer que não o possam ser. Nem que futuramente haja mais técnicos estrangeiros campeões do mundo que nacionais. Que o Brasil seja o país pioneiro nisto, como já foi em muitas outras coisas. Aliás, acho temerário qualquer ser humano ser profeta. Temos demasiados exemplos de grandes pensadores que foram justamente contestados e até descredibilizados por em algum momento quererem descrever um futuro. O passado só serve para evitar a repetição de erros futuros. Os acertos? Esses precisam sempre ser construídos. As ações, no sentido arendtidiano, é sempre um nascimento. É sempre algo novo.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Vamos conversar sobre política e ética?

 


Como a base da concepção de Hannah Arendt de política é a idéia grega de uma política que primeiramente era uma interação e que não se separava da ética, achei importante discutirmos a relação entre política e ética numa concepção moderna ou pós-moderna, na qual política e ética encontram grandes problemas em conviver.

É por isso que julgo importante tentarmos responder algumas perguntas como: Ética na política, existe? Que ética é válida? Servem-lhe os mesmos parâmetros das outras éticas? Existem éticas particulares? Origens diferentes? O lugar de Nicolau Maquiavel. Poder e Estado. A concorrência de grupos pelo poder. Eleições são representativas? Os partidos o são? Existem partidos?

Pretendo nestas poucas linhas traçar hipóteses, na verdade pra mim várias teses bastantes defensáveis, porém polêmicas por afrontar a visão predominante na sociedade acerca do fenômeno ou dos fenômenos envolvidos. A primeira tese que eu queria afirma que a política não é um ofício, mas sim uma atividade e que, portanto, não lhe pode caber um código de ética em hipótese nenhuma. Aos ofícios da administração pública sim, a eles cabe a ética no desenvolvimento das funções.

Outra consideração necessária, e nesta encontro sólido apoio, é a contestação a éticas específicas. Não adianta um técnico do saber prático respeitar o código de ética de sua profissão e ser eticamente um mau cidadão. Então entendemos que não se poderem usar várias éticas de acordo com a circunstância. Não se pode ter uma ética profissional, outra de cidadão e outra de parlamentar por exemplo. A ética pessoal, geralmente a de cidadão deve servir como orientação em todas as ocasiões. Aliás, o termo código de ética é uma contradição em si porque ética não pode ser imposta. Ética não pode ser lei. Ética deve ser aceita, escolhida, adotada.

Se você puder aceitar esse prelúdio como verdadeiro, pelo menos provisoriamente, poderei desenvolver teses outras mais a frente.

Apesar de não necessitar ser alvo de uma ética específica, se essa pudesse existir, a especificidade e importância da política provocam o desejo dos cidadãos de que algumas normas a norteiem. No entanto por terem naturezas diferentes, uma possível ética na política não pode se servir dos mesmos parâmetros que as éticas funcionais. É bom lembrar que eu estou fazendo uma concessão, não creio em éticas específicas para determinadas profissões, apenas consinto que existam adaptações de uma ética geral à situações específicas.

Nicolau Maquiavel, filósofo estudioso dos romanos e conselheiro de uma forte família florentina, da qual saíram muitos Papas numa época em que a igreja agregou ao seu poder temporal, o poder político, é o criador do mais eficiente, não diria ético, manual de fazer política: O Príncipe. Seus práticos conselhos são acatados por políticos das mais diferentes ideologias, origens e representatividade porque são extremamente eficazes. Ele enumera inúmeros meios, nada probos, para alcançar o fim último de se manter no poder. Então a política que classicamente tem incontáveis fins, nesse caso acaba tendo um principal, quando não único, esdrúxulo fim.

Muitos pensadores como o italiano Antônio Gramsci se dedicaram a estudar o poder e detectaram a necessidade sentida por ditadores personalistas ou grupos em particular de se manterem no poder. Gramsci desenvolve uma teoria interessante baseada na cultura para determinar os mecanismos que estes usam para manter a sua hegemonia, outro notável conceito desenvolvido pelo italiano. Na verdade há todos esses mecanismos e é necessário segurar uma hegemonia, que é sempre muito instável, porque inúmeros grupos concorrem por esse poder.

Todos esses mecanismos, muito melhores desenvolvidos e explicados após Gramsci, estão presentes na política do cotidiano seja num bar, escola, restaurante, teatro, no senado e mais nitidamente ainda nas eleições, onde os mais variados estudos chegam à conclusão de que os mitos e desejos são muito mais importantes para a decisão de voto que a racionalidade. Por essa razão, creio que as eleições, pelo menos racionalmente, não são representativas. Quanto aos partidos, se fossemos observar estritamente as condições necessárias para se constituir uma agremiação do tipo um objetivo em comum, ideologia clara e comum entre os participantes poderíamos taxá-los de massa de manobra, nunca de grupo.

Bom... me desculpem todo o contorno ao tema, o qual demonstrarei que foi válido. Eu já tinha negado a pertinência de éticas particulares. Havia afirmado que uma pessoa só pode ter como regra de conduta um conjunto de princípios que determina todo o seu comportamento seja como pai, filho, irmão, médico, advogado, torcedor de uma equipe esportiva ou senador. Falei da particularidade da política como uma atividade e não um ofício ou função, os quais são denominados pelos cargos públicos aos quais são eleitos. Depois me embrenhei pelo pensador que mais orienta os políticos a exercerem a política com eficácia e potência, mas considerando que embora seus conselhos sejam pertinentes e eficazes, os mesmos são quase sempre contrários a uma ética de convicção. Expliquei também o motivo da utilização do conselho do estudioso romano: a permanência no poder. Usei uma ideia de Gramsci para fazer um complemento do assunto e fechar a seção. Cabe-me explicar o porquê de tudo isso. O objetivo da ética é nortear o sujeito a fazer racionalmente as escolhas de modo a contemplar seu ideal de mundo. Então quando dizemos que o critério de voto nas eleições tem muito pouco de racional estamos tirando a ética do objetivo de todos os candidatos que quando a evocam se referem à imagem ou o mito dela, quando muito.

A política, conforme eu já havia dito, tem se esmerado nos conselhos de Maquiavel e até de Gramsci e seus posteriores para se manter no poder. Isso é de fato uma redução muito mesquinha da política. Creio que a política é a atividade mais ampla e absorsiva do universo. Como uma atividade ampla que abarca de alguma forma tudo, deve ser limitada por pouquíssimas regras. É bom lembrar, regras não são leis, acata-as quem concorda com a justeza destas. Certamente nenhuma atividade pode ter ética específica, muito menos a política como uma atividade negociativa, associativa ampla. Então todos devemos carregar nossas éticas pessoais para qualquer lugar que estejamos. Não creio que os políticos devam ser exceção. Eles devem usar a ética pessoal deles, mesmo estando representando eleitores que votaram neles. Ética não pode ser doada ou emprestada. O que eu gostaria de propor é que uma ética política poderia se fundar em três regras de ouro:

Sempre manter-se aberto ao diálogo;

Dialogar sempre com honestidade de intenções e princípios;

Explicitar sempre com clareza suas intenções e a origem delas.

Creio que o que eu consigo conceber até agora sobre o assunto é isso. Se você puder me ajudar com sugestões para melhorar a concepção, ficarei grato.

sábado, 10 de maio de 2025

Por um paradigma não científico

 


Todos sabemos que o pensamento de cada época foi norteado por seu respectivo paradigma. Pelo menos assim nos parece após o livro Estrutura das Revoluções Científicas, do físico Thomas Kuhn. Os paradigmas são teorias fundamentais que foram baseadas cada qual em um tipo específico e diferenciado de ciência. Primeiro, na fase pré-científica, numa não ciência: a mitologia. Depois numa ciência pura: a matemática. Depois nas ciências aplicadas: uma física predominante sobre a biologia principalmente. Com o advento da psiquiatria, uma acentuação para o lado da biologia. Depois uma desconstrução de teorias universalistas e uma série de teorias específicas com pretensões paradigmáticas: baseadas no cinema, na antropologia cultural, na economia, ressurgimento das teorias mitológicas, teorias nucleares. Finalmente uma tentativa ainda em ação de uma síntese dessas diferentes teorias num paradigma tão abrangente como a ecologia como ciência.

Na verdade eu escrevi tudo isso só pra propor minha visão nesse assunto ( a qual posso mudar após discutirmos, mas creio ser razoável): creio que deveríamos esquecer a construção de um novo paradigma, como tal científico, e em vez disso aceitarmos a política (não a ciência política) como pensamento fundamental. Digo, a política na sua concepção mais clássica, que teve seu significado recuperado por filósofos como Hannah Arendt e Jürgen Habermas, como um domínio do diálogo e da criação de acordos, cuja a coerência não cabe a nenhum outro saber.

Nós sabemos que todos os paradigmas como científicos tentaram descredenciar suas falhas como o ganso verde que não pode ser ganso porque todos gansos são brancos então vira um fanso pra não estragar a teoria. Algo que viesse da política não teria essa falta de flexibilidade e não necessitaria descredenciar nenhum argumento assim tão facilmente.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

O amor é profundamente político

 


Muitos filósofos orgânicos como Montaigne e Voltaire (há quem não o considere) já incluíram o amor em seus ensaios ou em seus dicionários. Eu, que sou um mero mortal, venho jogar umas ideias que pretendem costurar uma concepção minha que tem bases volúveis em vários pensadores. Acredito ter costurado as bases com uma boa dose de necessário senso comum. Cabe-me propor o caráter estritamente político do amor, concepção que talvez cause algum incômodo (ou não) a algumas pessoas.

O amor é uma atividade política por excelência. Só se define e se traduz pela ação, pelo planejamento da ação e principalmente pelo sentimento da ação. O amor é um sentimento político porque sempre se refere a algo externo, mesmo se tratando do amor narcísico, porque esse se trata do amor à própria imagem, que é, portanto, um objeto externo (Quanto aos outros amores, não paira nenhuma dúvida de que universo, pessoas, deuses, humanidade sejam objetos externos). Outra faceta que demonstra o caráter político do amor é a sua interdependência com a ação, pois o amor só se expressa pelo desejo de alguma ação (ou pela ação), qual seja afagar a amada, fazer amor ou simplesmente estar próximo ou pensar nela ou em sua ideologia. Lembre-se que Hannah Arendt afirma que o planejamento da ação também é uma ação. Ainda outro fator demonstra o caráter político do amor, pois é ele (todos os tipos dele) que agrega as pessoas. É um sentimento eminentemente unitário.

Assim como a política, então, o amor só é factível entre mais de um objeto; palavra que aqui toma a desinência de pessoa, coisa, sentimento, percepção, devaneio ou imagem, um sentido amplo como é tomado em diversas ciências como a filosofia e a psicologia; só existe enquanto relacionada à ação, inexiste fora deste contexto; e a ação política é o que agrega as pessoas, pois as pessoas se unem no agir, no pensar do agir e no sentimento do agir tal qual no amor. É bom lembrar que em Hannah Arendt, bem como em outros, a interação é característica fundamental da política.

sábado, 19 de abril de 2025

A ética, a política e a história pessoal

 


As histórias pessoais são em última análise a base da história universal, a história mais ampla que existe, menos previsível e mais importante porque constitui o ambiente para todas as outras. Como já dissemos, é praticamente impossível prever como se encaixa e que resultado as ações individuais, ou a interação destas, tem na história universal. Mas quanto menor o âmbito da história, mais previsível é o resultado das ações. Como se fossem experimentos: quanto mais numerosos e mais fortes os limites mais determinados são os resultados destes.

Assim, determina-se a importância da ética como a parte da consciência que está sempre ponderando para alcançar o maior bem comum ou bem público. Toda ação na história pessoal, ou na história dos indivíduos ou história individual tem uma consequência direta previsível, embora não determinada. Assim avoluma-se a importância de agir bem. Aí entra a ética tão esquecida.

É verdade que a ética hoje é muito mais pragmática que bem intencionada. Natural numa sociedade em que os fins valem muito mais que os princípios. Assim uma ética da responsabilidade se torna imprescindível para mudar a história. É óbvio também que não podemos deixar para trás nossos princípios. Boa parte deles são inegociáveis por natureza, pois inobservados fatalmente a civilidade descambaria para a barbárie. Creio, na verdade, ser inexistente esse maniqueísmo pregado entre as éticas de convicção e de responsabilidade. É possível e desejável satisfazer as duas.

Agir bem não significa somente ir para as ruas lutar por direitos ou cumprir deveres. A conduta ética se define em cada ação, em cada interação. Por isso a ética é companheira inseparável da política para Sócrates, Aristóteles, Hannah Arendt ou Jüngen Habermas. Assim, o homem político não pode deixar de agir no mundo observando e refletindo sobre seus atos. Se aperfeiçoando para agir melhor. Carregando o fardo de em sua história pessoal criar as melhores peças possíveis do grande quebra-cabeça que será a história universal.

sexta-feira, 18 de abril de 2025

A pequena e a grande história

 


Toda a história do mundo não é composta por grandes atos isolados. Toda a história é fruto de uma contingência histórica anterior. Nada de grandioso acontece sem que se tenha criado um ambiente para o seu aparecimento. Por isso, insisti tanto nos primeiros minutos de hoje no longo texto sobre a dialética histórica. Sobre a ideia de que a síntese histórica é um efeito particular de seus termos anteriores: tese e antítese. Pode ser explicado por estes, mas não como uma adição, mas como uma reação química sobre a qual pouco se conhece dos reagentes e muito menos do ambiente.

A grande história é composta por centenas, talvez milhares, de pequenas historias. As historias individuais interferem à sua maneira nas histórias dos grupos, as dos grupos no das sociedades. Histórias menores são costuradas de maneiras particulares nas historias maiores. Por essa razão toda ação é histórica. Toda reação também o é. Mas o papel ocupado por cada historia menor nas maiores é sempre imprevisível, dado a enorme quantidade de variáveis que tornam imprecisa as análises.

Dessa limitação surge a ideia idealista do espírito da história em Hegel, prontamente refutada por Karl Marx que cai num mesmo fatalismo de Hegel por esse excesso de crença na na racionalidade instrumental. A mesma crença no progresso de Hegel, metamorfoseada num novo esclarecimento  levantamento da massa proletariada criada pelas condições históricas da iminente crise do capitalismo. A crença no progresso de Hegel chegava no fim da história. A de Marx, no fim do capitalismo: o Comunismo.

Mas, pouco importam essas considerações. O importante mesmo é a validade ética de devemos agir pelo bem do todo porque embora desconheçamos os efeitos históricos a médio prazo, sabemos que fizemos a nossa parte e do que depender de nossa pequena história, influenciamos a grande história dentro da nossa capacidade, para obter os melhores resultados possíveis de acordo com as circunstâncias existentes. Assim, a política é o ato público, é interação, sabes que somente a ação pode modificar a história.

terça-feira, 1 de abril de 2025

O imperativo técnico

 


Quando impera o individualismo e a técnica transforma o tempo criado em dinheiro só há pressa, pouca disposição de sentar e conversar. Isso atinge diretamente as ideias de Arendt e de Habermas. Hannah, como dissemos, vê a política como interação. Habermas, provavelmente a partir das constatações de Arendt, tocada pelo ocaso, crepúsculo, desaparecimento da política encontra a solução para o domínio da técnica na comunicação, interação tão pedida por Hannah Arendt.

Arendt vê na perda de importância da política e sua mudança de razão, não mais o bem público construído pela interação (direta ou indiretamente) de todos os cidadãos, passando a servir de pretexto para motivos individuais, o que leva ao totalitarismo como última consequência. Temos como exemplo os desmandos de muitos de nossos governantes visando vantagens individuais ou para seus grupos.

Fruto do declínio da política, ninguém mais se interessa por participar dos governos ou das decisões que influenciam a vida das pessoas. Nós sempre estamos interessados por nossas inquietações particulares. Habermas chegou a pensar em pôr no centro das decisões o diálogo com a teoria da ação comunicativa, mas as pessoas preferem delegar às outras especializadas em determinados assuntos à autoridade de decidir para decidir por elas. É só mais um aspecto do comodismo e da cultura da técnica. Assim, à grosso modo, "quem tem que fazer é quem sabe".  Isso acontece até com nossa política, na qual os cidadãos foram substituídos por políticos profissionais, técnicos da politica, portanto.

Assuntos incentivados por nós, mas levantados por eles, como, por exemplo: - eu acho que minha casa deveria ser azul. Eu ficaria muito feliz, confortável se fosse azul, mas vem um arquiteto e diz que tem que ser verde por mil razões técnicas. Eu descontente acato a decisão dele porque ele é um perito no assunto. Afinal quem sou eu? Um pobre coitado com senso estético pra discutir com um urbanista?

Do mesmo modo na política. São os técnicos que decidem. Não a comunidade. Mesmo nos orçamentos participativos (uma grande evolução) dá dó ver como os técnicos ignoram a população e como manipulam as falas. Até porque:

 

O meio da cultura do amoralismo é o treinamento de técnicos que supõem que os fins são dados (ou que não importam), de modo que suas preocupações são simplesmente com os meios, com as táticas, com as técnicas. Se às crianças não é dada a oportunidade de pesar e discutir tanto os fins quanto os meios e suas inter-relações , elas provavelmente tornar-se-ão céticas a respeito de tudo, exceto seu próprio bem-estar. (LIPMAN, 1990. p. 31)

segunda-feira, 24 de março de 2025

Parteiros de ideias

 


Assim como um excesso de individualismo minou a interatividade, o egoísmo dificultou, sobretudo, o aceitamento da pluralidade, conceitos fundamentais de política para a filósofa que melhor traduziu a filosofia política antiga de Aristóteles para a modernidade, a saber, Hannah Arendt. Sem esses dois valores fundamentais, perdemos boa parte de nossa capacidade crítica: não nos interessa entender o outro. Perdemos a capacidade de sermos parteiros e parteiras de ideias. Perdemos a capacidade da Maiêutica, a qual Platão explica muito bem com uma fala de Sócrates, deste modo:

Ora, em todo o resto, a minha arte obstétrica se assemelha à das parteiras, mas difere em uma coisa; ela [...] assiste as almas parturientes e não corpos. E minha maior capacidade é que, através dela, eu consigo discernir seguramente se a alma [...] está parindo fantasmas e mentiras ou alguma coisa vital e real. Pois algo eu tenho em comum com as parteiras: também sou estéril [...] de sabedoria. E a reprovação que tantos já me fizeram, segundo à qual eu interrogo os outros, mas, eu próprio, nunca manifesto meu pensamento sobre nenhuma questão, ignorante que sou, é reprovação muito verdadeira. E a razão é exatamente esta: Deus me leva a agir como obstetra, mas me interdita de gerar. Em mim mesmo, portanto, não sou nada sábio, nem de mim qualquer descoberta sábia que seja geração de minha alma. Entretanto, todos os que gostam de estar comigo, embora alguns deles pareçam inicialmente de todo ignorantes, mais tarde, continuando a frequentar minha companhia, desde que Deus les permita, todos eles extraem disso extraordinário proveito, como eles próprios e os outros podem ver. E está claro que não aprenderam nada de mim, mas de si mesmos encontraram e geraram muitas e belas coisas. (REALE, 1990, p. 99),

 

sábado, 15 de março de 2025

Pelo retorno da Política

 

A política como interação desde o alge da idade média perdeu sua força. Na idade moderna, com a criação dos Estados Nacionais, a política até teve um soluço de poder, mas com o progressivo andar da modernidade foi progressivamente perdendo sua hegemonia e, inclusive, sua autonomia. A economia tomou seu lugar racionalizando o mundo através da técnica que relega a todos uma particular função.

A casa, o domicílio toma uma dimensão vultuosa: a própria sociedade. A própria política se torna um trabalho como outra qualquer atividade econômica. Portanto deixa de ser política onde a pluralidade interage para alcançar um consenso. Creio que se quisermos recuperar a política e, consequentemente a ética, pois ética e política nesse modelo não se separam, é preciso acabar com a figura do político profissional. É necessário trocar seus altos salários por ajudas de custo e as inúteis reuniões diárias por reuniões pontuais para ações efetivas para deliberar sobre as cidades.

É preciso que os cidadãos se autossustentem com seus próprios ofícios e deliberem politicamente por vontade própria e não por necessidade (do salário). Assim, os candidatos serão eleitos pelo desejo dos eleitores e não por seus próprios desejos. Não seriam os candidatos que se apresentariam aos eleitores buscando desfrutar das benesses do poder em favor de si próprios, mas seriam os eleitores que escolheriam alguns para carregarem a responsabilidade de legislar e executar as decisões em prol da sociedade.

segunda-feira, 10 de março de 2025

Pluralidade novamente

 


Quem expôs mais completamente a relação entre pluralidade, ação e política foi Hannah Arendt, que atualizou sob um contexto extremamente ímpar, o nazismo, as ideias políticas gregas sobre a política. Além do mais, Arendt surge após a modernidade e a hegemonia dos valores ativos sobre os contemplativos. Numa época em que o trabalho torna-se talvez o fator mais forte a influenciar a subjetividade. Aliás, a própria subjetividade Kantiana é um diferencial fundamental dos modernos para os gregos. Mas para se entender bem um conceito é de muito auxílio buscar as origens dele. Sobre a pluralidade, nada melhor para entendê-la que um trecho da crítica de Aristóteles à República de Platão, o qual propõe uma comunidade de tudo assegurada por uma casta dirigente em um regime forte e fechado:

A comunidade política funda-se na colaboração de uma pluralidade de indivíduos diversos por capacidade e recursos, os quais, exatamente por estas diversidades interagem na troca recíproca de bens e serviços; é precisamente esta troca entre diversos que permite à comunidade política um nível de “autossuficiência” superior ao da família e ao do indivíduo. A synphonia política não pode ser transformada em homophonia. O projeto platônico, que pode parecer à primeira vista “belo, mas impossível”, na realidade não é sequer desejável, porque nega a essência pluralística da cidade; mesmo que fosse possível, não deveria ser realizado. “É, portanto, evidente que por natureza não pode haver uma cidade tão unida como alguém defende, e que aquilo que é apresentado como o máximo bem nas cidades é exatamente aquilo que as destrói”. (VEGETI, 2010 p.36 e 37).

Synphonia é a atuação de todos, todos podem discursar ao "mesmo tempo", como uma orquestra. Quer dizer cada qual de maneira diferente constrói um o mesmo objetivo, há sincronia, estão afinados, embora cada um toque um instrumento diferente. Homophonia é como se todos pensassem a mesma coisa, todos iguais, todos tocando um mesmo instrumento.

quarta-feira, 5 de março de 2025

Idéias magnanimamente aristotélicas

 


Hannah Arendt, e depois Jürgen Habermas, fizeram excelentes releituras de Aristóteles, sobretudo de suas ideias políticas. Souberam com maestria atualizá-lo. Mas o autor tem ideias interessantes que, creio eu, nem necessitariam de atualização se pegas em seu "espírito". O início do capítulo dois do livro quarto de A Política tem concepções interessantes que poderiam ser refletidas. Assim transcrevo literalmente o começo desse interessante capítulo:

É bom lembrar que República vem de Rés Pública, coisa pública, assim é o tipo de Constituição, no sentido de constituir mesmo e não o nosso limitativo de Lei Magna, que prima pelo público, cujo principal valor é cuidar da coisa pública. Aristocracia, por definição, é o governo dos melhores. Realeza é o governo pelo nobre. Nobre tem o sentido ainda hoje de virtuoso. Virtude é um dos grandes temas, se não o maior de Aristóteles. No entanto, ele deixa claro que prefere a República e suporta a Democracia, que é o governo de todos, sejam virtuosos ou não, preocupando-se ou não com a rés pública.

1. Distinguimos, em nosso primeiro estudo das constituições, três constituições puras: a realeza, a aristocracia, a república, e três outras que são desvios dessas: a tirania para a realeza, a oligarquia em relação à aristocracia, e a democracia quanto à república. Já falamos da aristocracia e da realeza – porque estudar a melhor forma de governo é justamente explicar a significação dessas duas palavras, pois que a existência de cada uma dessas formas só se pode basear na virtude, e em tudo que possa acompanha-la. Determinamos também as diferenças existentes entre a aristocracia e a realeza, e os caracteres distintivos pelos quais se pode reconhecer a realeza. Resta-nos tratar apenas, em primeiro lugar, do governo designado pelo termo comum de república, e depois dos outros governos, isto é, da oligarquia, da democracia e da tirania.

2. É fácil compreender qual é o pior desses governos degenerados, e qual o que lhe segue; porque o pior deve ser, forçosamente, aquele que é uma corrupção do primeiro e do mais divino. É preciso que a realeza só exista no nome, ou que se funda na incontestável superioridade daquele que reina; segue-se que a tirania que é o pior dos governos, é também aquele que mais se afasta da república. Em segundo lugar vem a oligarquia; porque a aristocracia difere bastante desta forma de governo. Afinal a democracia é o mais tolerável desses governos degenerados.

segunda-feira, 3 de março de 2025

Democracia, seus desvios, seus desvarios

 


No livro quarto, capítulo IX, 8 de A Política, o estagirita Aristóteles mostra um dos maiores defeitos da democracia, que costumeiramente a transforma em uma oligarquia, a desigualdade econômica. Obviamente, Aristóteles não conheceu um problema maior que é a questão da representatividade numa democracia representativa, que transforma a democracia em patrimonialismo, em conjunto com o primeiro grave problema. Sobre o primeiro problema, o estagirita é sábio:

Portanto, a própria desigualdade econômica deteriora o que Aristóteles denomina por república, que é o regime voltado para cuidar do que é público e, portanto serve a todos. Os argumentos da Aristóteles, mostrando que o predomínio de um grupo sobre o outro rompe com o ideal de igualdade, primeiro princípio de qualquer democracia. Se todos não são iguais para agir politicamente, não podem ser considerados livres, pois quem não pode agir, obviamente não é livre.

“É evidente, pois, que a comunidade civil mais perfeita é a que existe entre os cidadãos de uma condição média, e que não pode haver Estados bem administrados fora daqueles nos quais a classe média é numerosa e mais forte que todas as outras, ou pelo menos mais forte que cada uma das delas; porque ela pode fazer pender a balança em favor do partido ao qual se une, e, por esse meio, impedir que uma ou outra obtenha superioridade sensível. Assim, é uma grande felicidade que os cidadãos só possuam uma fortuna média, suficiente para as suas necessidades. Porque, sempre que uns tenham imensas riquezas e outros nada possuam, resulta disso a pior das democracias, ou uma oligarquia desenfreada, ou ainda uma tirania insuportável, produto infalível dos excessos opostos. Com efeito, a tirania nasce comumente da democracia mais desenfreada, ou da oligarquia. Ao passo que entre cidadãos que vivem em uma condição média, ou muito vizinha da mediana, esse perigo é muito menos de se temer”. (Aristóteles, 2009, p. 141 e 142).

Esse é um grande problema, mas não é o pior, pois a democracia representativa, que por sua própria estrutura alija as pessoas das decisões políticas, de agir politicamente, pois são induzidas a limitarem suas manifestações à escolha de seus representantes dentro de uma lista preestabelecida de candidatos que quase nunca tem um perfil que represente as aspirações do eleitor só pra citar o menor dos problemas. Na verdade, os problemas estão longe de ser “ideológicos”, mas sim o do predomínio dos mesmos grupos eternamente no poder porque o mecanismo da representação e da institucionalização em partidos ou comitês lhes favorecem. Basta dominar um menor grupo para se tornar uma das raras alternativas possíveis e ganhar se elegendo ou não. Perpetuando-se no poder. Tendo este como seu patrimônio pessoal.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

A volta de Aristóteles

 


Hannah Arendt, Jurgen Habermas e Karl Jaspers foram majestosos leitores de Aristóteles e conseguiram atualizá-lo muito proficuamente tornando-o muito inteligível e importante para o resgate da política, praticamente massacrada pela modernidade e o surgimento das ciências políticas. Os três filósofos retomam valores como interação, multiplicidade e alteridade.

Aristóteles tem diagnósticos interessantíssimos sobre a democracia. Vejamos o que o estagirita diz no livro quarto, capítulo IV de A Política, esse interessante livro sobre o Estado e a República (transcrevo literalmente):

A primeira espécie de democracia é aquela que tem a igualdade por fundamento. Nos termos da lei que regula essa democracia, a igualdade significa que os ricos e os pobres não têm privilégios políticos, que tanto uns como outros não são soberanos de um modo exclusivo, e sim que todos o são exatamente na mesma proporção. Se é verdade, como muitos imaginam, que a liberdade e a igualdade constituem essencialmente a democracia, elas, no entanto, só podem aí encontrar-se em toda a sua pureza, enquanto gozarem os cidadãos da mais perfeita igualdade política. Mas, como o povo constitui sempre a parte mais numerosa do Estado, e é a opinião da maioria que faz a autoridade, é natural que seja esse o característico essencial da democracia. Eis aí, pois, uma primeira espécie de democracia.

A condição de que as magistraturas sejam dadas segundo um censo determinado, contanto que pequeno, constitui uma outra espécie; mas é preciso que aquele que chega ao censo exigido tenha uma parte nas funções públicas, e delas seja excluído quando cessar de possuir o censo. Uma terceira espécie admite às magistraturas todos os cidadãos incorruptíveis; mas é a lei que manda. Em uma outra espécie, todo habitante, contanto que seja cidadão, é declarado apto a gerir as magistraturas, e a soberania é firmada na lei. Finalmente existe ainda uma quinta, na qual as mesmas condições são mantidas, mas a soberania é transportada da lei para a multidão.

Eis o que acontece quando os decretos outorgam a autoridade absoluta à lei, coisa que resulta no crédito dos demagogos. Porque, nos governos democráticos onde a lei é senhora, não há demagogos: são os cidadãos mais dignos que têm precedência. Mas uma vez perdida a soberania da lei, surge uma multidão de demagogos. Então o povo se transforma numa espécie de monarca de mil cabeças: é soberano, não individualmente, mas em corpo. Quando Homero diz que a dominação de muitos é um mal, não se sabe se ele entende por isso a dominação de todo um povo, como nós o fazemos aqui, ou a dominação de muitos chefes reunidos que não forme, por assim dizer, mais que um chefe.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

O ocaso da política e a barbárie da civilização

 


Como sempre, vou preferir proferir minhas impressões que reproduzir o achômetro de outros, mesmo que estes sejam mais conhecidos e tenham maior credibilidade. O que não deixa de ser um critério técnico, o que em si mesmo é um grande problema. Se eu cedesse a esse juízo estaria sendo incoerente, pois o retorno da política, que defenderei, é justamente um contraponto ao domínio nefasto da economia através da técnica e da tecnologia.

O grande problema detectado por Hannah Arendt na modernidade foi o ocaso da política. A própria inexistência da política, fez com que necessitasse voltar à Grécia antiga para ter conceitos onde basear seu estudo que culminou na criação do conceito de Totalitarismo para explicar regimes como o Nazismo e o Stalinismo, que não poderiam ser considerados tiranias, pois tinham apoio da massa apesar de opressores e nem foram frutos de golpes de estado.

Os integrantes da Escola de Frankfurt, logo em seu início perceberam as influencias devastadoras da técnica sobre a sociedade. Membros da primeira geração como Adorno e Horkheimer demonstraram como na técnica ao explicar o mundo o mitificou, transformou a própria razão “autônoma” em mito. Marcuse, uma transição da primeira para a segunda geração, intensificou a crítica à técnica e à tecnologia. No entanto nenhum deles (da Escola de Frankfurt) conseguiu perceber antes que o grande problema não era apenas o domínio da técnica, mas também o consequente ocaso da política.

Aristóteles, bem como grande parte dos filósofos gregos após Sócrates perceberam que a política se fazia na praça pública e era fruto de uma dialética, ainda uma dialética socrática. Estava fundada a relação intrínseca entre política e interação/comunicação/diálogo. Um conceito de política que não encontra nenhum parâmetro na visão de política após a modernidade quando os cidadãos foram substituídos pelos políticos como categoria técnica independente.

Assim com o ocaso da política, esperamos e culpamos os representantes por não fazerem o que nós deveríamos fazer. Perdemos o poder político, o delegamos institucionalmente a outros, incapacitados como nós, o poder de decisão sobre o céu e a terra. Vivemos comodamente um messianismo da técnica. A esperança, existente desde os iluministas, de que a razão por si só leve o barco à frente, sem perceber que nos desgastamos remando cada vez mais, quando até nossas brincadeiras são direcionadas a mover o barco. Quando um imbecil italiano quer proclamar criativo até o ócio, em vez de se indignar com esse absurdo. Criação é o que Hannah Arendt chamaria de trabalho. As brincadeiras, creio que poderíamos chamar de labor, porque, embora não diretamente, estão relacionadas com a sobrevivência, pois impede que o barco estagne.

Portanto, no momento em que a hegemonia da economia trocou a interação política pela representatividade técnica, a civilização se autodestruiu, pois acabou com as cidades. Como conceber uma cidade sem a integração política garantida pela interação? Não podemos. Só podemos vislumbrar um mundo sem limites, mas não por uma interação universal, mas por uma desintegração plena. Cada um em seu lugar, não mais nem sujeito, pois o sujeito só existe na interação. A afirmação de Aristóteles de que o homem é um animal político tornou-se uma utopia. Que bom seria reconstruí-la em bases atuais, como detectou ser necessário Hannah Arendt, e como tentou (sem resultados até hoje) Jurgen Habermas.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

A ética do cuidar

 

Nossa sociedade é bombardeada por valores que destacam o individualismo, o consumismo, a insegurança. Abdicamos gradativamente desde a idade média do coletivo e estamos quase abandonando o individual, estamos nos desumanizando. Não porque sejamos maus ou perversos, mas porque somos jogados numa rotina massacrante em que praticamente os únicos gritos que ouvimos são cuide da sua vida, compre isso pra você, se satisfaça, e semelhantes...

Como se fosse possível viver isolado. Como se o bem do próximo não tivesse nada a haver com o seu bem. Como se você comprasse uma roupa bonita só pra você ver. Se for só isso, porque você não usa trancada no seu quarto porque só o que importa é a sua opinião.

Somos seres altamente gregários. Não somos independentes sem que os outros garantam a nossa independência ou a convalidem. Como já expôs Aristóteles, ninguém é independente sozinho. Que é independente sozinho, aliás, é independente de quem cara pálida!

Agora o que é incrível é que poucos de nós tomamos consciência de nossa interdependência. E dos que tem consciência disto, pequena parcela age como se soubesse. O que é mais complicado ainda. É necessário tomarmos uma profunda consciência deste fato e começarmos a agir de fato como se o outro existisse e fosse vital para nós. São os outros é que possibilitam a existência que determinamos.

Então volto à necessidade do cuidado que devemos ter uns com os outros de modo a tornar mais harmônica possível a nossa convivência e aí facilitar nossa interação na sociedade em vistas de estabelecermos quem somos e agirmos com maior efetividade. É preciso que entendamos que a sociedade é uma teia e que ao cuidar do outro estamos cuidando de nós.

A nossa vida é permeada de relações e a história é claramente dialética. Vivemos num grande sistema em que nossas ações não são impunes. Quem age bem e pensadamente colhe os melhores resultados. Ao sermos carinhosos e atenciosos com nossos pares, estamos estabilizando um sistema no qual fazemos parte e é claro nos afeta.

Outra questão é a da responsabilidade social, a da responsabilidade pelo outro. Temos que agir sempre eticamente de modo a causar o maior bem possível provocando o menor dano provável, pois estamos todos volúveis num mesmo plano de dominós. O menor balanço pode não te detonar, mas se a sua linha começar a cair se cuide.

Então, o que estou falando é que cuidar do outro não é uma questão simples de bondade, amor, fraternidade, é questão de sobrevivência. O que é preciso não é que sejamos bonzinhos, é que tenhamos consciência e sejamos responsáveis pelos nossos fracassos. Pois cada ser desiludido é parcialmente um fracasso pessoal de todos nós. A outra parte é do próprio, é claro.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Quem abraça tudo não abraça nada



    O interesse da política na Idade Antiga e boa parte de Idade Média se restringia aos que dela participavam e por ela se interessavam. Portanto tinha enorme importância se interessar e participar das decisões políticas, pois não se legislava pelo interesse geral, ou seja, dos que não participavam dela. Portanto em nenhuma hipótese poder-se-ia delegar poder ou esperar que suas demandas fossem atendidas sem agir. Para Aristóteles, os terrenos da ação por excelência eram a política e a ética. Hannah Arendt restringe esse terreno aristotélico à somente a política.

    Entretanto quando a política passa a se interessar por tudo e todos, desde o seu princípio na Idade Média ainda, mas que alcançou a sua onipresença apenas na Idade Moderna, passa a controlar não só o Estado ou suas leis, mas a absolutamente todos os corpos. Deste modo, toda a ação passa a ser controlável e, mais que isso, controlada. Os cidadãos perdem o seu poder de influenciar os destinos da “polis” por assim dizer.

Para a pergunta sobre o sentido da política existe uma resposta tão simples e tão concludente em si que se poderia achar outras respostas dispensáveis por completo. Tal resposta seria: o sentido da política é a liberdade. [...] Essa resposta não é, hoje, natural nem imediatamente óbvia. Isso evidencia-se porque a pergunta hoje não é simplesmente sobre o sentido da política, como antes se fazia, em essência, a partir de experiências não políticas ou até mesmo antipolíticas. [...] Por conseguinte, a pergunta é muito mais radical, muito mais agressiva, muito mais desesperada: tem a política algum sentido ainda? [...] Nessa pergunta assim formulada [...] mesclam-se dois elementos bem distintos: por um lado, a experiência das formas totalitárias de Estado nas quais toda a vida dos homens foi politizada por completo, tendo como resultado a liberdade não existir mais nelas. Visto que a partir daí, sob condições especificamente modernas, surge a pergunta se política e liberdade são compatíveis entre si, se a liberdade não começa onde cessa a política, de modo a não existir mais liberdade onde a coisa política não encontra seu fim e seu limite em parte alguma. [...] em segundo lugar, a pergunta é forçosamente em vista do monstruoso desenvolvimento das modernas possibilidades de destruição – cujo o monopólio os Estados detêm; sem esse monopólio, jamais teriam chegado a se desenvolver – e que só podem ser empregadas dentro do âmbito político. O que está em jogo aqui não é apenas a liberdade, mas sim a vida, a continuidade da existência da Humanidade e talvez da vida orgânica na Terra. A pergunta de agora torna duvidosa toda a política; faz parecer discutível nas condições modernas se a política e a conservação da vida são compatíveis entre si, e espera, sub-repticiamente que os homens tenham juízo e de alguma maneira consigam abolir a política antes de sucumbir por causa dela. [...] As duas experiências nas quais se inflama a pergunta atual sobre o sentido da política são as experiências políticas fundamentais de nossa época. Se passar ao largo delas, seria como se não tivesse vivido, em absoluto, no mundo que é nosso. Em contrapartida, ainda existe uma diferença entre elas. Contra a experiência da politização total nas formas totalitárias de Estado e o caráter duvidoso da coisa política que nela nasce está sempre o fato de, desde a Antiguidade, ninguém mais ser da opinião que o sentido da política é a liberdade; bem como o outro fato de, nos tempos modernos, tanto em termos teóricos como práticos, a coisa política ser tida como um meio para proteger o sustento da vida da sociedade e [a] produtividade do desenvolvimento social livre. Contra o questionamento da coisa política como existe na experiência totalitária, haveria um recuo para um ponto de vista anterior, falando-se em termos históricos – como se as formas de dominação totalitárias não houvessem demonstrado nada melhor, como se tivesse razão o pensamento liberal e conservador do século XIX. O desconcertante no aparecimento de uma possibilidade de destruição física absoluta dentro da coisa política é tal retirada ser nada mais nada menos do que impossível. Pois a coisa política ameaça exatamente aquilo onde, no conceito dos tempos modernos, reside o próprio direito de existência, a saber, a mera possibilidade de vida – na verdade, de toda a Humanidade. Se for verdade que a política nada mais é do que algo infelizmente necessário para a conservação da vida da Humanidade, então de fato ela mesma começou a se riscar do mapa, ou seja, seu sentido transformou-se em falta de sentido. (ARENDT, 2011, p.38, 39 e 40).

A ação, no sentido arendtidiano torna-se algo raro e precioso e a economia onipresente assim como a vida comum, que não fazia parte das origens da política. E Hannah Arendt, diz que num mundo onde a ação é menosprezada e coibida, a resposta para a resolução dos problemas da humanidade é o milagre, mas não no sentido religioso:

Se partirmos da lógica inerente a esses fatores e supusermos que nada mais do conhecido por nós determina e determinará o curso do mundo, então só podemos dizer que uma mudança para a salvação só poderá acontecer por meio de uma espécie de milagre. Para perguntar, com toda a seriedade, o que há de verdade nesse milagre para eliminar a suspeita de que uma esperança – ou contar com milagres – é pura leviandade ou frivolidade insensata, precisamos antes de mais nada esquecer o papel que o milagre sempre desempenhou na crença e na superstição, portanto, no religioso e no pseudo-religioso. Para nos libertarmos do preconceito de que o milagre é um fenômeno genuína e exclusivamente religioso, no qual algo sobrenatural e sobre-humano se intromete no desenrolar dos assuntos humanos ou no desenvolvimento natural, talvez seja conveniente rememorarmos em breves instantes que todo o marco de nossa existência real – a existência da Terra, da vida orgânica sobre ela, a existência do gênero humano – baseia-se numa espécie de milagre. Porque, sob o ponto de vista dos fenômenos universais e das probabilidades que nelas reinam e que podem ser apreendidas estatisticamente, o surgimento da Terra foi uma ‘infinita impossibilidade’. [...] Nesses exemplos, fica claro que sempre que algo de novo acontece, de maneira inesperada, incalculável e por fim inexplicável em sua causa, acontece justamente como um milagre dentro do contexto de cursos calculáveis. Em outras palavras, cada novo começo é, em sua natureza, um milagre – ou seja, sempre visto e experimentado do ponto de vista dos processos que ele interrompe necessariamente. Nesse sentido, a transcendência religiosa da crença no milagre corresponde à transcendência real e demonstrável de cada começo em relação ao contexto do processo no qual penetra. [...] Se tomarmos esse exemplo como uma metáfora para aquilo que sucede de fato no âmbito dos assuntos humanos, então ele logo começa a claudicar. Pois os processos com os quais temos que lidar aqui, são, como dizemos, de natureza histórica, ou seja, não se desenrolam na forma de desenvolvimentos naturais, mas sim como cadeias de acontecimentos em cujo encadeamento acontece aquele milagre das ‘infinitas improbabilidades’ sempre com tanta frequência que nos parece estranho falar aqui de milagre. Isso reside apenas no fato de que o processo da História surgiu por iniciativa humana e está sempre sendo rompido por novas iniciativas. Se vemos esse processo em seu puro caráter de processo – e isso acontece naturalmente em todas as filosofias históricas para as quais o processo histórico não é o resultado do agir em conjunto dos homens, mas sim do desenvolvimento e da coincidência de forças extra-humanas, sobre-humanas ou subumanas, ou seja, onde o homem é eliminado da História -, então cada novo começo, para a salvação ou a desgraça, é tão infinitamente improvável que todos os acontecimentos maiores se apresentam como milagres. [...] A diferença decisiva entre as ‘infinitas improbabilidades’ nas quais se baseia a vida terrestre-humana e o acontecimento-milagre no âmbito dos assuntos humanos é, claro, existir aqui um taumaturgo e o fato de o próprio homem ser dotado, de um modo extremamente maravilhoso e misterioso, de fazer milagre. No uso idiomático habitual e comum, nós chamamos essa aptidão de agir. É característico do agir a capacidade de desencadear processos, cujo automatismo depois parece muito semelhante ao dos processos naturais; é-lhe característico, inclusive, o poder impor de um novo começo, começar algo de novo, tomar iniciativa ou, adotando-se o estilo de Kant, começar uma cadeia espontaneamente. O milagre da liberdade está contido nesse poder-começar que, por seu lado, está contido no fato de que cada homem é em si um novo começo, uma vez que, por meio do nascimento, veio ao mundo que existia antes dele e vai continuar existindo depois dele. Essa concepção de que a liberdade é idêntica ao começar ou, falando de novo à maneira de Kant, à espontaneidade, é-nos bastante estranha porque faz parte do caráter e das características de nossas tradições do pensamento, identificar liberdade com livre-arbítrio e entender como livre-arbítrio a liberdade de escolha entre as coisas dadas – um grosso modo, entre o bem e o mal, mas não a liberdade; simplesmente querer que isso ou aquilo seja assim ou de outra maneira. Essa tradição [...] foi extraordinariamente fortalecida pela convicção espalhada desde o final da Antiguidade de a liberdade não estar no agir e na coisa política, mas somente ser possível quando o homem renuncia ao agir, quando se retira do mundo para si mesmo e evita a política. [...] Se o sentido da política é a liberdade, isso significa que nesse espaço – e em nenhum outro – temos de fato o direito de esperar milagres. Não porque fôssemos crentes em milagres, mas sim porque os homens, enquanto puderem agir, estão em condições de fazer o improvável e o incalculável e, saibam eles ou não, estão sempre fazendo. A pergunta se a política ainda tem algum sentido nos remete, justamente quando ela termina na crença em milagres – e onde mais deveria terminar senão aí – de volta forçosamente à pergunta sobre o sentido da política. (ARENDT, 2011, p.41 a 45).

O sabiá sabia assobiar

  Assim cantou o sabiá Como sempre Sabia assobiar Com a melodia assombrar E o ritmo encadear O sol sobe e a lua baixa As estrela...