Acompanham

Mostrando postagens com marcador Kafka. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Kafka. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 27 de março de 2025

A lei como forma

     


     Hegel, um dos mais notáveis filósofos que conseguiram explicar a modernidade e o liberalismo que a cria, viveu numa época em que a maioria dos regimes eram absolutistas, a maioria tirânicos. Ou seja, as decisões do estado eram subjetivas. Uma pessoa poderia morrer por uma birra de um adolescente (um adulto infantilizado ou até uma criança mesmo).  Por isso, Hegel tem uma grande devoção pela burocracia moderna, um conjunto de regras impessoais. Quer dizer, teoricamente ficaríamos livres do despotismo da emoção. É verdade que não ficamos livres da pessoalidade e que nenhuma fase histórica fica livre de resquícios da outra.

    Essa ideia de que regras neutras e objetivas poderiam administrar melhor o mundo é a marca do estado moderno com suas constituições e direitos compartimentados, civil, público, penal, etc. Até mesmo as regras não escritas, que sempre existiram, mas que se tornaram vitais apenas com o surgimento da sociedade civil, o para além do Estado. Nos despotismos, quase tudo ou tudo é Estado.

    Raras pessoas refletiram como Kafka sobre essa realidade. Sobre a lei, a justiça (que abarca o poder judiciário, mas vai muito além dele):

              A teologia negativa ou da ausência, a transcendência da lei, a priori da culpa são temas recorrentes em muitas interpretações de Kafka. Os textos celebres do Processo (e também da Colônia penal e da Muralha da China) pressentem a lei como pura forma vazia e sem conteúdo, cujo objeto permanece irreconhecível; a lei não pode, portanto, enunciar-se a não ser em uma sentença; e a sentença não pode se apreender senão em um castigo. Ninguém conhece o interior da lei. Ninguém sabe o que é a lei no interior da Colônia; e as agulhas da máquina escrevem a sentença no corpo do condenado que não a conhecia, ao mesmo tempo em que elas lhe infligem o suplício. “O homem decifra a sentença com suas chagas”. [...] Kant fez a teoria racional do reviramento, da concepção grega à concepção judaico-cristã da lei: a lei não depende mais de um Bem pré-existente que lhe daria uma matéria, ela é pura forma, da qual depende o bem como tal. É bem o que enuncia a lei, nas condições formais em que ela mesma se enuncia. (DELEUZE, 2004. p. 81 e 82).

     Kafka mostra como a burocracia, as regras escritas ou não escritas ocupam todos os espaços na modernidade. Disciplinam a convivência e permitem a racionalização do Estado e a existência da sociedade civil. Mas acabam se espalhando para todos os espaços, inclusive as relações mais intimas. Principalmente como essa necessidade de ocupar todos os espaços e a dificuldade de se adaptar às particularidades faz com que as regras se tornam vazias tendo apenas forma, fórmula. Como não há conteúdo, não existe argumento pra contraditar

segunda-feira, 17 de março de 2025

O que somos?


   

O Renascimento e o Iluminismo nasceram centrados na figura do sujeito. Um sujeito ainda muito limitado no Renascimento, mas reivindicando bastante autonomia no Iluminismo, sobretudo na sua primeira fase de Kant a Hegel, da Crítica da Razão Pura (1781) à Fenomenologia do Espírito (1807). Um curto período, mas que perpassou todo o século XIX. Só em meados do século XIX começamos a pensar na modernidade tardia com Nietzsche, com Marx (1818-1893), Nietzsche (1844-1900) e, principalmente Freud (1856-1939). Começa e desconstrução da razão autônoma e, por consequência, do sujeito nos moldes do Iluminismo.

  Um fenômeno que nunca cessou de se auto-alimentar. O sujeito foi constantemente desmontado. Foi progressivamente alienado como Marx e Nietzsche denunciam de maneiras diferentes. Mas sobretudo desmontado e reconstruído seguida e constantemente como objetos diferentes (ou maquinas diferentes, como preferiria Deleuze). A modernidade ou o capitalismo foi progressivamente tomando os indivíduos por suas funções. José não é um semita ou um religioso. Também o é. Mas é sobretudo um carpinteiro. Tiago e João não são pregadores, nem viajantes, são pescadores. Cito exemplos religiosos da antiguidade para ser questionado justamente. Lá não havia essa demarcação, essa percepção. Mas na era moderna inegavelmente as pessoas perderam sua individualidade (no sentido de serem únicas) passaram a ser sobretudo o que fazem.

  Seu trabalho passa a ser o que são. E ser ocupa toda a existência. Não importa se adotemos uma ontologia antiga, medieval ou moderna. Ser ou Dasein. Não importa se fujamos para o existencialismo. O sujeito foi desmontado. Não há um ser-em-si, talvez nem um ser em relação à. Somos todos particularmente iguais no que nos é imposto de fora pra dentro, sobretudo por nós mesmos. Um poeta vive a sua vida captando signos. Um ferreiro a observar colunas ou outras coisas que desconhecia sobre seu oficio ou que poderia fazer melhor do que foi feito. Um jornalista na eterna angústia por acontecimentos ou desdobramentos. O oficio ultrapassa o período trabalhado e invade a vida. Tanto a pessoa (pessoa?) não se vê mais como uma razão autônoma, um sujeito no mundo, como os outros indivíduos também não o veem. Esclarecedora é uma passagem de Deleuze sobre Kafka:


   Se a calderaria, contudo, não é descrita por si mesma (o barco, aliás, é preso), é que jamais uma máquina é simplesmente técnica. Ao contrário, ela só é técnica como máquina social, tomando homens e mulheres em suas engrenagens, ou, antes, tendo homens e mulheres dentre suas engrenagens, não menos que coisas, estruturas, metais, matérias. Bem mais, Kafka não pensa somente nas condições de trabalho alienado, mecanizado, etc.: ele conhece tudo isso de muito perto, mas seu gênio é considerar que os homens e mulheres fazem parte da máquina, não somente em seu trabalho, mas ainda mais em suas atividades adjacentes, seu descanso, seus amores, seus protestos, suas indignações, etc. O mecânico é parte da maquina, não somente enquanto mecânico, mas no momento em quede cessa de sê-lo. [...] A máquina não é social sem se desmontar em todos os elementos conexos, que fazem máquina por seu turno. [...] É que a máquina é desejo, não que o desejo seja desejo da máquina, mas porque o desejo não cessa de fazer máquina da máquina, e de constituir uma nova engrenagem ao lado da engrenagem precedente, indefinidamente, mesmos essas engrenagens parecem se opor, ou funcionar de maneira discordante. O que faz máquina, falando propriamente, são as conexões, todas as conexões que conduzem a desmontagem. [DELEUZE, 2024. p.147 e 148]

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Reflexões sobre Kafka e a modernidade tardia

     Perguntamos-nos se a mudança da autonomia para a heteronomia seria um dos fatores que divide as etapas da modernidade. E se em caso afirmativo, as obras de Franz Kafka são um retrato dessa mudança? Buscamos investigar se os livros de Franz Kafka retratam uma sociedade em que a política (enquanto poder ou Estado) invade o domínio particular e substitui o papel central da razão da primeira fase da modernidade pela opressão da cultura (no sentido mais amplo que se possa dar à cultura). Assim a sujeição do Sujeito (Ego) ao Pai ou ao Estado (Superego) na obra de Franz Kafka possivelmente retrate a mudança de etapa na modernidade.

    Assim pensando na troca da autonomia pela heteronomia como uma das principais condições para o surgimento de uma segunda etapa da modernidade, no livro Carta ao pai de Franz Kafka, o autor demonstra ser oprimido por algo externo: seu pai que lhe repassa os valores societários e reage, dentro de suas possibilidades ao que lhe impede de ser tão autônomo quanto gostaria.

    Na aurora da modernidade como resposta à heteronomia da Idade Média, surge um sujeito autônomo que garante sua autonomia usando a razão. Segundo Nery:

Com a inauguração dos tempos modernos, o homem se torna o centro, a medida do conhecimento em que tudo está estritamente ligada à razão. Daí a importância da compreensão da modernidade para, então, se compreender como foi descoberta a ideia de sujeito, de agente dominador. [...] Não é mais a vontade da divindade e entidades que garantem ou definem o sentido do agir humano, é o próprio sujeito quem dá significado à sua existência. O próprio indivíduo é responsável pelo progresso ou decadência da sua vida. (NERY, 2011, p.34 e 35).

    Nery afirma que o grande propagador do projeto moderno, o Iluminismo, depositou uma confiança cega e ilimitada na razão. Esta chegaria “a um estágio de desenvolvimento que ela seria capaz de dissipar as trevas da ignorância que obscurecem o espírito humano” (2011, p.35 e 36). E, partindo do mesmo pressuposto, Habermas demonstra como a exacerbação dos valores da modernidade conduz ao esvaziamento do sujeito.

O mundo de exteriorização e apropriação das forças essenciais deve-se, por um lado, à dinamização do conceito aristotélico da forma: o indivíduo desdobra suas forças essenciais mediante sua própria atividade produtiva; e, por outro, à mediação conduzida pela filosofia da reflexão do conceito aristotélico com o conceito de forma estética: as objetivações, nas quais a subjetividade assume forma exterior, são simultaneamente a expressão simbólica de um ato de criação consciente e de um processo inconsciente de formação. A produtividade do gênio artístico é, por isso, o protótipo para uma atividade em que autonomia e auto-realização se unificam de tal modo, que a objetivação das forças humanas essenciais perde o caráter coercitivo em face da natureza tanto externa como interna. (HABERMAS, 2000, p. 111 e 112).

    Nery caracteriza mais detalhadamente esse fenômeno que é a desconstrução do sujeito “onipotente” da primeira fase da modernidade. Mostra como o capitalismo e a sociedade civil vão desarticulando e mostrando o quão eram falsas as liberdades do início da modernidade até o seu auge com Kant e depois Hegel. Nery mostra sobretudo como é a própria radicalização do sujeito, ou melhor de sua individualidade que leva a isso:

Numa incessante busca do seu bem-estar e uma supervalorização do EU, o indivíduo moderno torna-se frágil e vulnerável á medida que se fecha para o outro e imerge dentro de si. Esse individualismo estimulado pelo consumismo foi esvaziando o sujeito a tal ponto que ele já não tem mais forças para lutar pelos ideais comunitários e transfere a responsabilidade política para os partidos por não ter tempo disponível para a “res publica” estando envolvido nos seus próprios negócios, em seu mundo, cuidando dos seus interesses. [...] Todas as instituições, organizações e todos os valores estão sendo esvaziados de sua substância. O saber, o poder, o trabalho, o exército, a família, a Igreja, já não estão em funcionamento como princípios absolutos e intangíveis. Há uma descrença geral em todos eles. [...] Entretanto, o sistema funciona e as instituições se desenvolvem multiplicando-se assustadoramente, a diferença é que agora num ritmo livre e leve, no vazio e sem sentido. É preciso saber viver ou sobreviver nos “espaços desativados”. (NERY, 2011, p.42 e 43).

    Sigmund Freud, que juntamente com Nietzsche e Marx, são responsáveis pelas três investidas mais impactantes contra a autonomia do sujeito, propôs que o homem além do eu (ego), é controlado por outras duas instâncias: o ID (instintos, o original) e o Superego (a domesticação do Complexo de Édipo). Deste modo Freud explica a formação do Superego como superação do Édipo e consequentemente uma parte do Id (dos instintos) dentro do Ego (o Eu racional):

O superego, contudo, não é simplesmente um resíduo das primitivas escolhas objetais do id; ele também representa uma formação reativa enérgica contra essas escolhas. A sua relação com o ego não se exaure com o preceito: ‘Você deveria ser assim (como o seu pai)’. Ela também compreende a proibição: ‘Você não pode ser assim (como o seu pai), isto é, você não pode fazer tudo o que ele faz; certas coisas são prerrogativas dele.’ Esse aspecto duplo do ideal do ego deriva do fato de que o ideal do ego tem a missão de reprimir o complexo de Édipo; em verdade, é a esse evento revolucionário que ele deve a sua existência. É claro que a repressão do complexo de Édipo não era tarefa fácil. Os pais da criança, e especialmente o pai, eram percebidos como obstáculo a uma realização dos desejos edipianos, de maneira que o ego infantil fortificou-se para a execução da repressão erguendo esse mesmo obstáculo dentro de si próprio. Para realizar isso, tomou emprestado, por assim dizer, força ao pai, e este empréstimo constituiu um ato extraordinariamente momentoso. O superego retém o caráter do pai, enquanto que quanto mais poderoso o complexo de Édipo e mais rapidamente sucumbir à repressão (sob a influência da autoridade do ensino religioso, da educação escolar e da leitura), mais severa será posteriormente a dominação do superego sobre o ego, sob a forma de consciência (conscience) ou, talvez, de um sentimento inconsciente de culpa. (FREUD, 1927)

    O fundador da psiquiatria mostra que o Superego (ou ideal do Ego) tem uma natureza tanto histórica quanto biológica o que o aproxima muito do tipo de construção que Piaget, Genet e os estruturalistas proporiam bem depois. Mas a coincidência se resume apenas a essa conjunção biológico temporal, pois Freud privilegia os aspectos morais. Desse modo, Freud demonstra como os valores de autoridade são internalizados. Mostra que através do desejo do poder do pai que tem a posse do que mais deseja, o menino passa a incorporar os valores do pai por cópia. Tudo isso graças ao processo de domínio do Complexo de Édipo:

Erigindo esse ideal do ego, o ego dominou o complexo de Édipo e, ao mesmo tempo, colocou-se em sujeição ao id. Enquanto que o ego é essencialmente o representante do mundo externo, da realidade, o superego coloca-se, em contraste com ele, como representante do mundo interno, do id. Os conflitos entre o ego e o ideal, como agora estamos preparados para descobrir, em última análise refletirão o contraste entre o que é real e o que é psíquico, entre o mundo externo e o mundo interno. (FREUD, 1927)

    Ele também demonstra, o que é mais importante para nossa tese, que o processo não termina neste momento, mas prossegue por toda a vida como incorporação da autoridade. Afirma ele:

É fácil demonstrar que o ideal do ego responde a tudo o que é esperado da mais alta natureza do homem. Como substituto de um anseio pelo pai, ele contém o germe do qual todas as religiões evolveram. O autojulgamento que declara que o ego não alcança o seu ideal, produz o sentimento religioso de humildade a que o crente apela em seu anseio. À medida que uma criança cresce, o papel do pai é exercido pelos professores e outras pessoas colocadas em posição de autoridade; suas injunções e proibições permanecem poderosas no ideal do ego e continuam, sob a forma de consciência (conscience), a exercer a censura moral. A tensão entre as exigências da consciência e os desempenhos concretos do ego é experimentada como sentimento de culpa. Os sentimentos sociais repousam em identificações com outras pessoas, na base de possuírem o mesmo ideal do ego. [...] A religião, a moralidade e um senso social - os principais elementos do lado superior do homem - foram originalmente uma só e mesma coisa. Segundo a hipótese que apresentei em Totem e Tabu, foram filogeneticamente adquiridos a partir do complexo paterno: a religião e a repressão moral através do processo de dominar o próprio complexo de Édipo, e o sentimento social mediante a necessidade de superar a rivalidade que então permaneceu entre os membros da geração mais nova. (FREUD, 1927)

    Em seu livro Totem e Tabu, Freud, falando sobre obsessão (dos neuróticos),[1] afirma que “a [...] mais óbvia coincidência das proibições obsessivas [...] com o tabu está em que são igualmente desprovidas de motivação e enigmáticas em sua origem” (2013, p. 21). Há um paralelo formidável também com a internalização da autoridade pelo superego, que embora descrito pelo psiquiatra como forma de superação do Complexo de Édipo, atua de maneira inconsciente como intromissão do Id no Ego. Freud prossegue a explicação:

Apareceram um belo dia e têm de ser observadas, devido um medo invencível. É desnecessária uma ameaça de castigo externa (uma consciência) de que a transgressão ocasionará uma intolerável desgraça. O máximo que um doente obsessivo pode comunicar é o vago pressentimento de que uma determinada pessoa de seu ambiente será prejudicada por tal transgressão. Não se sabe qual será este prejuízo, e mesmo essa pouca informação é obtida mais por ocasião dos atos expiatórios e defensivos [...] do que das proibições mesmas. (FREUD, 2013, p. 21 e 22)

    Como podemos notar, há mais semelhanças ainda entre os tabus e as determinações do superego para as quais a sanção apesar de temida não é clara, possivelmente até desconhecida. É bom lembrar que essas determinações do superego constituem segundo as próprias palavras de Freud o mais nobre de nosso ego. Estão relacionadas à nossa civilidade como podemos encontrar em outro livro dele: O mal estar da civilização onde demonstram que as instituições civilizatórias como escolas e igrejas castram o que há de mais natural e original no sujeito, mas possibilitam a civilização, a convivência civilizada.

    É sobre esse caldo todo que procuraremos entrecruzar as informações e tentar demonstrar a factibilidade da tese que é o máximo que poderemos fazer, provar sua veracidade fica para pesquisadores mais argutos e com maior conhecimento das partes. Primeiro é preciso demonstrar uma possível relação entre a compreensão filosófica e a psicológica da passagem da primeira para a segunda fase da modernidade[2]. Depois será tentado correlacionar a obra Carta ao Pai de Franz Kafka com as manifestações do superego e as mudanças ocasionadas pelo período, tanto do surgimento no autor do superego quanto com as relações societárias percebidas a partir da segunda fase do modernismo.

    Cabe então fazer uma breve contextualização, já que o início já está longe, tentando correlacionar os conceitos sobre a mudança da percepção entre as fases da modernidade. É interessante lembrar que a primeira fase está alicerçada (ou fundada, não sei qual termo expressa melhor) na autonomia do sujeito, ou seja, de um eu (ego) independente. É bom lembrar que o mais autentico da modernidade, o iluminismo, firma-se precisamente na oposição entre a idade da luz (da razão, podemos traduzir precariamente em um ego) e a idade das trevas (onde a razão não tem domínio, portanto anterior ao ego o que pra Freud seria um Id ainda não domesticado) [3]. A segunda fase da modernidade surge exatamente da descoberta de que o sujeito não é tão autônomo como se pensava.[4] Curiosamente o superego é exatamente a constatação feita por parte do Id ao domínio egóico. Para Freud, ao contrario do que comumente se pensa as três instancias[5] não são independentes, sequer são definitivamente separadas. Há uma parte do Id (inconsciente) restante dentro do Ego (consciente) e parte desse Id se transforma em Superego. Essa parte do Inconsciente transformada se transforma numa instancia que está sempre a cobrar as falhas do Ego. A segunda fase da modernidade não nasce justamente com esse pensamento: a fragilidade do sujeito (eu, ego) ou da racionalidade do sujeito ou do sujeito racional? Obviamente raciocinar por paralelismos não pode assegurar veracidades, só garante semelhanças, mas o que se pretende é tão somente levantar um assunto, demonstrar sua viabilidade.

    Rosa afirma que Franz Kafka “[...] trata de modo constante e progressivo o tema da Lei e, em especial, da Lei paterna”.  Ela exemplifica isso ao revelar que o escritor considerou a possibilidade de publicar um volume intitulado "Punições", que incluiria as obras: O veredicto (1912), A metamorfose (1915) e Na Colônia Penal (1914). Ao descrever a obra, Rosa mostra como a sombra da autoridade paterna debilita o autor:

Em O Veredicto (KAFKA, 1998[1912]), surpreendemo-nos com o despertar aparentemente imotivado e caprichoso da ira paterna, ira que dará lugar ao enunciado de uma sentença de morte ("eu o condeno à morte por afogamento") que o filho se apressará em cumprir. Em A Metamorfose (KAFKA, 1965[1915]), um dia o filho acorda transformado em inseto e enfrenta o poder destrutivo do pai. Em Na Colônia Penal (KAFKA, 1998[1914]), temos um observador que assiste a uma cerimônia de tortura e execução, cerimônia levada a efeito por uma máquina, operada por um oficial, que escreve nas costas de cada condenado a sentença que lhe cabe: o sujeito recebe assim, na carne, o peso da Lei.

    A própria perda de potencia do sujeito na segunda fase da modernidade está também bem expressa em Kafka, segundo Carone apud Rosa:

[...] diante do impasse moderno da perda da noção de totalidade, aquele que narra, em Kafka, não sabe nada ou quase nada sobre o que de fato acontece - do mesmo modo, portanto, que o personagem. Trata-se, quando muito, de visões parceladas, e é essa circunstância que obscurece o horizonte da narrativa e obriga quem lê a mapear por dentro a falsa consciência se se quiser, a alienação -, pois o narrador não tem chance de ser um agente esclarecedor ou 'iluminista' (CARONE apud ROSA).

    Outros traços como a perversidade do Superego e como ele fragiliza o Ego com as suas constantes criticas infundadas também estão presentes em Kafka. Benjamin apud Rosa mostra como em vários livros de Kafka,

[...] o pai é a figura que pune. A culpa o atrai, como atrai os funcionários da Justiça. Há muitos indícios de que o mundo dos funcionários e o mundo dos pais são idênticos para Kafka. Essa semelhança não os honra. Ela é feita de estupidez, degradação e imundície. O uniforme do pai é cheio de nódoas, sua roupa de baixo é suja. A imundície é o elemento vital do funcionário (BENJAMIN apud ROSA).

    O sujeito (ou o ego) é tão fragilizado que mesmo o pai, embora sua autoridade persista se torna o mesmo nada que os personagens angustiados de Kafka. É como se os homens fosse niilizados segundo Rosa:

A atração pela culpa une o pai aos funcionários da Justiça, degradando-os e lançando na abjeção o mundo do funcionalismo e em seu funcionamento burocrático. Se nos servirmos da teoria da burocracia, tal como a concebeu Max Weber (2010) em seu A ética protestante e o espírito do capitalismo, encontramos entre seus elementos definidores uma impessoalidade que faz com que os funcionários se limitem a cumprir tarefas em um funcionamento considerado completamente previsível, dado que fundado em normas e regulamentos rígidos que acabam sendo um fim em si mesmos. Além dessa última, a burocracia gera disfunções tais como um formalismo excessivo, uma conformidade à rotina, uma incapacidade de lidar com a informalidade e a variabilidade humana e, essencial para o que nos interessa no momento, uma despersonalização. Posto isso, ao aproximar o pai dos funcionários da Justiça, Kafka deixa subentendida uma leitura da função paterna não apenas pela via de uma satisfação pulsional perversa, uma vez que atraídos pela culpa, mas também pela via da burocracia, ou seja, da impessoalidade, da despersonalização, [...] do anonimato.

    Portanto, os textos de Kafka, de forma metafórica espelham o seu tempo com sujeitos debilitados e oprimidos por suas obrigações, por uma sociedade burocrática. A burocracia é fruto da modernidade e é exaltada por Hegel, por exemplo, um dos filósofos que mais exaltaram o progresso do mundo moderno e a sociedade burocrática como espaço da liberdade. Kafka demonstra exatamente o oposto, pois, apoia-se no espirito de seu tempo já bastante influenciado pela alienação de Marx, o Inconsciente de Freud e a crítica da razão de Nietzsche.

    Basta ler trechos do inicio da carta de Franz Kafka a seu pai para perceber como o poder paterno repercute nele como um apequenador que o torna quase um não-sujeito. Mostra como o psicológico torna a autoridade do pai, mesmo fora de seu papel típico, grandiosa e assustadora. Vejamos:

Querido Pai:

Você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Como de costume, não soube responder, em parte justamente por causa do medo que tenho de você, em parte porque na motivação desse medo intervêm tantos pormenores, que mal poderia reuni-los numa fala. [...] também ao escrever, o medo e suas consequências me inibem diante de você e porque a magnitude do assunto ultrapassa de longe minha memória e meu entendimento. [...] Naturalmente não digo que me tornei o que sou só por influencia sua. Seria muito exagerado (e até me inclino a esse exagero). É bem possível  que, mesmo que eu tivesse crescido totalmente livre da sua influência, eu não pudesse me tornar um ser humano na medida do seu coração. Provavelmente seria um homem sem vigor, medroso, hesitante, inquieto [...], mas completamente diferente do que sou na realidade [...] Eu teria sido feliz por tê-lo como amigo, chefe, tio, avô, até mesmo (embora mais hesitante) como sogro. Mas justamente como pai você era forte demais pra mim, principalmente porque meus irmãos morreram pequenos, minhas irmãs só vieram muito depois e eu tive, portanto, de suportar inteiramente só o primeiro golpe, e para isso eu era fraco demais. (KAFKA, 1997, p.7, 9 e 10)

    Como se vê demonstrando muitos dos os elementos do mito da formação do superego, tal como a fragilidade com relação ao adulto que detém poderes que ele não dispõe e que torna a luta desigual.  No mesmo livro estão presentes também o temor da autoridade provocado pelo superego e a fragilização da autonomia do sujeito que mesmo podendo decidir sem nada que materialmente ou realmente o entrave, se torna um vacilante, inseguro das decisões mais seguras que pudesse tomar.

 

Referencias:

KAFKA, Franz. Carta ao Pai. São Paulo: Companhia das letras, 1997. 88p.

FREUD, Sigmund. Ego, Id e outros trabalhos – volume XIX de Obras Completas de Freud. Londres: Hogarth Press e Instituto de Psicanálise, 1927.

FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2013. 169p.

HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 540p.

NERY, Daniel. A discussão filosófica da modernidade e da pós-modernidade. Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.13, 2011 in http://www.ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/revistalable/3_DANIEL_NERY_DA_CRUZ.pdf

(http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=1984-0292)

ROSA, Márcia. Franz Kafka: a ultrapassagem da burocratização da instância paterna e da voz áfona do supereu.  Fractal : Revista de Psicologia vol.23 no.2. Rio de Janeiro, 2011 in (http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=1984-0292)



[1] É bom não se impressionar obsessivamente pela palavra que para alguns ainda é tabu apesar de vivermos numa sociedade neurótica e obsessiva (vejamos o consumo, o medo, a insegurança pessoal, etc.).

[2] A conceituação das duas fases está no início do texto.

[3] Em Ego, Id e outros trabalhos, Freud mostra que o Ego é uma domesticação de parte do Id ainda na pré-história.

[4] Os três principais pensadores que introduziram essa dúvida já foram anteriormente citados: Freud, Marx e Nietzsche.

[5] Id, Ego e Superego

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Kafka: burocracia ou rotina?

     


    Eu sempre achei que Kafka mostrava que o mundo era completamente burocratizado, que sua metanoia era um totalitarismo da burocracia que preenchia todos os espaços possíveis chegando a colonizar inclusive as reflexões e as relações humanas. Uma descrição que sempre me encantou, no sentido tanto de agradar como de levar da física à metafísica. Numa comparação ruim (toda comparação é ruim porque ao simplificar o real, tolhe grande parte de sua complexidade) e pensando em Aristóteles, um filósofo da antiguidade e portanto um metafísico, seria como se passássemos da política e da ética ou mesmo da sua arte (todas ligadas as limitações da realidade) para a metafísica que pelo menos acredita capturar e discutir a essência.

    Essa burocratização do universo acaba racionalizando o mesmo. Classificando, ordenando, organizando tudo de modo a que se torne o quanto possível racional, entendível. Deleuze e Guattari tem um modo diferente de ver a literatura de Kafka, a entendem como a descrição de uma maquina que abarca tudo, preenche absolutamente. O que eu vejo como burocracia, rotinas, leis, eles veem como rotina, processo da maquina:

     "Uma máquina de Kafka é, portanto, construída por conteúdos e expressões formalizados em graus diversos como por matérias não formuladas que nela entram, dela saem e passam por todos os estados. Entrar, sair da máquina, estar na máquina, percorrê-la, aproximar-se dela, ainda faz parte da máquina: são os estados do desejo, independentemente de toda interpretação. A linha de fuga faz parte da máquina. No interior ou no exterior, o animal faz parte da máquina-toca. O problema: de modo algum ser livre, mas encontrar uma saída, ou bem uma entrada, ou bem um lado, um corredor, uma adjacência, etc. Talvez seja preciso levar em conta vários fatores: a unidade puramente aparente da máquina, a maneira pela qual os homens são eles mesmos peças da máquina, a posição do desejo (homem ou animal) relativamente a ela. Na Colônia penal, a máquina parece ter uma forte unidade, e o homem se introduz completamente nela - talvez isto que acarrete a explosão final, o esfacelamento da máquina. Em América, ao contrário, K permanece exterior a toda uma série de máquinas, passando de uma à outra, expulso desde que tenta entrar: a máquina-barco, a máquina capitalista do tio, a máquina-hotel... No Processo, trata-se de novo de uma máquina determinada como máquina única de justiça; mas sua unidade é tão nebulosa, máquina de influenciar, máquina de contaminação, que não há mais diferença entre dentro e fora. No Castelo, a aparente unidade cede lugar por seu turno a uma segmentação de fundo ("O castelo era, no fim das contas, apenas uma pequena vila miserável, um amontoado de choupanas vilarinhas... Não fui feito nem para os camponeses nem, sem dúvida, para o castelo. - Não há diferença entre os camponeses e o castelo, diz o professor"); mas, desta vez, a indiferença do dentro e do fora não impede a descoberta de uma outra dimensão, uma espécie de adjacência marcada de pausas, paradas, onde se montam as peças, engrenagens e segmentos: "A estrada fazia um ângulo que se teria dito intencional, e, apesar de não se distanciar mais do castelo, ela cessava de se aproximar dele". O desejo passa evidentemente por todas essas posições e esses estados, ou, antes, segue essas linhas: o desejo não é a forma, mas processo, procedimento." [DELEUZE, 2024, p.17 e 18]

    A compreensão de Deleuze e Guattari parece dar mais plasticidade, aproximar-se mais de um conceito por permitir maior raciocínio à posteriori. No entanto, é mais totalitária no sentido em que se fragmentando em máquinas distintas muito menos resíduos escapam. Não podemos pensar como em Agamben (2004) que a perda da subjetividade, no sentido de não ser mais um sujeito e com isso não ter mais direitos ou não ser mais o retira de alguma máquina. Simplifiquei absurdamente o Agamben, até o distorci de algum modo, mas só para termos a compreensão do totalitarismo das maquinas multiplicadas. Nem o marginal (que está a margem das regras), nem o marginalizado (que foi colocado a margem da Lei) estão fora de alguma máquina. Um pouco mais a fundo, nem para Agamben. Mas tomei essa superficialidade para fazer diferença.


AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua I, Belo Horizonte: UFMG: Humanitas, 2004.

DELEUZE, Gilles. Kafka: por uma literatura menor, Belo Horizonte: Autêntica. 2024.

 


O sabiá sabia assobiar

  Assim cantou o sabiá Como sempre Sabia assobiar Com a melodia assombrar E o ritmo encadear O sol sobe e a lua baixa As estrela...