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sábado, 7 de junho de 2025

Da Política à Economia Política: da democracia à poliarquia

 




A Política na Antiguidade, ou no discurso presente ainda em boa parte da Idade Média, visava ou pregava a república, onde o bem era visado por todos e este se sobrepunha a qualquer interesse individual ou de grupos. Até porque se tinha a noção evidente de que o cidadão só existe por causa da cidade, assim como a política dependia fundamentalmente da polis. Assim, deste modo, as primeiras frases de A Política são:

 

§ 1. Sabemos que toda cidade é uma espécie de associação, e que toda associação se forma tendo por alvo algum bem; porque o homem só trabalha pelo que ele tem em conta de um bem. Todas as comunidades, pois, se propõem qualquer bem – sobretudo a mais importante delas, pois visa a um bem maior, envolvendo todas as demais: a cidade ou sociedade política. (ARISTÒTELES, 2009, p.13).

 

Tanto na Idade Antiga, quanto na Idade Média (quem preferir pode substituir os termos por Escravismo e Feudalismo) ainda imperam modelos políticos centralizadores: Monarquia, Aristocracia, Democracia... todos modelos que por mais participantes que tivessem  sempre desejavam no uno, na única ideia aceita esta ora pelo medo, pelo respeito ou pelo consenso. Os homens em seus múltiplos desejos, múltiplas necessidades tinham que se submeter a um único agir porque quem agia era a polis, melhor dizendo, o Estado e não o individuo dentro deste.

Para se mudar um modo de agir mudava-se o Estado. Esse é praticamente o pano de fundo de muitas obras antes de Nicolau Maquiavel, sobretudo em A política, de Aristóteles: cada povo tem o estado que merece, cada cultura tem um tipo diferente de governo adequado, resumindo até de forma bastante perigosa, mas tornando bastante clara a importância vital do Estado nesses momentos históricos.

Mas com o surgimento do capitalismo no fim da Idade Média e sua pungente consolidação na Idade Moderna, aos poucos a política vai perdendo a importância para a economia política. Basta analisarmos lexicamente a troca do termo comunidade, que ressalta o que é comum, pelo termo sociedade, termo econômico e contratual, durante a idade média e sua consolidação na idade moderna instaurando uma grande hegemonia hoje.

Quanto mais os interesses divergentes e ao mesmo tempo em que consolidavam a própria hegemonia em sua diversidade, mais o Estado perde a sua importância como agente, como promotor da política; mais se torna mais evidente a vida fora do Estado: a sociedade civil. Mais se torna evidente o homo laborans de Hannah Arendt que necessita trabalhar em uma tarefa sem sentido para ele pois não domina o que faz, ao contrário é dominado pelo mesmo e o faz unicamente para sobreviver (isso num sentido duro) e, que portanto não tem tempo para agir, não tem tempo para a política.

Mas essa mesma sociedade (é bom lembrar a carga do termo) cria a sociedade civil onde as pessoas se associam em nome de interesses comuns, mas não mais comuns a todos nem à polis ou Estado como um todo. Nasce assim uma “democracia pluralista (poliárquica e policêntrica) , em contraste com o ideal da democracia monística ou monocrática” (BOBBIO, 2000, p.85). Desse modo a democracia tem seu significado substituído, agora ela precisa ser plural, abranger e respeitar todos os pontos de vista, não precisa mais construir necessariamente o consenso.

Assim a política, assim como o capitalismo vive da pluralidade, do dissenso. Não tem outra razão de existir que não a de um grupo conseguir o poder para impor seus desejos aos outros e da esperteza para se manter no poder. É claramente uma economia política com a consolidação das ideias de competição, de funcionalidade, de eficiência.

Aliás, em nosso tempo, a imposição de um consenso desagrada a todos. Prefere-se um impasse permanente que nos impossibilite agir do que um consenso forçado por qualquer necessidade. Tem-se a impressão de ‘engolir a seco’. Assim em nosso tempo o não-político tem muito mais importância em nossas vidas.  A política como o espaço da ação por excelência, essa é uma definição clássica de política, acaba acontecendo muito mais fora do Estado, na sociedade civil, onde está o não-político. As fronteiras entre o político e o não-político à medida que a sociedade civil cresce de importância vão se tornando mais tênues até que a política invada de vez através da biopolítica.

Assim a todo o momento agimos politicamente, mas não fazendo política. Em todo instante somos governados integralmente, inclusive nossos corpos pela política. Desse modo a morte da política na modernidade ou contemporaneidade constitui-se no império totalitarista da política que desse modo não deixa mais espaço para nada ou parafraseando Agamben: a política se tornou teologia e a teologia se tornou política.

 

 

Referências:

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I; tradução de Henrique Burigo. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

AGAMBEN, Giorgio. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo; tradução Selvino G. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2011.

ARISTÓTELES. A política; tradução Nestor Silveira Chaves. 2ª ed. Bauru, SP: EDIPRO, 2009.

BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos; organizado por Michelangelo Bonavero; tradução Daniela Becária Versiani. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

ZINGANO, Marco. Aristóteles: tratado da virtude moral; Ethica Nicomachea I 13-III 8. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.

 

 

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Três conceitos - três recortes - dois autores fundamentais sobre Política


 

A) Hannah Arendt

“A Condição Humana (The Human Condition), publicada em 1958, pretendia, portanto, com base numa antropologia filosófica, responder à pergunta que fora deixada sem resposta em Origens do Totalitarismo: em que condições um universo não totalitário é possível? A análise toma por objeto a vita activa (vida ativa em oposição ao que a filosofia tradicional chamada de vida contemplativa), e a vê segundo três modalidades fundamentais: trabalho, obra e ação. Tomado no processo biológico das necessidades e da sua satisfação, o trabalho é uma atividade indefinidamente repetitiva, voltada para a satisfação das necessidades vitais: só produz o que é perecível. É à obra que cabe produzir coisas duráveis, artefatos e objetos que não sejam aniquilados assim que consumidos. Mas essa durabilidade é ainda relativa e está submetida, em ultima instância, à utilidade e ao ciclo dos meios e dos fins. Resta, pois, a ação única capaz de transcender o ciclo da necessidade vital e da cadeia infinita dos meios e dos fins. Inseparável da palavra, a ação é revelação do quem num espaço público de surgimento em que cada um é visto e ouvido por outros. Embora não seja privilégio apenas do ator político (no sentido estrito do termo), a ação enseja a constituição de um espaço público – distinto do domínio privado – em que se estende a rede das relações humanas. A condição humana de pluralidade, correlata da ação e da palavra, é para Arendt um verdadeiro conceito fundador que se encontra em todas as etapas de sua análise. (...) Mas toda a dificuldade é que a ação que nos insere no mundo não tem outra validação além do seu próprio aparecer. Não deixando atrás de si – como já sabiam os gregos – nenhum produto fabricado, introduzindo os homens num tecido de relações que eles não dominam, a ação é eminentemente frágil, seus resultados são imprevisíveis e não podem ser desfeitos”. (HUISMAN, 2001, p.60 e 61)

 

B) Aristóteles

“O termo ‘política’ é essencial. Vem do grego polis, ‘cidade’, ou ainda ‘Estado’. ‘Política’ é a possibilidade de civilizar, abrandar os costumes do Estado através de instituições, da cultura. O Estado é sem dúvida a forma mais elaborada da sociedade: só ele tem por finalidade a ‘vida bem-aventurada’ dos homens livres. Verdadeiro ‘animal político’, o homem não pode, sozinho ou no seio de uma família ou de uma aldeia, assumir ou realizar seus desejos e aspirações de modo satisfatório; também não pode atingir essa perfeição à qual chega o Estado: este vale em si mesmo e por si mesmo”. (HUISMAN, 2000, p.434 e 435)

 

C) Habermas

“As ações humanas (quando orientadas para o sucesso) têm como mediação o dinheiro (economia) e o poder (Estado). Mas o universo da intercompreensão tem como mediação os ‘atos de fala’. (...) A ação comunicativa remete às interações mediadas pela linguagem, em que, retomando a expressão de Habermas, ‘todos os participantes, por ações de linguagem, perseguem (...) para obterem um acordo que propicie fundamento para uma coordenação consensual dos planos de ação perseguidos individualmente’”. (HUISMAN, 2000, p.524)

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Qual liberdade?

 


Hoje decidi discutir um assunto que me agrada muito: a concepção de liberdade ao longo da história e da filosofia e a concepção deísta de Spinoza e suas consequências cerceadoras da liberdade. É interessante como por motivos diversos a humanidade chegou a concepções diferentes de liberdade, assim como caminhos diferentes para obtê-la.

Baruch Spinoza diz que o universo é formado por uma única substância e que os objetos e seres são substâncias particulares dessa mesma substância que é Deus, com isso Spinoza invalida uma das teses fundamentais do cristianismo que é o livre-arbítrio, pois sendo tudo substância particular do Criador, não há escolha independente Dele e assim mesmo que inconscientemente cai-se num certo fatalismo. Hobbes expressa uma ideia de liberdade muito interessante no Leviatã, em que ele diz que antes da existência do Estado (cabe dizer que ele era um dos defensores da monarquia) os homens podiam fazer o que bem lhes entendessem, pois não havia leis, nem mecanismos de coação, nem propriedade de quaisquer tipos e por isso tudo era permitido. Temos aqui dois conceitos libertinos, pois Spinoza foi considerado libertino tanto pelos Reformistas como pelos Contra reformistas, que são completamente adversos.

Para Aristóteles, o homem livre era o que podia exercer sua liberdade na polis e justamente por sua ação na polis era a justificativa de sua liberdade. Em suma era praticamente dizer que o cidadão grego era livre porque exercia a sua liberdade na polis. O segundo maior filósofo cristão (até porque por definição o primeiro necessariamente é Jesus Cristo), o bispo de Hipona Aurélio Agostinho, definia liberdade como justamente o contrário: "Só há liberdade quando não há mais laços materiais". Para os liberais econômicos monetaristas a liberdade é a de acumular as riquezas excedentes. Já para Marx a liberdade consistia justamente no proletariado se livrar dos grilhões que os prendem à burguesia, justamente a classe que se apropria da mais-valia.

Como se podem ver as principais ideologias presentes em nossa sociedade abrigam conceitos de liberdade diametralmente opostos uns aos outros e que cabe pensar muito bem em que considerar para formular nossa concepção de sociedade. Não estou falando de assumir um discurso, mas de construir nossas ideias sobre esse pântano de concepções. O que é mais justo?

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Uma crise inevitável?

 


Vivemos em um mundo que valorizou excessivamente a ideia de indivíduo, a noção de sociedade. Uma sociedade ilimitada de fato. Não há melhor definição para um empreendimento onde os sócios não são conhecidos e nem se conhecem ou interagem (como pede uma boa política). Não há ideia melhor para coordenar as ações isoladas de seres que inexistem para os outros que a ideia da mão invisível de Adam Smith. Alguma coisa tão imperceptível como o espírito da história de Hegel a organizar as ações para o melhor proveito do sistema, digo, do empreendimento, ou seja, da sociedade, porém muito menos explicável.

Não bastasse isso, como uma sociedade financeira e financista, tudo é orientado para o consumo. Absolutamente tudo é consumido. Nada escapa à missão de satisfazer desejos, numa espécie de pesadelo budista, onde como previa Sidarta Gautama, um desejo leva a outro e o outro a um novo, numa cadeia infinita de desejos, felicidade instantânea e uma eterna insatisfação por não alcançar nunca o último desejo. E nós consumimos tudo: coisas, sentimentos, pessoas, ideias, descanso, lazer, etc. Tudo dentro da lógica Aristotélica de que o único fim-em-si é a felicidade, mas com o adendo de que esta nunca pode ser alcançada pelo espiral de desejos.

Num mundo que nos anula, nos reifica, nada mais natural de que não possa se falar de humanidade. Sem humanidade, fica impossível existir o humanismo. Talvez seja melhor num mundo como esse desistir do conhecimento, fixar-se apenas nas informações. Esquecer a ontologia, a ética e a epistemologia e nos ligarmos na cibernética, pois só importa a informação. O conhecimento e a reflexão não cabem mais nesse mundo de inputs e outputs.

Sem humanismo, sem humanidade, atormentado pela reificação e pelo niilismo, o “homem” encontra-se perdido, totalmente sem parâmetros. Sobretudo num mundo rápido em que a técnica toca o mundo na sua velocidade e arrasta os homens, que em nenhum momento param e pensam: “poxa, eu sou um homo ludens. Sou eu que faço a história e sou feito por esta. Não fatores estranhos às minhas interações”. Num mundo estranho desse, o “homem” se sente completamente inadequado. Não há mais base nenhuma para seus pensamentos. Nenhuma garantia. O sistema funciona independente dele. O que ele faz no mundo? Qual a sua missão? Que importância tem? Toda a personalidade, de persona, pessoa, é perdida.

Sobra ao ser humano uma crise de personalidade. Ele acredita ser algo, mas a todo instante o mundo lhe mostra que ele não é nada. Ele pensa em coisas bonitas. Tem convicções utópicas da época do humanismo, acredita ser gente. Mas isso pouco importa. Assim estão criadas as condições da crise perpétua. Uma crise de personalidade que se funda ora na inadequação, quando o ser acredita ser algo ainda, ter personalidade. Ou na anulação, quando o ser descobre que sujeito a quase tudo ele está, mas um sujeito ele não é, pois perdeu sua subjetiva ao se transnaturar de animal pra coisa, instrumento.

A humanidade, com todas as evidências contrárias insiste em refletir. Que bom! Mas pensar é justamente o bom contrassenso que a deixa em crise. Sorte que a crise é o terreno da filosofia e esta é um dos únicos domínios que a subjetividade pode existir ainda. Pensemos e ultrapassemos a crise existencial e talvez voltemos a ser humanos.

sexta-feira, 28 de março de 2025

A Ética, a Razão e a Felicidade

 


Aristóteles em suas Éticas (Ética a Nicômaco e Ética a Eudemo) dizia que o único fim-per-se ou fim-em-si-mesmo é a felicidade. Provavelmente, após a modernidade e o consumismo temos que reconsiderar essa questão da existência de uma finalidade final. Mas a discussão mais interessante, e que nos interessa, é a afirmação dele de que somente os que tem a vida contemplativa poderiam alcançar esse bem último por se guiarem pela racionalidade enquanto os da vida laboral ou produtiva não se guiam e estarem imunes a corrupção da vida material, os da vida política não estão. Portanto, Aristóteles coloca a sabedoria, ou melhor o amor a sabedoria, em condição privilegiada para alcançar a felicidade.

Em vários trechos do evangelho é descrito justamente o contrário: que a felicidade pertence aos ingênuos e aos ignorantes. Em Werther, Goethe descreve muito bem esse contraponto à Aristóteles e faz uma bela síntese:

No entanto, para viver uma vida sob a ética humanista ou sob a inspiração cristã, a busca da felicidade não faz parte da equação. Para os cristãos, em muitas passagens do novo testamento, da boa nova do amor depois da vinda do Messias, a vida na terra é uma vida de provações, de sofrimento para alcançar a redenção após a morte. Para os humanistas, a ética visa o bem comum, não a felicidade pessoal e, esta é, de certa forma, incompatível: é preciso sacrificar os desejos em nome de um bem maior: o bem comum.

A vida humana não passa de um sonho. Mais de uma pessoa já pensou isso. Pois essa impressão também me acompanha por toda parte. Quando vejo os estreitos limites onde se acham encerradas as faculdades ativas e investigadoras do homem, e como todo o nosso labor visa apenas a satisfazer nossas necessidades, as quais, por sua vez, não têm outro objetivo senão prolongar nossa mesquinha existência; quando verifico que o nosso espírito só pode encontrar tranquilidade, quanto a certos pontos das nossas pesquisas, por meio de uma resignação povoada de sonhos, como um presidiário que adornasse de figuras multicoloridas e luminosas perspectivas as paredes da sua célula... tudo isso, Wilhelm, me faz emudecer. Concentro-me e encontro um mundo em mim mesmo! Mas também aí, é um mundo de pressentimentos e desejos obscuros e não de imagens nítidas e forças vivas. Tudo flutua vagamente nos meus sentidos, e assim, sorrindo e sonhando, prossigo na minha viagem através do mundo.

As crianças – todos os pedagogos eruditos estão de acordo a este respeito – não sabem a razão daquilo que desejam; também os adultos, da mesma forma que as crianças, caminham vacilantes e ao acaso sobre a terra, ignorando, tanto quanto elas, de onde vêm e para onde vão. Não avançam nunca segundo uma orientação segura; deixam-se governar, como as crianças, por meio de biscoitos, pedaços de bolo e vara. E, como agem por essa forma, inconscientemente, parece-me, que se acham subordinados a vida dos sentidos.

Concordo com você (porque já sei que você vai contraditar-me) que os mais felizes são precisamente aqueles que vivem, dia-a-dia, como as crianças, passeando, despindo e vestindo as suas bonecas; aqueles que rondam, respeitosos, em torno da gaveta onde a mamãe guardou os bombons, e quando conseguem agarrar, enfim as gulodices cobiçadas, devoram com sofreguidão e gritam: “Quero mais!” Eis a gente feliz! Também é ditosa a gente que, emprestando nomes pomposos às suas mesquinhas ocupações, e até às suas paixões, conseguem fazê-las passar por gigantescos empreendimento destinados à salvação e prosperidade do gênero humano. (GOETHE, 2003, p. 226 a 228).

Mas não se pode negar que ter uma vida feliz é, razoavelmente fácil: basta viver uma vida egoísta, pautada em seus próprios desejos e ter poder para que sua onipotência particular não seja punida. Algo perfeitamente possível para no mínimo de cinco a quinze por cento do mundo. Muito pouco estatisticamente, mas em números, gente demais; centenas de milhões.

quinta-feira, 13 de março de 2025

Problema técnico

 


Renê Descartes definiu que ao homem é possível conhecer tudo até o seu limite, pois o homem é um ser limitado em um universo ilimitado e por isso teria acesso a verdades contingentes, restritas. Toda uma tradição do conhecimento humano como limitado perdurou por muito tempo até o estabelecimento da ciência moderna e da técnica como hegemônica no mundo, quando ao homem cabe potencialmente conhecer também o ilimitado. No entanto por ignorar a ética, como consequência disso, vários deslizes éticos aconteceram. Assim poderíamos refletir sobre o que afirmou Aristóteles em Ética à Nicômacos:

Escolhemos o que é indubitavelmente reconhecido como bom, mas opinamos sobre coisas que não sabemos de forma alguma se são boas, e não são as mesmas pessoas que consideramos capazes de fazer a melhor escolha e de ter as melhores opiniões; com efeito, algumas pessoas são tidas como aptas a opinar muito bem, mas por deficiência moral elas podem escolher o que não devem. (ARISTÓTELES, 1992, p.53 e 54).

quarta-feira, 12 de março de 2025

Na contramão da modernidade: outra lição de Aristóteles

 


Num momento em que, apesar de ciências como a ecologia que põe em evidência a visão sistemática do todo, ainda é muito forte a exigência de especialização imposta pela técnica seria muito bom que os pensadores voltassem a ler a Metafisica de Aristóteles. Sobretudo porque expõe argumentos muito interessantes para sua belíssima e inusitada tese que deveríamos considerar. O trecho onde destaca que é preferível o conhecimento geral ao conhecimento específico está logo nas primeiras páginas de sua obra. O trecho que transcrevo está no livro 1 de a Metafísica e está demarcada em seus trechos com as marcas 982a1 e 982b1. Assim versa este:

Tais são em gênero e numero as opiniões sustentadas quanto à sabedoria e ao sábio. Das qualidades descritas, o conhecimento de todas as coisas tem, necessariamente, que pertencer àquele que, no mais elevado grau, possui conhecimento do universal, porque ele conhece, num certo sentido, todos os particulares contidos no universal. Estas coisas, quais sejam, as mais universais, são talvez as de mais difícil apreensão para o ser humano, porque são as mais distanciadas dos sentidos. Que se acresça que as ciências mais exatas são as que mais concernem aos primeiros princípios, pois as que são baseadas em poucos princípios são mais exatas do que aquelas que incluem princípios adicionais; por exemplo, a aritmética é mais exata do que a geometria. Além disso, a ciência que investiga causas é mais instrutiva do que a ciência que não o faz, pois são os que nos informam acerca das causas de qualquer coisa particular que nos instruem. Ademais, o entendimento e o conhecimento que são desejáveis por si mesmos são mais atingíveis no conhecimento daquilo que é mais cognoscível, uma vez que aquele que deseja o conhecimento por si mesmo desejará maximamente o mais perfeito conhecimento, e este é o conhecimento do mais cognoscível, e as coisas que são as mais cognoscíveis são primeiros princípios e causas, pois é através destes e a partir destes que outras coisas passam a ser conhecidas, e não estes através dos particulares que neles se enquadram. E será a ciência máxima e superior às subordinadas a que detiver o conhecimento da finalidade de cada ação a ser concretizada, isto é, o bem em cada caso particular e, no geral, o bem supremo no conjunto da natureza.

O trecho além de demonstrar porque o conhecimento do todo é superior ao conhecimento das partes, pois de certa forma as abrange. Assim quem domina a teoria ao encarar a prática pode aos poucos não apenas compreender um caso particular, uma aplicação da ciência conhecida, não com a mesma facilidade de um especialista naquela subárea, mas pode compreender todas as outras especificamente que seu conhecimento abrange com muito mais facilidade que um especialista. Outro ponto fundamental que compensa a leitura é a destinação do conhecimento. Podemos dizer que Aristóteles é um dos maiores fundamentadores da técnica e da ciência, mas o fim da técnica para o filosofo estagirita é o bem, que poderíamos traduzir modernamente em uma de suas acepções como fazer o melhor. Assim trocaríamos o fim atual (eficiência e produtividade), na qual o foco está apenas no fim, pelo fazer o melhor, para o qual vale todo o processo, pois fazer o melhor inclui também fazer melhor.

segunda-feira, 10 de março de 2025

Pluralidade novamente

 


Quem expôs mais completamente a relação entre pluralidade, ação e política foi Hannah Arendt, que atualizou sob um contexto extremamente ímpar, o nazismo, as ideias políticas gregas sobre a política. Além do mais, Arendt surge após a modernidade e a hegemonia dos valores ativos sobre os contemplativos. Numa época em que o trabalho torna-se talvez o fator mais forte a influenciar a subjetividade. Aliás, a própria subjetividade Kantiana é um diferencial fundamental dos modernos para os gregos. Mas para se entender bem um conceito é de muito auxílio buscar as origens dele. Sobre a pluralidade, nada melhor para entendê-la que um trecho da crítica de Aristóteles à República de Platão, o qual propõe uma comunidade de tudo assegurada por uma casta dirigente em um regime forte e fechado:

A comunidade política funda-se na colaboração de uma pluralidade de indivíduos diversos por capacidade e recursos, os quais, exatamente por estas diversidades interagem na troca recíproca de bens e serviços; é precisamente esta troca entre diversos que permite à comunidade política um nível de “autossuficiência” superior ao da família e ao do indivíduo. A synphonia política não pode ser transformada em homophonia. O projeto platônico, que pode parecer à primeira vista “belo, mas impossível”, na realidade não é sequer desejável, porque nega a essência pluralística da cidade; mesmo que fosse possível, não deveria ser realizado. “É, portanto, evidente que por natureza não pode haver uma cidade tão unida como alguém defende, e que aquilo que é apresentado como o máximo bem nas cidades é exatamente aquilo que as destrói”. (VEGETI, 2010 p.36 e 37).

Synphonia é a atuação de todos, todos podem discursar ao "mesmo tempo", como uma orquestra. Quer dizer cada qual de maneira diferente constrói um o mesmo objetivo, há sincronia, estão afinados, embora cada um toque um instrumento diferente. Homophonia é como se todos pensassem a mesma coisa, todos iguais, todos tocando um mesmo instrumento.

quarta-feira, 5 de março de 2025

Idéias magnanimamente aristotélicas

 


Hannah Arendt, e depois Jürgen Habermas, fizeram excelentes releituras de Aristóteles, sobretudo de suas ideias políticas. Souberam com maestria atualizá-lo. Mas o autor tem ideias interessantes que, creio eu, nem necessitariam de atualização se pegas em seu "espírito". O início do capítulo dois do livro quarto de A Política tem concepções interessantes que poderiam ser refletidas. Assim transcrevo literalmente o começo desse interessante capítulo:

É bom lembrar que República vem de Rés Pública, coisa pública, assim é o tipo de Constituição, no sentido de constituir mesmo e não o nosso limitativo de Lei Magna, que prima pelo público, cujo principal valor é cuidar da coisa pública. Aristocracia, por definição, é o governo dos melhores. Realeza é o governo pelo nobre. Nobre tem o sentido ainda hoje de virtuoso. Virtude é um dos grandes temas, se não o maior de Aristóteles. No entanto, ele deixa claro que prefere a República e suporta a Democracia, que é o governo de todos, sejam virtuosos ou não, preocupando-se ou não com a rés pública.

1. Distinguimos, em nosso primeiro estudo das constituições, três constituições puras: a realeza, a aristocracia, a república, e três outras que são desvios dessas: a tirania para a realeza, a oligarquia em relação à aristocracia, e a democracia quanto à república. Já falamos da aristocracia e da realeza – porque estudar a melhor forma de governo é justamente explicar a significação dessas duas palavras, pois que a existência de cada uma dessas formas só se pode basear na virtude, e em tudo que possa acompanha-la. Determinamos também as diferenças existentes entre a aristocracia e a realeza, e os caracteres distintivos pelos quais se pode reconhecer a realeza. Resta-nos tratar apenas, em primeiro lugar, do governo designado pelo termo comum de república, e depois dos outros governos, isto é, da oligarquia, da democracia e da tirania.

2. É fácil compreender qual é o pior desses governos degenerados, e qual o que lhe segue; porque o pior deve ser, forçosamente, aquele que é uma corrupção do primeiro e do mais divino. É preciso que a realeza só exista no nome, ou que se funda na incontestável superioridade daquele que reina; segue-se que a tirania que é o pior dos governos, é também aquele que mais se afasta da república. Em segundo lugar vem a oligarquia; porque a aristocracia difere bastante desta forma de governo. Afinal a democracia é o mais tolerável desses governos degenerados.

segunda-feira, 3 de março de 2025

Democracia, seus desvios, seus desvarios

 


No livro quarto, capítulo IX, 8 de A Política, o estagirita Aristóteles mostra um dos maiores defeitos da democracia, que costumeiramente a transforma em uma oligarquia, a desigualdade econômica. Obviamente, Aristóteles não conheceu um problema maior que é a questão da representatividade numa democracia representativa, que transforma a democracia em patrimonialismo, em conjunto com o primeiro grave problema. Sobre o primeiro problema, o estagirita é sábio:

Portanto, a própria desigualdade econômica deteriora o que Aristóteles denomina por república, que é o regime voltado para cuidar do que é público e, portanto serve a todos. Os argumentos da Aristóteles, mostrando que o predomínio de um grupo sobre o outro rompe com o ideal de igualdade, primeiro princípio de qualquer democracia. Se todos não são iguais para agir politicamente, não podem ser considerados livres, pois quem não pode agir, obviamente não é livre.

“É evidente, pois, que a comunidade civil mais perfeita é a que existe entre os cidadãos de uma condição média, e que não pode haver Estados bem administrados fora daqueles nos quais a classe média é numerosa e mais forte que todas as outras, ou pelo menos mais forte que cada uma das delas; porque ela pode fazer pender a balança em favor do partido ao qual se une, e, por esse meio, impedir que uma ou outra obtenha superioridade sensível. Assim, é uma grande felicidade que os cidadãos só possuam uma fortuna média, suficiente para as suas necessidades. Porque, sempre que uns tenham imensas riquezas e outros nada possuam, resulta disso a pior das democracias, ou uma oligarquia desenfreada, ou ainda uma tirania insuportável, produto infalível dos excessos opostos. Com efeito, a tirania nasce comumente da democracia mais desenfreada, ou da oligarquia. Ao passo que entre cidadãos que vivem em uma condição média, ou muito vizinha da mediana, esse perigo é muito menos de se temer”. (Aristóteles, 2009, p. 141 e 142).

Esse é um grande problema, mas não é o pior, pois a democracia representativa, que por sua própria estrutura alija as pessoas das decisões políticas, de agir politicamente, pois são induzidas a limitarem suas manifestações à escolha de seus representantes dentro de uma lista preestabelecida de candidatos que quase nunca tem um perfil que represente as aspirações do eleitor só pra citar o menor dos problemas. Na verdade, os problemas estão longe de ser “ideológicos”, mas sim o do predomínio dos mesmos grupos eternamente no poder porque o mecanismo da representação e da institucionalização em partidos ou comitês lhes favorecem. Basta dominar um menor grupo para se tornar uma das raras alternativas possíveis e ganhar se elegendo ou não. Perpetuando-se no poder. Tendo este como seu patrimônio pessoal.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

A volta de Aristóteles

 


Hannah Arendt, Jurgen Habermas e Karl Jaspers foram majestosos leitores de Aristóteles e conseguiram atualizá-lo muito proficuamente tornando-o muito inteligível e importante para o resgate da política, praticamente massacrada pela modernidade e o surgimento das ciências políticas. Os três filósofos retomam valores como interação, multiplicidade e alteridade.

Aristóteles tem diagnósticos interessantíssimos sobre a democracia. Vejamos o que o estagirita diz no livro quarto, capítulo IV de A Política, esse interessante livro sobre o Estado e a República (transcrevo literalmente):

A primeira espécie de democracia é aquela que tem a igualdade por fundamento. Nos termos da lei que regula essa democracia, a igualdade significa que os ricos e os pobres não têm privilégios políticos, que tanto uns como outros não são soberanos de um modo exclusivo, e sim que todos o são exatamente na mesma proporção. Se é verdade, como muitos imaginam, que a liberdade e a igualdade constituem essencialmente a democracia, elas, no entanto, só podem aí encontrar-se em toda a sua pureza, enquanto gozarem os cidadãos da mais perfeita igualdade política. Mas, como o povo constitui sempre a parte mais numerosa do Estado, e é a opinião da maioria que faz a autoridade, é natural que seja esse o característico essencial da democracia. Eis aí, pois, uma primeira espécie de democracia.

A condição de que as magistraturas sejam dadas segundo um censo determinado, contanto que pequeno, constitui uma outra espécie; mas é preciso que aquele que chega ao censo exigido tenha uma parte nas funções públicas, e delas seja excluído quando cessar de possuir o censo. Uma terceira espécie admite às magistraturas todos os cidadãos incorruptíveis; mas é a lei que manda. Em uma outra espécie, todo habitante, contanto que seja cidadão, é declarado apto a gerir as magistraturas, e a soberania é firmada na lei. Finalmente existe ainda uma quinta, na qual as mesmas condições são mantidas, mas a soberania é transportada da lei para a multidão.

Eis o que acontece quando os decretos outorgam a autoridade absoluta à lei, coisa que resulta no crédito dos demagogos. Porque, nos governos democráticos onde a lei é senhora, não há demagogos: são os cidadãos mais dignos que têm precedência. Mas uma vez perdida a soberania da lei, surge uma multidão de demagogos. Então o povo se transforma numa espécie de monarca de mil cabeças: é soberano, não individualmente, mas em corpo. Quando Homero diz que a dominação de muitos é um mal, não se sabe se ele entende por isso a dominação de todo um povo, como nós o fazemos aqui, ou a dominação de muitos chefes reunidos que não forme, por assim dizer, mais que um chefe.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

A ética do cuidar

 

Nossa sociedade é bombardeada por valores que destacam o individualismo, o consumismo, a insegurança. Abdicamos gradativamente desde a idade média do coletivo e estamos quase abandonando o individual, estamos nos desumanizando. Não porque sejamos maus ou perversos, mas porque somos jogados numa rotina massacrante em que praticamente os únicos gritos que ouvimos são cuide da sua vida, compre isso pra você, se satisfaça, e semelhantes...

Como se fosse possível viver isolado. Como se o bem do próximo não tivesse nada a haver com o seu bem. Como se você comprasse uma roupa bonita só pra você ver. Se for só isso, porque você não usa trancada no seu quarto porque só o que importa é a sua opinião.

Somos seres altamente gregários. Não somos independentes sem que os outros garantam a nossa independência ou a convalidem. Como já expôs Aristóteles, ninguém é independente sozinho. Que é independente sozinho, aliás, é independente de quem cara pálida!

Agora o que é incrível é que poucos de nós tomamos consciência de nossa interdependência. E dos que tem consciência disto, pequena parcela age como se soubesse. O que é mais complicado ainda. É necessário tomarmos uma profunda consciência deste fato e começarmos a agir de fato como se o outro existisse e fosse vital para nós. São os outros é que possibilitam a existência que determinamos.

Então volto à necessidade do cuidado que devemos ter uns com os outros de modo a tornar mais harmônica possível a nossa convivência e aí facilitar nossa interação na sociedade em vistas de estabelecermos quem somos e agirmos com maior efetividade. É preciso que entendamos que a sociedade é uma teia e que ao cuidar do outro estamos cuidando de nós.

A nossa vida é permeada de relações e a história é claramente dialética. Vivemos num grande sistema em que nossas ações não são impunes. Quem age bem e pensadamente colhe os melhores resultados. Ao sermos carinhosos e atenciosos com nossos pares, estamos estabilizando um sistema no qual fazemos parte e é claro nos afeta.

Outra questão é a da responsabilidade social, a da responsabilidade pelo outro. Temos que agir sempre eticamente de modo a causar o maior bem possível provocando o menor dano provável, pois estamos todos volúveis num mesmo plano de dominós. O menor balanço pode não te detonar, mas se a sua linha começar a cair se cuide.

Então, o que estou falando é que cuidar do outro não é uma questão simples de bondade, amor, fraternidade, é questão de sobrevivência. O que é preciso não é que sejamos bonzinhos, é que tenhamos consciência e sejamos responsáveis pelos nossos fracassos. Pois cada ser desiludido é parcialmente um fracasso pessoal de todos nós. A outra parte é do próprio, é claro.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Quem abraça tudo não abraça nada



    O interesse da política na Idade Antiga e boa parte de Idade Média se restringia aos que dela participavam e por ela se interessavam. Portanto tinha enorme importância se interessar e participar das decisões políticas, pois não se legislava pelo interesse geral, ou seja, dos que não participavam dela. Portanto em nenhuma hipótese poder-se-ia delegar poder ou esperar que suas demandas fossem atendidas sem agir. Para Aristóteles, os terrenos da ação por excelência eram a política e a ética. Hannah Arendt restringe esse terreno aristotélico à somente a política.

    Entretanto quando a política passa a se interessar por tudo e todos, desde o seu princípio na Idade Média ainda, mas que alcançou a sua onipresença apenas na Idade Moderna, passa a controlar não só o Estado ou suas leis, mas a absolutamente todos os corpos. Deste modo, toda a ação passa a ser controlável e, mais que isso, controlada. Os cidadãos perdem o seu poder de influenciar os destinos da “polis” por assim dizer.

Para a pergunta sobre o sentido da política existe uma resposta tão simples e tão concludente em si que se poderia achar outras respostas dispensáveis por completo. Tal resposta seria: o sentido da política é a liberdade. [...] Essa resposta não é, hoje, natural nem imediatamente óbvia. Isso evidencia-se porque a pergunta hoje não é simplesmente sobre o sentido da política, como antes se fazia, em essência, a partir de experiências não políticas ou até mesmo antipolíticas. [...] Por conseguinte, a pergunta é muito mais radical, muito mais agressiva, muito mais desesperada: tem a política algum sentido ainda? [...] Nessa pergunta assim formulada [...] mesclam-se dois elementos bem distintos: por um lado, a experiência das formas totalitárias de Estado nas quais toda a vida dos homens foi politizada por completo, tendo como resultado a liberdade não existir mais nelas. Visto que a partir daí, sob condições especificamente modernas, surge a pergunta se política e liberdade são compatíveis entre si, se a liberdade não começa onde cessa a política, de modo a não existir mais liberdade onde a coisa política não encontra seu fim e seu limite em parte alguma. [...] em segundo lugar, a pergunta é forçosamente em vista do monstruoso desenvolvimento das modernas possibilidades de destruição – cujo o monopólio os Estados detêm; sem esse monopólio, jamais teriam chegado a se desenvolver – e que só podem ser empregadas dentro do âmbito político. O que está em jogo aqui não é apenas a liberdade, mas sim a vida, a continuidade da existência da Humanidade e talvez da vida orgânica na Terra. A pergunta de agora torna duvidosa toda a política; faz parecer discutível nas condições modernas se a política e a conservação da vida são compatíveis entre si, e espera, sub-repticiamente que os homens tenham juízo e de alguma maneira consigam abolir a política antes de sucumbir por causa dela. [...] As duas experiências nas quais se inflama a pergunta atual sobre o sentido da política são as experiências políticas fundamentais de nossa época. Se passar ao largo delas, seria como se não tivesse vivido, em absoluto, no mundo que é nosso. Em contrapartida, ainda existe uma diferença entre elas. Contra a experiência da politização total nas formas totalitárias de Estado e o caráter duvidoso da coisa política que nela nasce está sempre o fato de, desde a Antiguidade, ninguém mais ser da opinião que o sentido da política é a liberdade; bem como o outro fato de, nos tempos modernos, tanto em termos teóricos como práticos, a coisa política ser tida como um meio para proteger o sustento da vida da sociedade e [a] produtividade do desenvolvimento social livre. Contra o questionamento da coisa política como existe na experiência totalitária, haveria um recuo para um ponto de vista anterior, falando-se em termos históricos – como se as formas de dominação totalitárias não houvessem demonstrado nada melhor, como se tivesse razão o pensamento liberal e conservador do século XIX. O desconcertante no aparecimento de uma possibilidade de destruição física absoluta dentro da coisa política é tal retirada ser nada mais nada menos do que impossível. Pois a coisa política ameaça exatamente aquilo onde, no conceito dos tempos modernos, reside o próprio direito de existência, a saber, a mera possibilidade de vida – na verdade, de toda a Humanidade. Se for verdade que a política nada mais é do que algo infelizmente necessário para a conservação da vida da Humanidade, então de fato ela mesma começou a se riscar do mapa, ou seja, seu sentido transformou-se em falta de sentido. (ARENDT, 2011, p.38, 39 e 40).

A ação, no sentido arendtidiano torna-se algo raro e precioso e a economia onipresente assim como a vida comum, que não fazia parte das origens da política. E Hannah Arendt, diz que num mundo onde a ação é menosprezada e coibida, a resposta para a resolução dos problemas da humanidade é o milagre, mas não no sentido religioso:

Se partirmos da lógica inerente a esses fatores e supusermos que nada mais do conhecido por nós determina e determinará o curso do mundo, então só podemos dizer que uma mudança para a salvação só poderá acontecer por meio de uma espécie de milagre. Para perguntar, com toda a seriedade, o que há de verdade nesse milagre para eliminar a suspeita de que uma esperança – ou contar com milagres – é pura leviandade ou frivolidade insensata, precisamos antes de mais nada esquecer o papel que o milagre sempre desempenhou na crença e na superstição, portanto, no religioso e no pseudo-religioso. Para nos libertarmos do preconceito de que o milagre é um fenômeno genuína e exclusivamente religioso, no qual algo sobrenatural e sobre-humano se intromete no desenrolar dos assuntos humanos ou no desenvolvimento natural, talvez seja conveniente rememorarmos em breves instantes que todo o marco de nossa existência real – a existência da Terra, da vida orgânica sobre ela, a existência do gênero humano – baseia-se numa espécie de milagre. Porque, sob o ponto de vista dos fenômenos universais e das probabilidades que nelas reinam e que podem ser apreendidas estatisticamente, o surgimento da Terra foi uma ‘infinita impossibilidade’. [...] Nesses exemplos, fica claro que sempre que algo de novo acontece, de maneira inesperada, incalculável e por fim inexplicável em sua causa, acontece justamente como um milagre dentro do contexto de cursos calculáveis. Em outras palavras, cada novo começo é, em sua natureza, um milagre – ou seja, sempre visto e experimentado do ponto de vista dos processos que ele interrompe necessariamente. Nesse sentido, a transcendência religiosa da crença no milagre corresponde à transcendência real e demonstrável de cada começo em relação ao contexto do processo no qual penetra. [...] Se tomarmos esse exemplo como uma metáfora para aquilo que sucede de fato no âmbito dos assuntos humanos, então ele logo começa a claudicar. Pois os processos com os quais temos que lidar aqui, são, como dizemos, de natureza histórica, ou seja, não se desenrolam na forma de desenvolvimentos naturais, mas sim como cadeias de acontecimentos em cujo encadeamento acontece aquele milagre das ‘infinitas improbabilidades’ sempre com tanta frequência que nos parece estranho falar aqui de milagre. Isso reside apenas no fato de que o processo da História surgiu por iniciativa humana e está sempre sendo rompido por novas iniciativas. Se vemos esse processo em seu puro caráter de processo – e isso acontece naturalmente em todas as filosofias históricas para as quais o processo histórico não é o resultado do agir em conjunto dos homens, mas sim do desenvolvimento e da coincidência de forças extra-humanas, sobre-humanas ou subumanas, ou seja, onde o homem é eliminado da História -, então cada novo começo, para a salvação ou a desgraça, é tão infinitamente improvável que todos os acontecimentos maiores se apresentam como milagres. [...] A diferença decisiva entre as ‘infinitas improbabilidades’ nas quais se baseia a vida terrestre-humana e o acontecimento-milagre no âmbito dos assuntos humanos é, claro, existir aqui um taumaturgo e o fato de o próprio homem ser dotado, de um modo extremamente maravilhoso e misterioso, de fazer milagre. No uso idiomático habitual e comum, nós chamamos essa aptidão de agir. É característico do agir a capacidade de desencadear processos, cujo automatismo depois parece muito semelhante ao dos processos naturais; é-lhe característico, inclusive, o poder impor de um novo começo, começar algo de novo, tomar iniciativa ou, adotando-se o estilo de Kant, começar uma cadeia espontaneamente. O milagre da liberdade está contido nesse poder-começar que, por seu lado, está contido no fato de que cada homem é em si um novo começo, uma vez que, por meio do nascimento, veio ao mundo que existia antes dele e vai continuar existindo depois dele. Essa concepção de que a liberdade é idêntica ao começar ou, falando de novo à maneira de Kant, à espontaneidade, é-nos bastante estranha porque faz parte do caráter e das características de nossas tradições do pensamento, identificar liberdade com livre-arbítrio e entender como livre-arbítrio a liberdade de escolha entre as coisas dadas – um grosso modo, entre o bem e o mal, mas não a liberdade; simplesmente querer que isso ou aquilo seja assim ou de outra maneira. Essa tradição [...] foi extraordinariamente fortalecida pela convicção espalhada desde o final da Antiguidade de a liberdade não estar no agir e na coisa política, mas somente ser possível quando o homem renuncia ao agir, quando se retira do mundo para si mesmo e evita a política. [...] Se o sentido da política é a liberdade, isso significa que nesse espaço – e em nenhum outro – temos de fato o direito de esperar milagres. Não porque fôssemos crentes em milagres, mas sim porque os homens, enquanto puderem agir, estão em condições de fazer o improvável e o incalculável e, saibam eles ou não, estão sempre fazendo. A pergunta se a política ainda tem algum sentido nos remete, justamente quando ela termina na crença em milagres – e onde mais deveria terminar senão aí – de volta forçosamente à pergunta sobre o sentido da política. (ARENDT, 2011, p.41 a 45).

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Zoé para Bios



Hoje vivemos um período no qual a democracia poderia estar mais consolidada do que em qualquer outro momento da história. A globalização, ou internacionalização econômica, propiciou uma possibilidade de comunicação e entendimento que até então nunca tinha sido tão provável. Não existe mais uma ameaça política à existência humana na Terra como durante a Guerra Fria. Os conflitos étnicos, ainda existentes e numerosos, estão muito mais controlados do que estiveram no passado. Parece que a racionalidade ocidental se tornou uma espécie de linguagem universal na qual todos os atores puderam se entender.

Essa mesma lógica econômica é, entretanto, a causadora do estado de exceção que, ao tomar iniciativas em defesa da democracia, acaba fragilizando-a. Resultado: enfraquece a independência de poderes, sobretudo o poder legislativo porque passa a dar poder legal ao que não é lei; transforma o poder em iniciativa. Agir é o que a política, no mínimo, deveria proporcionar; ao se transformar em uma discussão do direito, cujas leis continuem válidas, ela não tem mais eficácia jurídica, esvaziando, assim, a possibilidade de mudança. Enfim, consegue tudo o que uma economia deseja: liberdade comercial e estabilidade.

A democracia, que inicialmente salvaguardava apenas os que delas se utilizavam – ou seja, os que agiam na pólis (política)–, passou a se referir a todos até mesmo àqueles que não se interessavam por ela, àqueles que não tinham poder pra agir, ou àqueles cujo poder lhes havia sido retirado. O terreno da vida (privado) e o terreno da política (público) passaram a não mais se diferenciar e, assim, a vida invadiu a política. Em face disso, é importante mostrar como os fundamentos das teorias tradicionais da democracia se tornaram meramente formais como as leis –quando existem – no estado exceção. Entretanto, sua aplicação é suspensa.

Quanto mais a democracia se ampliou, o que é um princípio democrático moderno de atingir a todos, mais se transformou em uma democracia para ninguém. A intenção da pluralidade acabou redundando na impessoalidade, pois serve à mesma lógica da racionalidade técnica que se importa tão somente com o produto, enquanto, no processo, só se atenta para a produtividade, para eficiência e para os valores relacionados ao fim e não ao meio. Desde que se chegue aos resultados esperados, não importa quem participa, nem se a ação vai melhorar ou piorar a vida do indivíduo, tanto faz ser ele uma máquina, um protocolo.

A política, desse modo, se desvinculou da ação como mudança de um cenário e passou a ser sua administração, como se a teoria funcionalista tivesse vencido e tudo fosse um corpo para o qual o único interesse é a manutenção da sua saúde. Assim, o que possivelmente atrapalha a saúde do corpo deve ser afastado, e sua ação cerceada. Deve ser expulso do bando para não contaminar o resto do corpo; deve morrer (não necessariamente de morte física) sem ser julgado ou sacrificado.

Esse caminho em que a democratização da democracia redundou num jogo perverso em que todos estão submetidos à dominação de uma lógica impessoal é o que tentaremos demonstrar neste trabalho, sobretudo a ideia de que a defesa da democracia dos perigos externos se transformou no pior algoz da democracia.

sábado, 1 de fevereiro de 2025

O fim da Política

    


As pessoas tendem a entender a política como a atividade dos políticos profissionais e participação como sufrágio eleitoral como eleição. Nós preferimos delegar a representantes o direito de escolher por nós os nossos próprios destinos e de nossas sociedades. Quase sempre nos limitando a julgar se votamos bem ou mal e quase nunca julgamos as discussões ou decisões em si.

    A ideia da política como ação, atuação dos homens presente em filósofos como Aristóteles e resgatada por filósofos como Karl Marx ou Hannah Arendt, embora sejam críticos do primeiro, parece uma ideia esquecida, presente apenas algumas vezes no domínio da teoria. A ideia de que são os homens que fazem a história que domina todas as ciências sociais atualmente e é amplamente aceita sem questionamento até mesmo pela maior parte das correntes filosóficas atuais, até porque seria um anacronismo negá-la, parece não ter nenhuma utilidade prática, pois os homens se negam a agir.

    Se pudermos dividir a política em a Política com “P” maiúsculo como Aristóteles chama aquela que se refere às ações na polis e política com “p” minúsculo aquela que se refere à forma de governo, a maneira de governar, ao formalismo em si, podemos dizer que desde a modernidade, ou talvez a idade média, a Política com “P” maiúsculo perde a importância e sobra somente a política com “p” minúsculo, as ciências políticas, um enorme rebuscamento tanto formal quanto jurídico para dificultar o acesso e a participação das pessoas na política.

    A própria ideia da política representativa e seus mecanismos parecem determinados a fazer com que o individuo se afaste da política. Segundo a filósofa contemporânea Hannah Arendt, o começo do desinteresse por política iniciou na Idade Média ou no Feudalismo quando o clero, ou melhor, a própria Igreja se “sacrificou pelos irmãos” ao assumir a política para que cada um cuidasse de sua própria subsistência, ou seja, da economia. Esse conceito atravessou a modernidade e chegou a nós contemporâneos, mas não parece explicar a apatia política existente. Até porque as próprias questões da sobrevivência só podem ser resolvidas pela política ou garantidas por esta.

    Quando a política deixa de ser atividade dos cidadãos, por poucos que sejam, para ser uma concessão de poder, o objetivo da política deixa de ser resolver os problemas da cidade ou do mundo ou solucionar as demandas de seus cidadãos para se tornar tão somente uma busca de poder. O que ocasiona um grave problema, pois a resolução dos problemas se torna tão somente, quando acontece, como mecanismo para ascender ao poder ou se manter lá, ou ainda como mecanismo para anestesiar as massas.

    Obviamente os problemas do ocaso da Política não resolveriam simplesmente pela revalorização da política, pois a revalorização da política simplesmente anestesiaria a população dos males da falta da Política, mas a retomada das ações dos homens poderia ser justamente um passo fundamental para essa mudança. É uma suposição razoável, mas ainda resta o problema da apatia política, pois sem a resolução desta não resolvemos nem o problema da política, nem o da Política.

 

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

A Política se tornou economia política?

     


        Tanto Aristóteles quanto Arendt veem a política como o domínio das ações em que a pluralidade tenta chegar aos objetivos em comum, resolver problemas em comum, unir suas forças para realizar desejos consensuais. Por consenso, não se fala dos desejos que coincidem, mas dos objetivos que abarcam em sua proximidade o maior número de quereres sem necessariamente coincidir com algum. Seria o que poderíamos chamar de campo de proximidade. Nesse caso, o que podemos considerar como verdadeiro é o consenso. Ele orienta tudo. Ele é que é intensamente buscado. E não pode ser facilmente questionado. Não pode sem no mínimo causar grande desconforto.

 

Sabemos que toda cidade é uma espécie de associação, e que toda associação se forma tendo por alvo algum bem; porque o homem só trabalha pelo que ele tem em conta de um bem. Todas as sociedades, pois, propõem qualquer bem – sobretudo a mais importante delas, pois que visa a um bem maior, envolvendo todas as demais: a cidade ou sociedade política. [ARISTÓTELES, 1252a1-7]

 

    Portanto, Aristóteles define a política, que é o que acontece na polis (cidade) como uma associação que visa um bem maior, isto é a existência da própria cidade, unidade administrativa, local governado por um governo. Desse modo pessoas diferentes, de diferentes níveis intelectuais, técnicos, morais, sentimentais ou financeiros firmam sequentes acordos, talvez num nível moderno, minicontratos, para possibilitar a convivência num mesmo espaço.

 

Sem dúvida, a cidade precisa da propriedade, mas a propriedade não faz parte da cidade. A propriedade contém, mesmo, muitos seres animados; mas a sociedade é uma reunião de seres semelhantes, que têm por fim a vida mais perfeita possível. [ARISTÓTELES, 1328a33-35]

 

    Deste modo, Aristóteles, nos mostra como os diferentes tem isonomia (todos tem direito de falar) para discutir e que a economia (as coisas da casa) não tem influência nessa decisão assim como as outras diferenças. Aliás, o particular não participa do público. Do modo em que toda vez que se troca o interesse geral pelo interesse particular seja de um grupo ou de um indivíduo para Aristóteles está estabelecida uma tirania. Todos os outros regimes desde a monocracia, o governo de um; passando pela aristocracia, governo dos melhores; até a democracia, o governo de todos, governam para a coletividade.

    Hannah Arendt acentua o tema da pluralidade presente em Aristóteles e onipresente na leitura da filosofa alemã sobre o filosofo grego. Para Arendt “a política se baseia na pluralidade humana”. Esse aspecto de que somente pela política o homem agir para superar as diferenças em vez de omiti-la (alguns poderão dizer negá-la, inclusive) como faz a economia encampa toda a filosofia política da autora. Desse modo, para Arendt,

 

Política diz respeito à coexistência e associação de homens diferentes. Os homens se organizam politicamente segundo certos atributos comuns essenciais existentes em, ou abstraídos de, um absoluto caos de diferenças. [...] Desde o começo, a política organiza os absolutamente diferentes, tendo em vista a sua relativa igualdade e em contraposição a suas relativas diferenças. [ARENDT, 2010, p. 145 e 147].

 

    Em total contraponto a essa ideia heroica grega presente em Aristóteles e resgatada por Montaigne e Arendt de que a política é fundada pela coragem de agir[1], encontraremos as descrições de Foucault e Agamben. Guiarmo-nos pelas observações de Foucault, com pontuais interações com Agamben. Desse modo logo no início de Nascimento da Biopolítica, descobrimos que na atualidade a política deve se guiar por uma verdade externa a ela:

Não, é claro, que os preços sejam, em sentido estrito, verdadeiros, que haja preços verdadeiros e preços falsos, não é isso. Mas o que se descobre nesse momento, ao mesmo tempo na prática governamental, é que os preços, na medida em que são conformes aos mecanismos naturais do mercado, vão construir um padrão de verdade que vai possibilitar discernir nas práticas governamentais as que são corretas e as que são erradas. Em outras palavras, o mecanismo natural do mercado e a formação de um preço natural é que vão permitir – quando se vê, a partir deles, o que o governo faz, as medidas que ele toma, as regras que impõe – falsificar ou verificar a prática governamental. Na medida em que, através da troca, o mercado permite ligar a produção, a necessidade, a oferta, a demanda, o valor, o preço, etc., ele constitui nesse sentido um lugar de veridição, quero dizer, um lugar de verificabilidade/falsificabilidade para a pratica governamental. Por conseguinte, o mercado é que vai fazer que um bom governo já não seja simplesmente um governo que funciona com base na justiça. O mercado é que vai fazer que o bom governo já não seja simplesmente um governo justo. O mercado é que vai fazer que o governo, agora, para poder ser um bom governo, funcione com base na verdade. [FOUCAULT, 2008, p. 44 e 45]

 

    Ou seja, Pasteurizam-se os governos. Tanto faz um partido liberal, conservador, verde, socialdemocrata ou socialista no poder, pois o índice de veracidade de suas políticas sempre estará em sua adequação aos desejos do mercado. Chegou-se à utopia ordoliberal de despolitizar a política. Deste modo, o direito que no liberalismo era uma limitação à ação do governo, uma proteção do mercado (de ser oprimido pelos governos) passa a ser justamente a justificação do poder da economia sobre os governos:

 

A economia política foi importante, inclusive em sua formulação teórica, na medida em que (somente na medida, mas é uma medida evidentemente considerável) indicou onde o governo devia ir buscar o princípio de verdade da sua própria prática governamental. [...] Seu papel de veridição é que vai, doravante, e de forma simplesmente secundária, comandar, ditar, prescrever os mecanismos jurisdicionais ou a ausência de mecanismos jurisdicionais sobre os quais deverá se articular. [FOUCAULT, 2008, p. 45]

 

     O liberalismo não te promete a liberdade, mas criar condições para você ser livre. Se você não for livre a incompetência é sua (ou da sua mãe que não lhe propiciou as condições propícias para você ter um alto capital humano). Falando em liberdade, medo e segurança dentro do liberalismo estão inseridos num mecanismo análogo. Vejamos:

 

O liberalismo se insere num mecanismo em que terá, a cada instante, de arbitrar a liberdade e a segurança dos indivíduos em torno da noção de perigo. No fundo, se de um lado (é o que eu lhes dizia da última vez) o liberalismo é uma arte de governar que manipula fundamentalmente os interesses, ele não pode – e é esse o reverso da medalha –, ele não pode manipular os interesses sem ser ao mesmo tempo gestor dos perigos e dos mecanismos de segurança/liberdade, do jogo segurança/liberdade que deve garantir que os indivíduos ou a coletividade fiquem o menos possível expostos aos perigos. [FOUCAULT, 2008, p. 90]

 

    O Estado, no ordoliberalismo, se torna uma máquina eficiente, se desumaniza que é que justamente o que mesmo liberais como Berenson temiam.  Os liberais concebiam o Estado como um opositor ao mercado. Os ordoliberais transformam os governos em servos do mercado assim como a filosofia na idade média era serva da teologia.



[1] Ação, para Arendt e Aristóteles é algo que modifica o mundo, portanto que não é individual, isolada, embora possa ter origem individual desde que seja encampada pela coletividade. É algo qualificado, mas não necessariamente difícil, pois qualquer nascimento é uma ação, pois joga um infinito de possibilidades ao mundo no que denominamos de vida.

O sabiá sabia assobiar

  Assim cantou o sabiá Como sempre Sabia assobiar Com a melodia assombrar E o ritmo encadear O sol sobe e a lua baixa As estrela...