Eu sempre achei que Kafka mostrava que o mundo era completamente burocratizado, que sua metanoia era um totalitarismo da burocracia que preenchia todos os espaços possíveis chegando a colonizar inclusive as reflexões e as relações humanas. Uma descrição que sempre me encantou, no sentido tanto de agradar como de levar da física à metafísica. Numa comparação ruim (toda comparação é ruim porque ao simplificar o real, tolhe grande parte de sua complexidade) e pensando em Aristóteles, um filósofo da antiguidade e portanto um metafísico, seria como se passássemos da política e da ética ou mesmo da sua arte (todas ligadas as limitações da realidade) para a metafísica que pelo menos acredita capturar e discutir a essência.
Essa burocratização do universo acaba racionalizando o mesmo. Classificando, ordenando, organizando tudo de modo a que se torne o quanto possível racional, entendível. Deleuze e Guattari tem um modo diferente de ver a literatura de Kafka, a entendem como a descrição de uma maquina que abarca tudo, preenche absolutamente. O que eu vejo como burocracia, rotinas, leis, eles veem como rotina, processo da maquina:
"Uma máquina de Kafka é, portanto, construída por conteúdos e expressões formalizados em graus diversos como por matérias não formuladas que nela entram, dela saem e passam por todos os estados. Entrar, sair da máquina, estar na máquina, percorrê-la, aproximar-se dela, ainda faz parte da máquina: são os estados do desejo, independentemente de toda interpretação. A linha de fuga faz parte da máquina. No interior ou no exterior, o animal faz parte da máquina-toca. O problema: de modo algum ser livre, mas encontrar uma saída, ou bem uma entrada, ou bem um lado, um corredor, uma adjacência, etc. Talvez seja preciso levar em conta vários fatores: a unidade puramente aparente da máquina, a maneira pela qual os homens são eles mesmos peças da máquina, a posição do desejo (homem ou animal) relativamente a ela. Na Colônia penal, a máquina parece ter uma forte unidade, e o homem se introduz completamente nela - talvez isto que acarrete a explosão final, o esfacelamento da máquina. Em América, ao contrário, K permanece exterior a toda uma série de máquinas, passando de uma à outra, expulso desde que tenta entrar: a máquina-barco, a máquina capitalista do tio, a máquina-hotel... No Processo, trata-se de novo de uma máquina determinada como máquina única de justiça; mas sua unidade é tão nebulosa, máquina de influenciar, máquina de contaminação, que não há mais diferença entre dentro e fora. No Castelo, a aparente unidade cede lugar por seu turno a uma segmentação de fundo ("O castelo era, no fim das contas, apenas uma pequena vila miserável, um amontoado de choupanas vilarinhas... Não fui feito nem para os camponeses nem, sem dúvida, para o castelo. - Não há diferença entre os camponeses e o castelo, diz o professor"); mas, desta vez, a indiferença do dentro e do fora não impede a descoberta de uma outra dimensão, uma espécie de adjacência marcada de pausas, paradas, onde se montam as peças, engrenagens e segmentos: "A estrada fazia um ângulo que se teria dito intencional, e, apesar de não se distanciar mais do castelo, ela cessava de se aproximar dele". O desejo passa evidentemente por todas essas posições e esses estados, ou, antes, segue essas linhas: o desejo não é a forma, mas processo, procedimento." [DELEUZE, 2024, p.17 e 18]
A compreensão de Deleuze e Guattari parece dar mais plasticidade, aproximar-se mais de um conceito por permitir maior raciocínio à posteriori. No entanto, é mais totalitária no sentido em que se fragmentando em máquinas distintas muito menos resíduos escapam. Não podemos pensar como em Agamben (2004) que a perda da subjetividade, no sentido de não ser mais um sujeito e com isso não ter mais direitos ou não ser mais o retira de alguma máquina. Simplifiquei absurdamente o Agamben, até o distorci de algum modo, mas só para termos a compreensão do totalitarismo das maquinas multiplicadas. Nem o marginal (que está a margem das regras), nem o marginalizado (que foi colocado a margem da Lei) estão fora de alguma máquina. Um pouco mais a fundo, nem para Agamben. Mas tomei essa superficialidade para fazer diferença.
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua I, Belo Horizonte: UFMG: Humanitas, 2004.
DELEUZE, Gilles. Kafka: por uma literatura menor, Belo Horizonte: Autêntica. 2024.