Nada mais perigoso hoje em dia que pretender se fazer entender.
Os comunicadores infelizmente não sabem disso. Acreditam numa teoria tola
baseada na racionalidade. Jornalistas acreditam que é possível repassar informações
ou opiniões sem que estas sejam submersas no ambiente próprio ou de todos que
intervieram no texto, seja como sujeitos, seja como objetos. Publicitários
acreditam que podem influenciar os leitores a terem os comportamentos
esperados. Mas esquecem o que Nietzsche disse aos positivistas: "Contra o
positivismo que permanece parado junto ao fenômeno afirmando: ‘Só há fatos’, eu
diria: não, justamente fatos não existem, apenas interpretações. Não estamos em
condições de fixar nenhum fato ‘em si’: talvez seja mesmo um disparate querer
algo assim. Vós direis então: ‘Tudo é subjetivo.’ Mas isto também já é
interpretação: o ‘sujeito’ não é nada dado, mas acrescentado através da
imaginação, inserido aí por detrás. – Ainda é necessário afinal colocar o intérprete
por detrás da interpretação? Um tal ato já é poetização, hipótese. Uma vez que
a palavra ‘conhecimento’ possui antes de mais nada um sentido, o mundo é
passível de ser conhecido: mas ele pode receber outras significações. Ele não
possui nenhum sentido por detrás de si mesmo, mas inumeráveis sentidos".
Nietzsche está certo? Não sei. Sua própria filosofia o impediria
de dizer isso. Na verdade, me impediria de ter a certeza de estar sendo fiel ao
que ele disse. Também não é o meu interesse discutir se Nietzsche estava certo
ou não. Se minha leitura é a correta ou não. Pouco importa. Minha convicção,
que não posso garantir que é verdadeira é de que a obra é a leitura feita pelo
leitor. Não o que escreveu o escritor ou a mancha gráfica no livro. Já alerto:
bastante discutível como tudo que encontraremos aqui. E que bom que é
discutível! Pois é justamente o que pretendemos fazer aqui discutir, dar
impulso a discussões.
Ainda não cheguei ao que desejo propor com o texto. Bom... mas
já é um bom pressuposto. Vamos ao problema concreto que lhes proponho com um
exemplo inicial: Imaginem que um grande entendido em algum filosofo ou literato
escreva um texto onde tente simplificar pra tornar compreensível qualquer
teoria e o faça com maestria, enfatizo com grande sucesso. Consegue, tipo,
explicar o primeiro capítulo de fenomenologia do espírito de Hegel em poucas
páginas, talvez até mais páginas que tem o supracitado capítulo. Há teses
volumosas sobre esse primeiro capítulo ou mesmo sobre o primeiro ou segundo
paragrafo do mesmo.
Imaginem, não é preciso muito esforço, pois todos fazemos isso,
que alguém leia o texto explicativo do tal gênio que conseguiu explicar
magicamente o texto de Hegel e preencha todos os espaços vazios ressignificá-lo
na mente ou torná-lo plenamente compreensível. O texto não será mais do autor
ou do livro, mas do leitor que baseado em suas experiências e compreensões
imprimiu novos significados ao texto. O leitor pode ter entendido plenamente a
síntese feita pelo nosso genial escriba. Pode não ter deturpado nada das teses
propostas pelo escritor ou pelo texto, mas as tirou de um ambiente e o colocou
no meio dele no qual flutuam suas experiências e convicções.
Por isto que eu digo será de imensa coragem, quiçá temeridade
escrever aqui. Escrever é colocar a cara à tapa não pelo que escreve. Todos nós
estamos dispostos a assumir nossas convicções. Mas pelo que os outros
entenderão de nossos textos. Numa época em que a hermenêutica é tão maltratada
pela falta de leitura. Em que leitores de interpretes julgam ter certeza sobre
obras. A certeza que sequer seus autores tiveram. Uma época em que
simplificadores canhestros ou funestos deturpam teorias que por vezes desmentem
a própria leitura ou pensamento do autor ou sua escola ou época. Uma época em
que as florestas não são preenchidas sequer por unicórnios, que apesar de
fantasiosos viveriam bem em solo, mas por cachalotes ou orcas simplesmente
porque estas existem.
Repito, nesta época de péssimos leitores. brindo a coragem ou
destemor de quem redige. Talvez seja necessário pensarmos que a educação do
futuro se funde na exigência moral e fundamental da leitura. Prioritariamente
dos autores e depois dos bons interpretes. Não estou me referindo a filosofia,
mas a literatura como o todo. Pois não há base maior para o pensamento que toda
a literatura. Só a leitura de boas obras pode nos conduzir a uma boa de todo o
resto. Ler criticamente o mundo talvez seja a única tarefa que nos sobra. Para
ser mais claro, não ser conduzido, seduzido pela facilidade das leituras
alheias. É preciso lutar para ter a nossa, mesmo que possa se considerar
impossível. O sujeito, mesmo que tenha se tornado para muitos de nós um
conceito morto, deve ser o nosso horizonte: a autonomia.