Muitas vezes
discutimos sobre nossa percepção de mundo e contrapomos nossas pequenas
diferenças de visão sobre os assuntos mais importantes (e, portanto,
histórico-socialmente vitais). Tomamos algumas vezes o mesmo caminho para
chegar a conclusões diferentes. Na maioria das ocasiões, caminhos diversos para
chegar a conclusões muito próximas, quando não rigorosamente a mesma.
Um assunto
quase nunca discutido diretamente, mas que permeou necessariamente nossas
conversas, até porque já conversamos sobre Platão, Spinoza, Karl Marx, Imanuel
Kant, Hegel, Antônio Gramsci, Hannah Arendt, Adorno, Habermas, foi a questão de
como, por quais meios e sob quais limitações o homem faz a história. A
ressurreição da filosofia grega, Cornélio Castoriadis, no livro A instituição
imaginária da sociedade, nos fornece bons dados sobre uma perspectiva marxista
para essa discussão. Segundo ele, “é certo que a consciência humana, como
agente transformador e criador na história, é essencialmente uma consciência
prática, uma razão operante-ativa, muito mais do que uma reflexão teórica, à
qual a prática seria anexada como o corolário de um raciocínio e da qual ela
somente materializaria as consequências. Mas essa prática não é exclusivamente
uma modificação do mundo material, ela é também, ainda mais, modificação das
condutas dos homens e de suas relações. O Sermão da montanha, o Manifesto
comunista pertencem à prática histórica, tanto quanto um invento técnico, e
pesam, quanto a seus reais efeitos sobre a história, com um peso infinitamente
maior” (CASTORIADIS, 1982, p.33).
Claro para
aceitar todo esse poderio do homem sobre a história, necessariamente somos
obrigados a aceitar uma dialética histórica, concepção com que Hegel
revolucionou a filosofia ao introduzir a contingência histórica ao subjetivismo
de Kant. Estava criado o sujeito histórico. Obviamente a dialética como motor
da história é outro fato extremamente relevante. Castoriadis também a explica,
destacando a importância de Hegel em Marx: “Existe uma dialética da história
que faz com que os pontos de vista sucessivos das diversas épocas, classes,
sociedades, mantenham entre si uma relação definida (mesmo se muito complexa).
Eles obedecem a uma ordem, formam um sistema que desdobra no tempo, de maneira
que o que vem depois ultrapassa (suprime conservando) o que estava antes. O
presente compreende o passado (como momento “superado”) e por isso pode
compreendê-lo melhor do que esse passado compreendia a si mesmo. Essa dialética
é, em sua essência, a dialética hegeliana; o que era para Hegel o movimento do
logos, torna-se em Marx o desenvolvimento das forças produtivas e a sucessão de
classes sociais que marca suas etapas não tem, em relação a isto, nenhuma
importância. Num e noutro, Kant “ultrapassa” Platão e a sociedade burguesa é
“superior” à sociedade antiga. Mas isso assume importância em relação a outra
aspecto – e é este o segundo termo do movimento. Precisamente porque esta
dialética é a dialética da aparição sucessiva de diversas classes na historia,
ela não é mais, necessariamente, infinita de direito; ora, a análise histórica
mostra que ela pode e deve se completar-se com o aparecimento da “última
classe”, o proletariado” (CASTORIADIS, 1982, p.48 e 49).
Necessariamente
debatemos também a liberdade, pois com exceção de Baruch Spinoza, todos os
outros concebem a história como terreno da liberdade. Para isto, após décadas
em que foram muito melhor lidas as críticas de Marx a Hegel, Castoriadis mostra
como a concepção de liberdade inunda o pensamento de ambos: “O hegelianismo
como podemos em verdade ver, não está ultrapassado. Tudo o que é e tudo o que
será real, é e será racional. Que Hegel pare esta realidade e esta
racionalidade no momento em que aparece sua própria filosofia, enquanto que
Marx as prolonga indefinidamente até e inclusive a humanidade comunista, não
enfraquece o que dizemos, antes o reforça. O império da razão que, no primeiro
caso, englobava (por um postulado especulativo necessário) o que já está dado,
estende-se agora também a tudo o que poderá ser dado na história. O fato de que
o que podemos dizer desde agora sobre o que será torna-se cada vez mais vago na
medida em que nos afastamos do presente, provém de limitações contingentes de nosso
conhecimento e sobretudo de que se trata de fazer o que há por fazer hoje e não
de “dar receitas para as cozinhas socialistas do futuro”. Mas esse futuro está
desde já fixado em seu princípio: ele será liberdade, como o passado e o
presente foram e são necessidade” (CASTORIADIS, 1982, p.56)
(CASTORIADIS,
Cornélius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
1982)