Nascera
desconfiado. Era um cético à procura de verdades evidentes. Nunca as
encontrara. Não acreditava em verdades, nas mentiras sim. Estas eram muito mais
sinceras. Eram versões imperfeitas e pessoais dos fatos conhecidos. As verdades
não, todas muito soberbas, evocavam para si uma credibilidade que ninguém tem.
Pensava: se
eu não acredito nem em mim mesmo, porque vou acreditar em fatos externos a mim,
que independem de meu domínio e os quais nunca poderei comprovar. Quando alguém
vinha lhe falar, perguntava se o que vinha lhe dizer era uma mentira. Se o
fosse era todo ouvidos, mas se esta tinha pretensões de veracidade logo
despachava o sujeito para o terreiro do lado onde percutiam batidas compassadas
de um coração ingênuo.
Passava o dia
em meio a seus livros, à espera do próximo incauto que viesse tentar lhe
comunicar algum fato indiscutível. Pensava: Rosseau estava certíssimo em sua
notória embromação de que o homem nasce bom e a humanidade, com suas supostas
verdades, é que o corrompe e o torna tão ignóbil, mesquinho e mau. Adorava
descrençar os incautos visitantes que invariavelmente viam o mundo como uma
seqüência de oportunidades e não como uma seqüência de lutas e desafios
impossíveis em que a única alegria possível era a da consciência tranqüila de
lutar contra eles.
Sabia-se
taxativamente louco, como o era o alienista de um notável romance de Machado de
Assis. Num mundo de loucos, quem tem a sobriedade exacerbada não tem outro
destino que não seja a descrença e o desprezo. Bem o sabia, mas infelizmente o
professor de matemática do jovem Albert Einstein e o resto dos bons homens não.
Mas ao contrário de todos os outros que sabem aquilo que mais ninguém sabe, não
tinha nenhum orgulho disso. Pelo contrário havia certo pesar nessa situação,
pois a única coisa que não desejava era possuir uma verdade.
As verdades,
danosas e imprestáveis, não deveriam ter dono, ninguém pra suportar o peso de
provocar um mal tão irreversível à humanidade. A verdade deveria ser pública
como os homens públicos e mulheres públicas, porque como eles a verdade não tem
donos e está sempre a serviço de alguém. Dizia ele: a verdade faz até tremular
bandeiras onde não tem vento. Faz do menos culpado, culpado solitário e do mais
culpado, inocente. Aliás, se alguém se jurava inocente ele logo sabia que
aquele era o mais culpado. Poderia haver outros culpados, mas o principal
culpado era aquele, provavelmente, porque toda exceção tem sua regra também. Bom...
no mínimo este era culpado de se declarar inexistente, pois inocente ninguém é.
O seu
vizinho, um notório cientista, três vezes indicado ao Nobel, acreditava em tudo
que pudessem lhe provar cientificamente. Era um inocente desvairado pelas
ilusões da ciência. Como se a ciência fosse um campo neutro, isento das
desvirtuações do mundo. Como se o homem pudesse conceber verdades. Aquela
ingenuidade daquele cientista o irritava, pois ele sabia que este era um bom
homem com ótimos princípios e intenções, mas se encontrava naquele chafurdar na
lama, fazendo sua parte na deturpação/perversão do mundo.
Este se
encontrava sempre em seu laboratório que quase dividia parede com a biblioteca
de nosso personagem. E passava dias e noites por lá quando decidia hibernar em
busca de uma descoberta. Algumas vezes viajava e ficava meses longe de seu
laboratório. Era um tipo muito estranho: ou ficava meses ou anos sem sair ou
ficava semanas ou meses sem voltar ao seu local preferido. Nosso personagem
preferia a sua temperança rotineira de passar horas na biblioteca, mas não
contíguas e quase que estabelecer uma rotina pra não cair na inconsistência de
seu vizinho. Mas também, quem acredita em verdades é capaz de acreditar ou
fazer qualquer coisa mesmo, pensava ele em voz altíssima.
Se não fossem
visinhos aqueles primos segundos nunca saberiam um da existência do outro e não
carregariam para si o peso da inconsciência do outro. Ainda que nunca tenham
discutido ou se cumprimentado, apesar do desprezo que ambos davam um ao outro,
ambos se tornaram mutuamente primordiais, modelos do que é o mais pérfido.