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domingo, 26 de janeiro de 2025

O Cético e o Racionalista - finalmente um reconto

 

Nascera desconfiado. Era um cético à procura de verdades evidentes. Nunca as encontrara. Não acreditava em verdades, nas mentiras sim. Estas eram muito mais sinceras. Eram versões imperfeitas e pessoais dos fatos conhecidos. As verdades não, todas muito soberbas, evocavam para si uma credibilidade que ninguém tem.

Pensava: se eu não acredito nem em mim mesmo, porque vou acreditar em fatos externos a mim, que independem de meu domínio e os quais nunca poderei comprovar. Quando alguém vinha lhe falar, perguntava se o que vinha lhe dizer era uma mentira. Se o fosse era todo ouvidos, mas se esta tinha pretensões de veracidade logo despachava o sujeito para o terreiro do lado onde percutiam batidas compassadas de um coração ingênuo.

Passava o dia em meio a seus livros, à espera do próximo incauto que viesse tentar lhe comunicar algum fato indiscutível. Pensava: Rosseau estava certíssimo em sua notória embromação de que o homem nasce bom e a humanidade, com suas supostas verdades, é que o corrompe e o torna tão ignóbil, mesquinho e mau. Adorava descrençar os incautos visitantes que invariavelmente viam o mundo como uma seqüência de oportunidades e não como uma seqüência de lutas e desafios impossíveis em que a única alegria possível era a da consciência tranqüila de lutar contra eles.

Sabia-se taxativamente louco, como o era o alienista de um notável romance de Machado de Assis. Num mundo de loucos, quem tem a sobriedade exacerbada não tem outro destino que não seja a descrença e o desprezo. Bem o sabia, mas infelizmente o professor de matemática do jovem Albert Einstein e o resto dos bons homens não. Mas ao contrário de todos os outros que sabem aquilo que mais ninguém sabe, não tinha nenhum orgulho disso. Pelo contrário havia certo pesar nessa situação, pois a única coisa que não desejava era possuir uma verdade.

As verdades, danosas e imprestáveis, não deveriam ter dono, ninguém pra suportar o peso de provocar um mal tão irreversível à humanidade. A verdade deveria ser pública como os homens públicos e mulheres públicas, porque como eles a verdade não tem donos e está sempre a serviço de alguém. Dizia ele: a verdade faz até tremular bandeiras onde não tem vento. Faz do menos culpado, culpado solitário e do mais culpado, inocente. Aliás, se alguém se jurava inocente ele logo sabia que aquele era o mais culpado. Poderia haver outros culpados, mas o principal culpado era aquele, provavelmente, porque toda exceção tem sua regra também. Bom... no mínimo este era culpado de se declarar inexistente, pois inocente ninguém é.

O seu vizinho, um notório cientista, três vezes indicado ao Nobel, acreditava em tudo que pudessem lhe provar cientificamente. Era um inocente desvairado pelas ilusões da ciência. Como se a ciência fosse um campo neutro, isento das desvirtuações do mundo. Como se o homem pudesse conceber verdades. Aquela ingenuidade daquele cientista o irritava, pois ele sabia que este era um bom homem com ótimos princípios e intenções, mas se encontrava naquele chafurdar na lama, fazendo sua parte na deturpação/perversão do mundo.

Este se encontrava sempre em seu laboratório que quase dividia parede com a biblioteca de nosso personagem. E passava dias e noites por lá quando decidia hibernar em busca de uma descoberta. Algumas vezes viajava e ficava meses longe de seu laboratório. Era um tipo muito estranho: ou ficava meses ou anos sem sair ou ficava semanas ou meses sem voltar ao seu local preferido. Nosso personagem preferia a sua temperança rotineira de passar horas na biblioteca, mas não contíguas e quase que estabelecer uma rotina pra não cair na inconsistência de seu vizinho. Mas também, quem acredita em verdades é capaz de acreditar ou fazer qualquer coisa mesmo, pensava ele em voz altíssima.

Se não fossem visinhos aqueles primos segundos nunca saberiam um da existência do outro e não carregariam para si o peso da inconsciência do outro. Ainda que nunca tenham discutido ou se cumprimentado, apesar do desprezo que ambos davam um ao outro, ambos se tornaram mutuamente primordiais, modelos do que é o mais pérfido.

 

O sabiá sabia assobiar

  Assim cantou o sabiá Como sempre Sabia assobiar Com a melodia assombrar E o ritmo encadear O sol sobe e a lua baixa As estrela...