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sábado, 7 de junho de 2025

Da Política à Economia Política: da democracia à poliarquia

 




A Política na Antiguidade, ou no discurso presente ainda em boa parte da Idade Média, visava ou pregava a república, onde o bem era visado por todos e este se sobrepunha a qualquer interesse individual ou de grupos. Até porque se tinha a noção evidente de que o cidadão só existe por causa da cidade, assim como a política dependia fundamentalmente da polis. Assim, deste modo, as primeiras frases de A Política são:

 

§ 1. Sabemos que toda cidade é uma espécie de associação, e que toda associação se forma tendo por alvo algum bem; porque o homem só trabalha pelo que ele tem em conta de um bem. Todas as comunidades, pois, se propõem qualquer bem – sobretudo a mais importante delas, pois visa a um bem maior, envolvendo todas as demais: a cidade ou sociedade política. (ARISTÒTELES, 2009, p.13).

 

Tanto na Idade Antiga, quanto na Idade Média (quem preferir pode substituir os termos por Escravismo e Feudalismo) ainda imperam modelos políticos centralizadores: Monarquia, Aristocracia, Democracia... todos modelos que por mais participantes que tivessem  sempre desejavam no uno, na única ideia aceita esta ora pelo medo, pelo respeito ou pelo consenso. Os homens em seus múltiplos desejos, múltiplas necessidades tinham que se submeter a um único agir porque quem agia era a polis, melhor dizendo, o Estado e não o individuo dentro deste.

Para se mudar um modo de agir mudava-se o Estado. Esse é praticamente o pano de fundo de muitas obras antes de Nicolau Maquiavel, sobretudo em A política, de Aristóteles: cada povo tem o estado que merece, cada cultura tem um tipo diferente de governo adequado, resumindo até de forma bastante perigosa, mas tornando bastante clara a importância vital do Estado nesses momentos históricos.

Mas com o surgimento do capitalismo no fim da Idade Média e sua pungente consolidação na Idade Moderna, aos poucos a política vai perdendo a importância para a economia política. Basta analisarmos lexicamente a troca do termo comunidade, que ressalta o que é comum, pelo termo sociedade, termo econômico e contratual, durante a idade média e sua consolidação na idade moderna instaurando uma grande hegemonia hoje.

Quanto mais os interesses divergentes e ao mesmo tempo em que consolidavam a própria hegemonia em sua diversidade, mais o Estado perde a sua importância como agente, como promotor da política; mais se torna mais evidente a vida fora do Estado: a sociedade civil. Mais se torna evidente o homo laborans de Hannah Arendt que necessita trabalhar em uma tarefa sem sentido para ele pois não domina o que faz, ao contrário é dominado pelo mesmo e o faz unicamente para sobreviver (isso num sentido duro) e, que portanto não tem tempo para agir, não tem tempo para a política.

Mas essa mesma sociedade (é bom lembrar a carga do termo) cria a sociedade civil onde as pessoas se associam em nome de interesses comuns, mas não mais comuns a todos nem à polis ou Estado como um todo. Nasce assim uma “democracia pluralista (poliárquica e policêntrica) , em contraste com o ideal da democracia monística ou monocrática” (BOBBIO, 2000, p.85). Desse modo a democracia tem seu significado substituído, agora ela precisa ser plural, abranger e respeitar todos os pontos de vista, não precisa mais construir necessariamente o consenso.

Assim a política, assim como o capitalismo vive da pluralidade, do dissenso. Não tem outra razão de existir que não a de um grupo conseguir o poder para impor seus desejos aos outros e da esperteza para se manter no poder. É claramente uma economia política com a consolidação das ideias de competição, de funcionalidade, de eficiência.

Aliás, em nosso tempo, a imposição de um consenso desagrada a todos. Prefere-se um impasse permanente que nos impossibilite agir do que um consenso forçado por qualquer necessidade. Tem-se a impressão de ‘engolir a seco’. Assim em nosso tempo o não-político tem muito mais importância em nossas vidas.  A política como o espaço da ação por excelência, essa é uma definição clássica de política, acaba acontecendo muito mais fora do Estado, na sociedade civil, onde está o não-político. As fronteiras entre o político e o não-político à medida que a sociedade civil cresce de importância vão se tornando mais tênues até que a política invada de vez através da biopolítica.

Assim a todo o momento agimos politicamente, mas não fazendo política. Em todo instante somos governados integralmente, inclusive nossos corpos pela política. Desse modo a morte da política na modernidade ou contemporaneidade constitui-se no império totalitarista da política que desse modo não deixa mais espaço para nada ou parafraseando Agamben: a política se tornou teologia e a teologia se tornou política.

 

 

Referências:

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I; tradução de Henrique Burigo. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

AGAMBEN, Giorgio. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo; tradução Selvino G. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2011.

ARISTÓTELES. A política; tradução Nestor Silveira Chaves. 2ª ed. Bauru, SP: EDIPRO, 2009.

BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos; organizado por Michelangelo Bonavero; tradução Daniela Becária Versiani. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

ZINGANO, Marco. Aristóteles: tratado da virtude moral; Ethica Nicomachea I 13-III 8. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.

 

 

quinta-feira, 5 de junho de 2025

O DESLOCAMENTO DA POLÍTICA DO OBJETIVO DA POLÍTICA DO ZOÉ



 Pretendemos muito antes de propor qualquer solução possível, expor os efeitos captados por Giorgio Agamben através de sua leitura de mundo, do seu principal influenciador Michel Foucault e de Hannah Arendt ocasionados pela mudança do centro da política do zoé para o bíos.

Os gregos não possuíam um termo único para exprimir o que nós queremos dizer com a palavra vida. Serviam-se de dois termos, semântica e morfologicamente distintos, ainda que reportáveis a um étimo comum: zoé, que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais, homens ou deuses) e bíos, que indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo. (AGAMBEN, 2010, p.9)

 

Com essa passagem um maior evidenciamento da biopolítica e do controle sobre a ação humana, que classicamente é o que definia a política. O interesse da política na Idade Antiga e boa parte de Idade Média se restringia aos que dela participavam e por ela se interessavam. Portanto tinha enorme importância se interessar e participar das decisões políticas, pois não se legislava pelo interesse geral, ou seja, dos que não participavam dela.

Tal é, pois, o fim principal que eles se propõem comum ou individualmente. Algumas vezes, também, é unicamente para viver juntos que eles se reúnem e estreitam os laços da sociedade política. Porque talvez haja um pouco de felicidade no próprio fato de viver assim , sempre que a vida (bíos) não seja sobrecarregada de males demasiado difíceis de suportar.  O que há de certo é que a maioria dos homens suporta muitos males devido ao seu agarramento à vida (zoé), como se ela encerrasse em si própria uma doçura e um encanto naturais. (ARISTÓTELES, A Política 1278b, 23-31)

 

Portanto em nenhuma hipótese poder-se-ia delegar poder ou esperar que suas demandas fossem atendidas sem agir. Para Aristóteles, os terrenos da ação por excelência eram a política e a ética.

E quando, em um trecho que deveria tornar-se canônico para a tradição política do Ocidente (1252b, 30), define a meta da comunidade perfeita, ele o faz justamente opondo o simples fato de viver (to zên) à vida politicamente qualificada (tó eû zên): ginoméne mèn oûn toû zên béneken, oûsa dè toû eû zên “nascida em vista do viver, mas existente essencialmente em vista do viver bem” (AGAMBEN, 2010, p.10)

Entretanto quando a política passa a se interessar por tudo e todos, desde o seu princípio na Idade Média ainda, mas que alcançou a sua onipresença apenas na Idade Moderna, passa a controlar não só o Estado ou suas leis, mas a absolutamente todos os corpos.

“Por milênios, o homem permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivente e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente” (...) Segundo Foucault, o “limiar de modernidade biológica” de uma sociedade situa-se no ponto em que a espécie e o indivíduo enquanto simples corpo vivente tornam-se a aposta que está em jogo nas suas estratégias políticas. (AGAMBEN, 2010, p.11)

 

Deste modo, toda a ação passa a ser controlável e, mais que isso, controlada. Os cidadãos perdem o seu poder de influenciar os destinos da “polis” por assim dizer. A ação, no sentido arendtidiano torna-se algo raro e precioso e a economia onipresente assim como a vida comum, que não fazia parte das origens da política.

Por outro lado, já no fim dos anos cinquenta (ou seja, quase vinte anos antes de La volonté de savoir) Hannah Arendt havia analisado, em The human condition, o processo que leva o homo laborans e, com este, a vida biológica como tal, a ocupar progressivamente o centro da cena política do moderno. Era justamente a este primado da vida natural sobre a ação política que Arendt fazia, aliás, remontar a transformação e a decadência do espaço público na sociedade moderna. [...] É provável, aliás, que, se a política parece hoje atravessar um duradouro eclipse, isto se dê precisamente porque ela eximiu-se de um confronto com este evento fundador da modernidade. [...] Se  algo caracteriza, portanto, a democracia moderna em relação à clássica, é que ela se apresenta desde o início como uma reinvindicação e uma liberação da zoé, que ela procura constantemente transformar a mesma vida nua em forma de vida e de encontrar, por assim dizer, o bíos da zoé. Daí, também, a sua específica aporia, que consiste em querer colocar em jogo a liberdade e a felicidade dos homens no próprio ponto – a “vida nua” – que indicava a sua submissão. [...] Tomar consciência dessa aporia não significa desvalorizar as conquistas e as dificuldades da democracia, mas tentar de uma vez por todas compreender por que, justamente no instante em que parecia haver definitivamente triunfado sobre seus adversários e atingido seu apogeu, ela se revelou inesperadamente incapaz de salvar de uma ruína sem precedentes aquela zoé a cuja deliberação e felicidade havia dedicado todos seus esforços. (AGAMBEN, 2010, p. 11, 12 e 17)

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Economia e Governo

 


O ordoliberalismo ou o neoliberalismo que se tornou dominante na principal potência do mundo globalizado e que está presente em maior ou em menor proporção nos demais países do mundo. Num mundo, onde algumas políticas, poucas delas, ainda podem ser nacionais, mas cuja a economia é transnacional, integrada mundialmente, não importa se o país é comunista como a China, capitalista como a Alemanha ou difícil de descrever como o Sudão do Sul, a economia é a lógica que avalia cada um desses governos.

A política, tal como descreveu Aristóteles, se tornou um mero acessório da economia de modo que a autonomia kantiana hoje, por exemplo, nos parece um conto da carochinha. O que nos promete as condições para ser livre nos coloca numa tal dependência que sem grandes dificuldades conseguiríamos entender ser uma prisão. É como se disséssemos a um ser humano: à partir de hoje vais experimentar a mais ampla liberdade. Podes fazer tudo o que desejas. Não existirão mais limites. Desde que nunca saias desta gaiola de 10 m². Realizou-se o que Marcuse chamou de falta de liberdade confortável. Podes tudo, te dou tudo, desde que me cedas tua liberdade.

Tudo é possível. Não há mais alienação, pois todos somos donos de nosso próprio capital, desde que aceitemos que as regras que devem governar o mundo sejam as de mercado. Não podem ser questionadas, pois elas nos libertam. Parece muito com os totalitarismos, me refiro a tanto os de esquerda quanto os de direita, onde qualquer mal deve ser negado em nome de um suposto bem que ultrapassa a tudo. Aliás essa nova lógica, o ordoliberalismo, acaba com qualquer diferenciação ideológica possível, pois pouco importa a origem do governo, as regras que ele deve seguir são as mesmas: as de mercado.

Não dá pra dizer que a coisa é intrinsecamente boa ou má. Ainda é cedo pra julgar. Só o tempo mais distante nos dará um horizonte para poder julgar o que acontece hoje. Mas pelo menos uma coisa é certa: o sistema é um labirinto e a gente não sabe se tem saída. Nem se queremos sair ou não. Muitas coisas nos incomodam, mas é tão confortável dentro. Resta-nos a ansiedade de andar, andar e parecer não sair do lugar ao mesmo tempo que o mistério nos aguça a curiosidade e assim nos ativa a tentar decifrá-lo.

 

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. O reino e a glória. São Paulo: Boitempo, 2011. 326p.

FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 474p.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Quem abraça tudo não abraça nada



    O interesse da política na Idade Antiga e boa parte de Idade Média se restringia aos que dela participavam e por ela se interessavam. Portanto tinha enorme importância se interessar e participar das decisões políticas, pois não se legislava pelo interesse geral, ou seja, dos que não participavam dela. Portanto em nenhuma hipótese poder-se-ia delegar poder ou esperar que suas demandas fossem atendidas sem agir. Para Aristóteles, os terrenos da ação por excelência eram a política e a ética. Hannah Arendt restringe esse terreno aristotélico à somente a política.

    Entretanto quando a política passa a se interessar por tudo e todos, desde o seu princípio na Idade Média ainda, mas que alcançou a sua onipresença apenas na Idade Moderna, passa a controlar não só o Estado ou suas leis, mas a absolutamente todos os corpos. Deste modo, toda a ação passa a ser controlável e, mais que isso, controlada. Os cidadãos perdem o seu poder de influenciar os destinos da “polis” por assim dizer.

Para a pergunta sobre o sentido da política existe uma resposta tão simples e tão concludente em si que se poderia achar outras respostas dispensáveis por completo. Tal resposta seria: o sentido da política é a liberdade. [...] Essa resposta não é, hoje, natural nem imediatamente óbvia. Isso evidencia-se porque a pergunta hoje não é simplesmente sobre o sentido da política, como antes se fazia, em essência, a partir de experiências não políticas ou até mesmo antipolíticas. [...] Por conseguinte, a pergunta é muito mais radical, muito mais agressiva, muito mais desesperada: tem a política algum sentido ainda? [...] Nessa pergunta assim formulada [...] mesclam-se dois elementos bem distintos: por um lado, a experiência das formas totalitárias de Estado nas quais toda a vida dos homens foi politizada por completo, tendo como resultado a liberdade não existir mais nelas. Visto que a partir daí, sob condições especificamente modernas, surge a pergunta se política e liberdade são compatíveis entre si, se a liberdade não começa onde cessa a política, de modo a não existir mais liberdade onde a coisa política não encontra seu fim e seu limite em parte alguma. [...] em segundo lugar, a pergunta é forçosamente em vista do monstruoso desenvolvimento das modernas possibilidades de destruição – cujo o monopólio os Estados detêm; sem esse monopólio, jamais teriam chegado a se desenvolver – e que só podem ser empregadas dentro do âmbito político. O que está em jogo aqui não é apenas a liberdade, mas sim a vida, a continuidade da existência da Humanidade e talvez da vida orgânica na Terra. A pergunta de agora torna duvidosa toda a política; faz parecer discutível nas condições modernas se a política e a conservação da vida são compatíveis entre si, e espera, sub-repticiamente que os homens tenham juízo e de alguma maneira consigam abolir a política antes de sucumbir por causa dela. [...] As duas experiências nas quais se inflama a pergunta atual sobre o sentido da política são as experiências políticas fundamentais de nossa época. Se passar ao largo delas, seria como se não tivesse vivido, em absoluto, no mundo que é nosso. Em contrapartida, ainda existe uma diferença entre elas. Contra a experiência da politização total nas formas totalitárias de Estado e o caráter duvidoso da coisa política que nela nasce está sempre o fato de, desde a Antiguidade, ninguém mais ser da opinião que o sentido da política é a liberdade; bem como o outro fato de, nos tempos modernos, tanto em termos teóricos como práticos, a coisa política ser tida como um meio para proteger o sustento da vida da sociedade e [a] produtividade do desenvolvimento social livre. Contra o questionamento da coisa política como existe na experiência totalitária, haveria um recuo para um ponto de vista anterior, falando-se em termos históricos – como se as formas de dominação totalitárias não houvessem demonstrado nada melhor, como se tivesse razão o pensamento liberal e conservador do século XIX. O desconcertante no aparecimento de uma possibilidade de destruição física absoluta dentro da coisa política é tal retirada ser nada mais nada menos do que impossível. Pois a coisa política ameaça exatamente aquilo onde, no conceito dos tempos modernos, reside o próprio direito de existência, a saber, a mera possibilidade de vida – na verdade, de toda a Humanidade. Se for verdade que a política nada mais é do que algo infelizmente necessário para a conservação da vida da Humanidade, então de fato ela mesma começou a se riscar do mapa, ou seja, seu sentido transformou-se em falta de sentido. (ARENDT, 2011, p.38, 39 e 40).

A ação, no sentido arendtidiano torna-se algo raro e precioso e a economia onipresente assim como a vida comum, que não fazia parte das origens da política. E Hannah Arendt, diz que num mundo onde a ação é menosprezada e coibida, a resposta para a resolução dos problemas da humanidade é o milagre, mas não no sentido religioso:

Se partirmos da lógica inerente a esses fatores e supusermos que nada mais do conhecido por nós determina e determinará o curso do mundo, então só podemos dizer que uma mudança para a salvação só poderá acontecer por meio de uma espécie de milagre. Para perguntar, com toda a seriedade, o que há de verdade nesse milagre para eliminar a suspeita de que uma esperança – ou contar com milagres – é pura leviandade ou frivolidade insensata, precisamos antes de mais nada esquecer o papel que o milagre sempre desempenhou na crença e na superstição, portanto, no religioso e no pseudo-religioso. Para nos libertarmos do preconceito de que o milagre é um fenômeno genuína e exclusivamente religioso, no qual algo sobrenatural e sobre-humano se intromete no desenrolar dos assuntos humanos ou no desenvolvimento natural, talvez seja conveniente rememorarmos em breves instantes que todo o marco de nossa existência real – a existência da Terra, da vida orgânica sobre ela, a existência do gênero humano – baseia-se numa espécie de milagre. Porque, sob o ponto de vista dos fenômenos universais e das probabilidades que nelas reinam e que podem ser apreendidas estatisticamente, o surgimento da Terra foi uma ‘infinita impossibilidade’. [...] Nesses exemplos, fica claro que sempre que algo de novo acontece, de maneira inesperada, incalculável e por fim inexplicável em sua causa, acontece justamente como um milagre dentro do contexto de cursos calculáveis. Em outras palavras, cada novo começo é, em sua natureza, um milagre – ou seja, sempre visto e experimentado do ponto de vista dos processos que ele interrompe necessariamente. Nesse sentido, a transcendência religiosa da crença no milagre corresponde à transcendência real e demonstrável de cada começo em relação ao contexto do processo no qual penetra. [...] Se tomarmos esse exemplo como uma metáfora para aquilo que sucede de fato no âmbito dos assuntos humanos, então ele logo começa a claudicar. Pois os processos com os quais temos que lidar aqui, são, como dizemos, de natureza histórica, ou seja, não se desenrolam na forma de desenvolvimentos naturais, mas sim como cadeias de acontecimentos em cujo encadeamento acontece aquele milagre das ‘infinitas improbabilidades’ sempre com tanta frequência que nos parece estranho falar aqui de milagre. Isso reside apenas no fato de que o processo da História surgiu por iniciativa humana e está sempre sendo rompido por novas iniciativas. Se vemos esse processo em seu puro caráter de processo – e isso acontece naturalmente em todas as filosofias históricas para as quais o processo histórico não é o resultado do agir em conjunto dos homens, mas sim do desenvolvimento e da coincidência de forças extra-humanas, sobre-humanas ou subumanas, ou seja, onde o homem é eliminado da História -, então cada novo começo, para a salvação ou a desgraça, é tão infinitamente improvável que todos os acontecimentos maiores se apresentam como milagres. [...] A diferença decisiva entre as ‘infinitas improbabilidades’ nas quais se baseia a vida terrestre-humana e o acontecimento-milagre no âmbito dos assuntos humanos é, claro, existir aqui um taumaturgo e o fato de o próprio homem ser dotado, de um modo extremamente maravilhoso e misterioso, de fazer milagre. No uso idiomático habitual e comum, nós chamamos essa aptidão de agir. É característico do agir a capacidade de desencadear processos, cujo automatismo depois parece muito semelhante ao dos processos naturais; é-lhe característico, inclusive, o poder impor de um novo começo, começar algo de novo, tomar iniciativa ou, adotando-se o estilo de Kant, começar uma cadeia espontaneamente. O milagre da liberdade está contido nesse poder-começar que, por seu lado, está contido no fato de que cada homem é em si um novo começo, uma vez que, por meio do nascimento, veio ao mundo que existia antes dele e vai continuar existindo depois dele. Essa concepção de que a liberdade é idêntica ao começar ou, falando de novo à maneira de Kant, à espontaneidade, é-nos bastante estranha porque faz parte do caráter e das características de nossas tradições do pensamento, identificar liberdade com livre-arbítrio e entender como livre-arbítrio a liberdade de escolha entre as coisas dadas – um grosso modo, entre o bem e o mal, mas não a liberdade; simplesmente querer que isso ou aquilo seja assim ou de outra maneira. Essa tradição [...] foi extraordinariamente fortalecida pela convicção espalhada desde o final da Antiguidade de a liberdade não estar no agir e na coisa política, mas somente ser possível quando o homem renuncia ao agir, quando se retira do mundo para si mesmo e evita a política. [...] Se o sentido da política é a liberdade, isso significa que nesse espaço – e em nenhum outro – temos de fato o direito de esperar milagres. Não porque fôssemos crentes em milagres, mas sim porque os homens, enquanto puderem agir, estão em condições de fazer o improvável e o incalculável e, saibam eles ou não, estão sempre fazendo. A pergunta se a política ainda tem algum sentido nos remete, justamente quando ela termina na crença em milagres – e onde mais deveria terminar senão aí – de volta forçosamente à pergunta sobre o sentido da política. (ARENDT, 2011, p.41 a 45).

domingo, 9 de fevereiro de 2025

O extraordinário e a democracia



 - As leis garantem a democracia (o Estado democrático de direito).

- As leis são uma construção da nação.

- O povo é que garante as leis (mas não é nem quem as formula, nem quem as promulga, nem quem as aplica).

- O soberano é investido de todo o poder legal (mas a soberania estende-se além das leis).

- Se tudo que for proposto estiver dentro das leis ordinárias e constitucionais, as leis não progridem e se aperfeiçoam.

- O soberano está legalmente fora da Lei (pode decretar estado de exceção)

- O progresso das instituições é feito fora da Lei (ou das leis que garantem a democracia), embora seja a mesma Lei que as legitimem.

- Esse estado de coisas de indefinição entre o legal e o extralegal permite ao soberano instaurar uma biopolítica severa.

- Deste modo, sobram dúvidas sobre as democracias contemporâneas.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Zoé para Bios



Hoje vivemos um período no qual a democracia poderia estar mais consolidada do que em qualquer outro momento da história. A globalização, ou internacionalização econômica, propiciou uma possibilidade de comunicação e entendimento que até então nunca tinha sido tão provável. Não existe mais uma ameaça política à existência humana na Terra como durante a Guerra Fria. Os conflitos étnicos, ainda existentes e numerosos, estão muito mais controlados do que estiveram no passado. Parece que a racionalidade ocidental se tornou uma espécie de linguagem universal na qual todos os atores puderam se entender.

Essa mesma lógica econômica é, entretanto, a causadora do estado de exceção que, ao tomar iniciativas em defesa da democracia, acaba fragilizando-a. Resultado: enfraquece a independência de poderes, sobretudo o poder legislativo porque passa a dar poder legal ao que não é lei; transforma o poder em iniciativa. Agir é o que a política, no mínimo, deveria proporcionar; ao se transformar em uma discussão do direito, cujas leis continuem válidas, ela não tem mais eficácia jurídica, esvaziando, assim, a possibilidade de mudança. Enfim, consegue tudo o que uma economia deseja: liberdade comercial e estabilidade.

A democracia, que inicialmente salvaguardava apenas os que delas se utilizavam – ou seja, os que agiam na pólis (política)–, passou a se referir a todos até mesmo àqueles que não se interessavam por ela, àqueles que não tinham poder pra agir, ou àqueles cujo poder lhes havia sido retirado. O terreno da vida (privado) e o terreno da política (público) passaram a não mais se diferenciar e, assim, a vida invadiu a política. Em face disso, é importante mostrar como os fundamentos das teorias tradicionais da democracia se tornaram meramente formais como as leis –quando existem – no estado exceção. Entretanto, sua aplicação é suspensa.

Quanto mais a democracia se ampliou, o que é um princípio democrático moderno de atingir a todos, mais se transformou em uma democracia para ninguém. A intenção da pluralidade acabou redundando na impessoalidade, pois serve à mesma lógica da racionalidade técnica que se importa tão somente com o produto, enquanto, no processo, só se atenta para a produtividade, para eficiência e para os valores relacionados ao fim e não ao meio. Desde que se chegue aos resultados esperados, não importa quem participa, nem se a ação vai melhorar ou piorar a vida do indivíduo, tanto faz ser ele uma máquina, um protocolo.

A política, desse modo, se desvinculou da ação como mudança de um cenário e passou a ser sua administração, como se a teoria funcionalista tivesse vencido e tudo fosse um corpo para o qual o único interesse é a manutenção da sua saúde. Assim, o que possivelmente atrapalha a saúde do corpo deve ser afastado, e sua ação cerceada. Deve ser expulso do bando para não contaminar o resto do corpo; deve morrer (não necessariamente de morte física) sem ser julgado ou sacrificado.

Esse caminho em que a democratização da democracia redundou num jogo perverso em que todos estão submetidos à dominação de uma lógica impessoal é o que tentaremos demonstrar neste trabalho, sobretudo a ideia de que a defesa da democracia dos perigos externos se transformou no pior algoz da democracia.

O sabiá sabia assobiar

  Assim cantou o sabiá Como sempre Sabia assobiar Com a melodia assombrar E o ritmo encadear O sol sobe e a lua baixa As estrela...