Rafael não era um anjo. Mas parecia. Um anjo
trincado. Daqueles de porcelana com uns poucos cacos faltando. Voava em seu
skate com extrema elegância. Exibia seus arranhões e roxos como cicatrizes de
guerra. Dificilmente batia no chão ou na parede. Mas quando chocava... não era
só um galo, só umas escoriações, alguns calos e joanetes.
Usava sempre seu velho tênis acolchoado dentro
com algodão e penas. Até mesmo joelheiras e cotoveleiras tinham suas proteções
extras. Capacete sempre usava. Por um bom tempo usou até protetor de pescoço.
As asas, nunca protegeu. Vai ver que é por isso que não se viam. Sei lá se não
tinha mais. Ou se ficou só um potoco.
Gostava de viver aventuras. Voar alto.
Alcançar velocidades inéditas para ele. Não daqueles de extrema técnica que
faziam os lances com aparente naturalidade. O que fazia era por instinto. Acreditava
piamente que cada manobra era possível, ia acontecer. Não as fazia pra enfeitar
movimentos. So as fazia porque era necessário para se mover na velocidade
desejada. Porque precisava voar. Tinha que desviar de algo ou de alguém.
Se deslocava de casa para o trabalho, do
trabalho pra casa no velho skate remoldado várias vezes. Seria um paradoxo de
Teseu se Rafael entendesse de mitologia grega ou de paradoxos. Shape várias
vezes refeito. Rodas constantemente trocadas. Amortecedor constantemente
refeito e aperfeiçoado. A pintura trocava constantemente de acordo com sua vibe.
Nem tanto assim. Mas digamos, a cada quatro ou cinco meses.
No trabalho usava uma moto para sair por aí pegando,
pagando, distribuindo documentos. Era motoboy. Queria ser skateboy, mas não
dava. Mas mesmo assim levava o skate consigo. Se tivesse uma brechinha para
usá-lo... Também tinha medo de alguém pegar e estragar sua prancha sobre rodas.
Quando sobrava um tempinho no fim de semana
pintava seus quadros. Não era lá uma Capela Sistina, mas... pintava até bem. Não
era um De Sanzio. Mas tinha suas desproporções nada arbitrarias. Um quadro seu
foi arrematado por milhões num leilão. Tanto o leiloeiro quanto o comprador confundiram
o autor. Depois ficaram com vergonha de demonstrar a ignorância. Foi a única
vez que vendeu um quadro seu. Passou a pintar para si mesmo e para encomendas.
Mas toda vez que vinham pechinchar ele ficava ofendido. Daí vociferava sua frase:
“Vai. Leva essa merda!”.
No tempo que não sobrava estava a cultivar o
jardim do vizinho do fundo. Por uma dessas infelicidades urbanas sua casa não
tinha nem quintal, nem varanda. Passava por um corredor exíguo à esquerda ou direita das casas toda madrugada
e alta noite pra regar as bromélias, lírios e alfazemas plantadas. Elas perfumavam
seu sono. Sonhava.
Bom deixa sonhar. Não vou atrapalhar os sonhos.
É hora de terminar.
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