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quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Conto de Rafael


 

Rafael não era um anjo. Mas parecia. Um anjo trincado. Daqueles de porcelana com uns poucos cacos faltando. Voava em seu skate com extrema elegância. Exibia seus arranhões e roxos como cicatrizes de guerra. Dificilmente batia no chão ou na parede. Mas quando chocava... não era só um galo, só umas escoriações, alguns calos e joanetes.

Usava sempre seu velho tênis acolchoado dentro com algodão e penas. Até mesmo joelheiras e cotoveleiras tinham suas proteções extras. Capacete sempre usava. Por um bom tempo usou até protetor de pescoço. As asas, nunca protegeu. Vai ver que é por isso que não se viam. Sei lá se não tinha mais. Ou se ficou só um potoco.

Gostava de viver aventuras. Voar alto. Alcançar velocidades inéditas para ele. Não daqueles de extrema técnica que faziam os lances com aparente naturalidade. O que fazia era por instinto. Acreditava piamente que cada manobra era possível, ia acontecer. Não as fazia pra enfeitar movimentos. So as fazia porque era necessário para se mover na velocidade desejada. Porque precisava voar. Tinha que desviar de algo ou de alguém.

Se deslocava de casa para o trabalho, do trabalho pra casa no velho skate remoldado várias vezes. Seria um paradoxo de Teseu se Rafael entendesse de mitologia grega ou de paradoxos. Shape várias vezes refeito. Rodas constantemente trocadas. Amortecedor constantemente refeito e aperfeiçoado. A pintura trocava constantemente de acordo com sua vibe. Nem tanto assim. Mas digamos, a cada quatro ou cinco meses.

No trabalho usava uma moto para sair por aí pegando, pagando, distribuindo documentos. Era motoboy. Queria ser skateboy, mas não dava. Mas mesmo assim levava o skate consigo. Se tivesse uma brechinha para usá-lo... Também tinha medo de alguém pegar e estragar sua prancha sobre rodas.

Quando sobrava um tempinho no fim de semana pintava seus quadros. Não era lá uma Capela Sistina, mas... pintava até bem. Não era um De Sanzio. Mas tinha suas desproporções nada arbitrarias. Um quadro seu foi arrematado por milhões num leilão. Tanto o leiloeiro quanto o comprador confundiram o autor. Depois ficaram com vergonha de demonstrar a ignorância. Foi a única vez que vendeu um quadro seu. Passou a pintar para si mesmo e para encomendas. Mas toda vez que vinham pechinchar ele ficava ofendido. Daí vociferava sua frase: “Vai. Leva essa merda!”.

No tempo que não sobrava estava a cultivar o jardim do vizinho do fundo. Por uma dessas infelicidades urbanas sua casa não tinha nem quintal, nem varanda. Passava por um corredor exíguo  à esquerda ou direita das casas toda madrugada e alta noite pra regar as bromélias, lírios e alfazemas plantadas. Elas perfumavam seu sono. Sonhava.

Bom deixa sonhar. Não vou atrapalhar os sonhos. É hora de terminar.

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