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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

A volta de Aristóteles

 


Hannah Arendt, Jurgen Habermas e Karl Jaspers foram majestosos leitores de Aristóteles e conseguiram atualizá-lo muito proficuamente tornando-o muito inteligível e importante para o resgate da política, praticamente massacrada pela modernidade e o surgimento das ciências políticas. Os três filósofos retomam valores como interação, multiplicidade e alteridade.

Aristóteles tem diagnósticos interessantíssimos sobre a democracia. Vejamos o que o estagirita diz no livro quarto, capítulo IV de A Política, esse interessante livro sobre o Estado e a República (transcrevo literalmente):

A primeira espécie de democracia é aquela que tem a igualdade por fundamento. Nos termos da lei que regula essa democracia, a igualdade significa que os ricos e os pobres não têm privilégios políticos, que tanto uns como outros não são soberanos de um modo exclusivo, e sim que todos o são exatamente na mesma proporção. Se é verdade, como muitos imaginam, que a liberdade e a igualdade constituem essencialmente a democracia, elas, no entanto, só podem aí encontrar-se em toda a sua pureza, enquanto gozarem os cidadãos da mais perfeita igualdade política. Mas, como o povo constitui sempre a parte mais numerosa do Estado, e é a opinião da maioria que faz a autoridade, é natural que seja esse o característico essencial da democracia. Eis aí, pois, uma primeira espécie de democracia.

A condição de que as magistraturas sejam dadas segundo um censo determinado, contanto que pequeno, constitui uma outra espécie; mas é preciso que aquele que chega ao censo exigido tenha uma parte nas funções públicas, e delas seja excluído quando cessar de possuir o censo. Uma terceira espécie admite às magistraturas todos os cidadãos incorruptíveis; mas é a lei que manda. Em uma outra espécie, todo habitante, contanto que seja cidadão, é declarado apto a gerir as magistraturas, e a soberania é firmada na lei. Finalmente existe ainda uma quinta, na qual as mesmas condições são mantidas, mas a soberania é transportada da lei para a multidão.

Eis o que acontece quando os decretos outorgam a autoridade absoluta à lei, coisa que resulta no crédito dos demagogos. Porque, nos governos democráticos onde a lei é senhora, não há demagogos: são os cidadãos mais dignos que têm precedência. Mas uma vez perdida a soberania da lei, surge uma multidão de demagogos. Então o povo se transforma numa espécie de monarca de mil cabeças: é soberano, não individualmente, mas em corpo. Quando Homero diz que a dominação de muitos é um mal, não se sabe se ele entende por isso a dominação de todo um povo, como nós o fazemos aqui, ou a dominação de muitos chefes reunidos que não forme, por assim dizer, mais que um chefe.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Iluminismo, Contracultura e Hippies

    


 

   O que eu vou escrever aqui pode ser pura besteira embora minhas argumentações sejam bastantes razoáveis e alguns contextos inquestionáveis. O Iluminismo foi responsável por uma cultura de devoção à razão. Esse culto à razão compreendia dos desdobramentos bastantes contraditórios: 

- uma ideia de razão instrumental, uma razão que faz desenvolver o mundo, cujo o grande exponente é Hegel, um filosofo que nunca falou dela diretamente mas explicou o desenvolvimento da historia até a idade moderna, a derradeira e última pelo desenvolvimento da racionalidade, da razão aplicada ao mundo.

- a própria ideia da razão geral, muito bem explicada por Kant, o qual em sua apologia á razão acreditava que poderia significar até a paz perpetua, o fim das guerras.

    Portanto, uma razão difusa, uma razão que domina, explica o mundo e uma razão individual que raciocina pondera a ação no mundo. Ou seja, uma que instrumentaliza, extrai e suga o melhor do mundo para o conforto da humanidade. Outra que pondera, busca uma justiça. A primeira justifica guerras por recursos naturais. A segunda abomina disputas injustificadas. Guerras causam mortes e a vida humana, o ser  humano é o centro do iluminismo.

    Deste modo é curioso como podemos acreditar que a contracultura desde os beatniks, passando pelo movimento por direitos até os hippies foi influenciada pelas ideias de Kant. A ideia individualista da maioridade moral como pensar por si mesmo, ou seja refletir, não aceitar verdades evidentes sem refletir permitiu que as pessoas saíssem da sociedade, questionassem seus valores.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

As lições da infame infância de Sartre para ele

 


Alguns mínimos apontamentos de Sartre, recolhidos por Gerard Lebrun, filósofo autor de Kant e o fim da metafísica [1970], O avesso da dialética: Hegel à luz de Nietzsche [1988] e A filosofia e sua História [2006]. Os recolhidos são do último livro citado. Talvez consigamos refletir sobre eles. O que seria uma reflexão sobre a reflexão. Algo muito interessante, pois teríamos a reflexão de Sartre adulto sobre o pequeno adulto que foi Sartre, uma infância desprezada por ele, mas que reconhece que a sua negação o conduziu às suas grandes obras, principalmente A náusea e O Ser e o Nada. Vejamos estes recortes:

É por isso que, sendo todos comediantes, somos todos cabotinos, todos estamos de má fé. Essa distância, de que antes eu me orgulhava, não é nada. De maneira que, ao descobrir meu cabotinismo integral, desvendo meu Nada: não havia ninguém sob a máscara. “Tentara refugiar-me em minha verdade solitária; mas eu não dispunha de verdade alguma” “Eu era nada” “Eu não era consistente nem permanente; eu não era o continuador futuro da obra paterna, eu não era necessário à produção do aço: em suma, eu não tinha alma”. “Nasci para suprir a grande necessidade que eu tinha de mim mesmo; até então só conhecendo as vaidades de um cão de luxo, acuado no orgulho, tornei-me o Orgulhoso [...] Neste ponto extremo da humildade, não podia mais me salvar a não ser invertendo a situação”

Os escritores não são solitários: a humanidade necessita tanto deles quanto dos cavaleiros errantes ou dos vingadores da injustiça. Ou melhor: o escritor, testemunhando a favor do homem, o salva. “Tornei-me cátaro, confundi literatura com prece, converti-a em sacrifício humano [...]. Tomei a decisão de escrever para Deus com vistas a salvar meus vizinhos. Eu queria pessoas que me devessem favores e não leitores.”  (LEBRUN,2006,p. 43-45).

Assim Sartre, usando a estética sob sua própria definição de transformar o mundo em aparência do mundo, mostra como chegou a sua primeira grande obra, A náusea:

Consegui aos trinta anos dar esse belo golpe: o de escrever em A náusea – muito sinceramente, podem crer – a existência injustificada, salobra, de meus congêneres e colocar a minha fora de questão [...] Mais tarde expus jovialmente que o homem é impossível; eu próprio impossível, diferia dos outros apenas pelo simples mandato de manifestar essa impossibilidade que, no mesmo lance, se transfigurava [...] Falsificado até os ossos e mistificado, escrevia alegremente sobre nossa infeliz condição.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Para comer é preciso degustar. Para entender, raciocinar

 Informação == Reflexão ==> Conhecimento


    Sua mãe, sua vó ou tia, algum antepassado seu já lhe disse que é preciso mastigar, degustar antes de engolir. Estamos na era da informação e também na da extrema fluidez que conjuntamente nos encharcam de informações úteis e inúteis às quais deglutimos com extrema voracidade sem nenhum processo.

    Nos tornamos tão cômodos/preguiçosos que muita das vezes procuramos opiniões prontas para não precisar despender energia pra ter uma própria. Os shakes estão por ai se você não quiser mastigar. Bastar sorver um liquido grosso, uma vitamina batida no leite talvez. O interessante é que a opinião alheia é mera informação. Assim deveria ser tratada porque só aprendemos sobre aquilo que paramos pra pensar sobre, isto é, refletimos.

    Ah você está falando da imprensa, das noticias, da comunicação em suas mais diversas formas. Também. Entretanto há um tipo de comunicação que é a boa educação que ninguém lembra dela. O ensino, sobretudo nas mais gabaritadas escolas (necessariamente não as melhores), é uma sequencia de informações infindáveis sem pausa. Nos mais famosos cursinhos, mnemônicos. Informações ditadas, escritas, faladas sem nenhuma pausa pra assentar, refletir.

    Aprendemos igual máquinas. Objetos notadamente estúpidos com memórias inimagináveis, mas que sem programação previa não produzem nada. Ah, mas tem a inteligência artificial... são bancos de dados estrambólicos com inclusive de algoritmos dos quais a tal inteligência pode usar com severas limitações de empreendimento. Tem algoritmo suficiente pra maquina usar e resolver todos os problemas do universo infinitas vezes e, mesmo com esses modelos todos, a máquina brocha. Mas paro por aqui porque inteligência é objetivo desse texto, não inteligência artificial, a qual não é nem inteligente porque não reflete, nem artificial porque todos os meios foram dados por seres humanos.

    Voltando a escola, o ensino deseja nos treinar para repetir chaves, dogmas. instrumentalizarmos para nos tornar civilizados. Hoje, nem mais isso com o modelo geral de individualizar as pessoas. Não um ensino individualizado que seria excelente, mas um modelo geral de formar o quanto possível pessoas desagregadas exatamente iguais. Assim, tudo é um modelo que tem objetivos em determinado tempo na qual pelo sucesso da educação premia-se quem ensina as palavras, códigos-chave em menos tempo. A tal da eficiência.

    Compreensão, aprender, isso é secundário. Seria até  bom que as pessoas aprendessem, mas se não der tempo... Basta conhecer os códigos, conhecer o mínimo. Saber falar, escrever as palavras necessárias. Conhecer as respostas. Não importa se as entendem ou não.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Hannah e a necessidade da política

 


Arendt viveu no período mais cáustico pós a modernidade, verificou que com o advento do moderno, da técnica, da tecnologia e o domínio da economia sobre tudo, inclusive a política, transformando comunitas, comunidade em societá, sociedade. Termo político em econômico, houve a decadência da política, valor que integrava e explicava a cidadania.

Muitos de nossos valores ainda são dessa remota época em que a política explicava o mundo e, nos colocam num limbo, pois são efêmeros e inertes. Não tem mais significado num mundo em que pouco importa a política, o debate, o público. Importam agora a economia, a obediência cega, o desejo, o particular.

Tornou o ser humano um frustrado, um poço de desejos insondáveis, um poço de mágoa. Campo ideal para que líderes carismáticos em plena circunstancia democrática tenham domínio total sobre seu povo, mais domínio que qualquer ditador que encontrará sempre forte oposição. Ambiente ideal para o totalitarismo, a perfeita manipulação dos desejos da massa para satisfazer os desejos de um único ser ou de uma única elite que se aproveita da situação.

domingo, 23 de fevereiro de 2025

Mito IV

 

O universo era uma ideia constituída de outras de igual natureza. Algumas lendas asseguram que ele explodiu de decepção ao saber que era um simples substantivo, algo muito nominal, ele gostaria de ser uma locução verbal, algo complexo.

A explosão para algo tido como tão fenomenal que descobre que é tão simples uma coisa bastante momentânea e fatual. O universo só não poderia calcular os efeitos de sua raiva momentânea. Quando ele caiu em si percebeu a besteira que havia feito e por isso que o universo vive se expandindo, para afastar os corpos celestes e evitar a fofoca entre eles.

Passado o tempo, o universo acabou aprendendo que o caminho da sabedoria é a simplicidade e essa é outra razão para a expansão do universo, a expansão da alegria. E o universo se tornava cada vez mais sapiente e simplório, mais alegre e expansivo. Por isso que o universo é tão simples, misterioso e brilhante.

Sendo um substantivo maior, resolveu substantivar todas as coisas, lhes dando nomes. E todas as coisas passaram a ter nomes, várias denominações, várias raízes, matizes, fonemas, ortografias e significados. A partir daquele momento tudo era substantivo múltiplo como o universo o é.

O universo como substantivo é simples e denomina tudo como convém a um substantivo. O substantivo é um, é o universo.

(Pensar...)

 

Mito III

 

Que o universo era constituído somente de ideias, a essa altura vocês já estão cansados de ler nos meus artigos. Os artigos anteriores diziam que o mundo é constituído de onomatopeias ou adjetivos, mas tudo isso é besteira, o mundo é constituído de metáforas.

O mundo era só ideias e explodiu ao descobrir que ele conseguia ressinificar as palavras usando outras palavras para definir palavras suas. Isso é uma coisa impressionante até para uma ideia grandiosa como o universo. Então a explosão foi mais que justificada.

A maioria (quase a totalidade das lendas de criação do mundo) demonstra que o mundo foi criado por metáforas, já que as próprias estórias são metáforas da criação do mundo. O mundo é uma metáfora da existência humana, na verdade é uma metáfora de uma metáfora. A própria existência humana é uma metáfora.

Por isso que o mundo é algo que se refere a outro objeto, uma idéia que se refere a outra. Devido ao material de que é constituído o mundo acaba não sendo o que é, já que ele é constituído de referências aos objetos. Então o mundo é referencial e por isso relativo, inexato e mutante.

(Pensar...)

Mito II

 

No começo o mundo era só ideias (Eu acho que até Platão concorda comigo, ou eu concordo com ele, sei lá). Só existia espírito, entidade, mente... só existiam pensamentos, convicções, doutrinas, verdades de todos os tipos. Primeiro o universo (uma idéia muito legal) explode em alegria ao perceber a primeira dúvida. Bum, Catapuft, Ploft, Pow... mais ou menos isso.

A dúvida era algo muito importante, pois o universo percebeu que poderia ainda crescer, se expandir. A incerteza era algo esplêndido, algo indubitavelmente maravilhoso. O universo estava formidável e benevolente com a descoberta. As ideias também estavam eufóricas e absolutamente lindas, pois, afinal, o universo era constituído delas.

Como se pode notar, nasceram nesse momento os adjetivos, que por sua vez construíram o mundo. Por isso que o mundo é ao mesmo tempo tão lindo, maravilhoso, formidável, esplêndido, monumental, mas ainda assim com um grave problema: é volúvel como todos os adjetivos, dos quais é constituído.

O mundo antes de existir era rude e simplório, mas, com certeza era muito mais perfeito do que o é hoje. Acontece que quando o universo criou a perfeição, descobriu que ela era muito soberba, bastante imatura e excessivamente fútil.

(Pensar...)

Mito I

Segundo as lendas onomatopaicas, o mundo não nasceu, ele morreu.

Primeiro segundo, dia da criação, havia um amplo universo de ideias, de concepções, de estilos, de ideologias. Segundo momento, o instante da transfiguração, tudo o que era deixou de ser. Terceiro estado, a explosão, bum...! Bum...! Bum...! Tá bom. Isso já esboça o esdrúxulo.

A onomatopeia se transfigurava, atitude normal para uma figura em eterna mudança. Ao homem restavam algumas ideias e elas construíam um novo habitat. As pedras pela força do pensamento transformaram-se em mesa e cadeiras. Alguns arbustos em comida (haja imaginação para se comer uma folha). As caças se transformaram em manjar. O homem sugava a vida e as virtudes de outros animais. O homem agora era vampiro e sugava força vital. O homem foi vampiro mesmo antes de a Transilvânia ser criada.

As noites eram longas e o homem teve que inventar as brincadeiras. Brincou de fazer fogo, de desenhar e de imitar o que os animais faziam e acabou descobrindo brincadeiras maravilhosas. Acabou aprendendo que para viver é preciso brincar. Os homens dependem de suas brincadeiras para sobreviver e as brincadeiras melhoram sua autoestima.

(Pensar...)


sábado, 22 de fevereiro de 2025

Nenhuma mentira ou ilusão é o bastante

 

Notavelmente havia passado a fase de mais alta indigência e agora distribuía indulgências, não porque o seu deus havia determinado, mas porque era parte de seu livre-arbítrio. Caminhava estradas sem volta em direção a lugar nenhum que conhecesse. Tropeçava em afiadas pedras que lhe dilaceravam a carne e deixava parte de si pelo caminho como indícios de sua indubitável existência.

E assim era feliz não de uma risada larga, mas de uma incompletude notavelmente instável. Devorava a tudo e a todos que encontrava pelo caminho em sua mente compulsória, como se saber fosse uma febre. Lia, relia, desvirtuava o cotidiano ao deixar suas marcas onde não poderiam ter estado. Vivia em estado de letargia. Dos poucos que conheceram garantem que este morreu de indigestão literária.

A melhor coisa que existe na vida é não esperar nada. Quem se ilude, fatalmente será um desiludido. Já dizia o príncipe Sidarta Gautama, só é possível alcançar a absoluta paz (Nirvana) quem consegue abolir de si todos os desejos. “Os desejos são a fonte da dor”, dizia ele. Mas esse descolamento do mundo não pode ocorrer de maneira cínica. Se bem que Cínicos, como Diógenes o fizeram muito bem, foram profundamente éticos, mas não pretendiam encontrar a paz, apenas se desligar do mundo contingente.

Para viver em qualquer mundo é preciso humildade. Uma difícil honestidade de se mostrar fraco, incompleto por mais que se saiba saber. Saber que nenhum conhecimento pode conduzir direto à sabedoria. Que nenhuma sabedoria é absoluta. Que nessa vida, a questão de mestre e discípulo é mera contingencia temporária. Que ninguém aprende sem ensinar, como ninguém ensina sem aprender. Que os antônimos neste mundo são muito mais próximos que os sinônimos. Que os radicais tem sua importância, mas a história não os respeita. Transforma suas palavras derivadas em significâncias completamente diversas.

A hipocrisia e a leviandade são os mais importantes valores do mundo. São absolutamente cômodos. Propiciam com que as pessoas se defendam e se acusem sem o menor esforço. A hipocrisia possibilita que as pessoas acusem as pessoas de seus próprios erros. A leviandade, que se acusem sem a menor preocupação de provar a realidade do que afirmam. Uma maravilha, sobretudo para quem, pretensamente, dispõe de alguma autoridade.

Para alcançar a paz, como eu disse, é preciso um autoconhecimento enorme para conhecer suas aflições, seus desejos mais íntimos e ao mesmo tempo conhecer suas origens para erradicá-las. As pessoas, muito ligadas à hipocrisia e à leviandade, não podem percorrer este caminho. Estão profundamente condenadas ao ciclo do desejo-ilusão-desilusão, um caminho de dor sem volta. Sem nenhuma gratificação, a não ser a manutenção de suas ilusões, fontes de toda a sua dor. Fazer o que se tem seres que nunca aprendem.

Nunca leram o evangelho de Mateus que afirma “não julguem e vocês não serão julgados. De fato, vocês serão julgados com o mesmo julgamento com que vocês julgarem, e serão medidos com a mesma medida com que vocês medirem” (Mateus 7,1-2). Uma regra tão simples como o provérbio que diz que quem tem telhado de vidro não deve jogar pedra. Sobretudo, se o telhado em questão não for de vidro mesmo. Mas como já afirmou o mais sábio dos homens à beira de sua morte; “Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que estão fazendo!” (Lucas 23,34).

Deste modo fica muito fácil explicar porque a Política após a Idade Antiga foi cada vez mais se desvencilhando da Ética. Essa transformou num enorme penduricalho sem função alguma, senão atrasar as conquistas da política no momento que os homens foram se tornando cada vez mais pragmáticos e perceberam que não importam os princípios, apenas os fins desejados. Assim a veleidade e leviandade tomaram seu assento no centro do mundo, centro este que depois da modernidade se tornou o homem, hoje o que restou dele.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Helô



Queria saber voar

Perder-me em seus devaneios

Mergulhar na flor

Adentrar seus desejos

Ser tu a sonhar contigo

Concluída a perfeição

A plenitude a adorar a si mesma

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

O ocaso da política e a barbárie da civilização

 


Como sempre, vou preferir proferir minhas impressões que reproduzir o achômetro de outros, mesmo que estes sejam mais conhecidos e tenham maior credibilidade. O que não deixa de ser um critério técnico, o que em si mesmo é um grande problema. Se eu cedesse a esse juízo estaria sendo incoerente, pois o retorno da política, que defenderei, é justamente um contraponto ao domínio nefasto da economia através da técnica e da tecnologia.

O grande problema detectado por Hannah Arendt na modernidade foi o ocaso da política. A própria inexistência da política, fez com que necessitasse voltar à Grécia antiga para ter conceitos onde basear seu estudo que culminou na criação do conceito de Totalitarismo para explicar regimes como o Nazismo e o Stalinismo, que não poderiam ser considerados tiranias, pois tinham apoio da massa apesar de opressores e nem foram frutos de golpes de estado.

Os integrantes da Escola de Frankfurt, logo em seu início perceberam as influencias devastadoras da técnica sobre a sociedade. Membros da primeira geração como Adorno e Horkheimer demonstraram como na técnica ao explicar o mundo o mitificou, transformou a própria razão “autônoma” em mito. Marcuse, uma transição da primeira para a segunda geração, intensificou a crítica à técnica e à tecnologia. No entanto nenhum deles (da Escola de Frankfurt) conseguiu perceber antes que o grande problema não era apenas o domínio da técnica, mas também o consequente ocaso da política.

Aristóteles, bem como grande parte dos filósofos gregos após Sócrates perceberam que a política se fazia na praça pública e era fruto de uma dialética, ainda uma dialética socrática. Estava fundada a relação intrínseca entre política e interação/comunicação/diálogo. Um conceito de política que não encontra nenhum parâmetro na visão de política após a modernidade quando os cidadãos foram substituídos pelos políticos como categoria técnica independente.

Assim com o ocaso da política, esperamos e culpamos os representantes por não fazerem o que nós deveríamos fazer. Perdemos o poder político, o delegamos institucionalmente a outros, incapacitados como nós, o poder de decisão sobre o céu e a terra. Vivemos comodamente um messianismo da técnica. A esperança, existente desde os iluministas, de que a razão por si só leve o barco à frente, sem perceber que nos desgastamos remando cada vez mais, quando até nossas brincadeiras são direcionadas a mover o barco. Quando um imbecil italiano quer proclamar criativo até o ócio, em vez de se indignar com esse absurdo. Criação é o que Hannah Arendt chamaria de trabalho. As brincadeiras, creio que poderíamos chamar de labor, porque, embora não diretamente, estão relacionadas com a sobrevivência, pois impede que o barco estagne.

Portanto, no momento em que a hegemonia da economia trocou a interação política pela representatividade técnica, a civilização se autodestruiu, pois acabou com as cidades. Como conceber uma cidade sem a integração política garantida pela interação? Não podemos. Só podemos vislumbrar um mundo sem limites, mas não por uma interação universal, mas por uma desintegração plena. Cada um em seu lugar, não mais nem sujeito, pois o sujeito só existe na interação. A afirmação de Aristóteles de que o homem é um animal político tornou-se uma utopia. Que bom seria reconstruí-la em bases atuais, como detectou ser necessário Hannah Arendt, e como tentou (sem resultados até hoje) Jurgen Habermas.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Descrição (in)feliz

Longo caminho faz

O incauto a dormir na pedra

Vadiando entre sonhos

O caminho preso as ramagens

 

A cada passo

Novo devaneio

Leva a altitude pretendida

Liberto do poço da razão

 

Em seu debater

Formigam-lhe as pernas

Obstinadas operárias que teimam em não repousar


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Economia e Governo

 


O ordoliberalismo ou o neoliberalismo que se tornou dominante na principal potência do mundo globalizado e que está presente em maior ou em menor proporção nos demais países do mundo. Num mundo, onde algumas políticas, poucas delas, ainda podem ser nacionais, mas cuja a economia é transnacional, integrada mundialmente, não importa se o país é comunista como a China, capitalista como a Alemanha ou difícil de descrever como o Sudão do Sul, a economia é a lógica que avalia cada um desses governos.

A política, tal como descreveu Aristóteles, se tornou um mero acessório da economia de modo que a autonomia kantiana hoje, por exemplo, nos parece um conto da carochinha. O que nos promete as condições para ser livre nos coloca numa tal dependência que sem grandes dificuldades conseguiríamos entender ser uma prisão. É como se disséssemos a um ser humano: à partir de hoje vais experimentar a mais ampla liberdade. Podes fazer tudo o que desejas. Não existirão mais limites. Desde que nunca saias desta gaiola de 10 m². Realizou-se o que Marcuse chamou de falta de liberdade confortável. Podes tudo, te dou tudo, desde que me cedas tua liberdade.

Tudo é possível. Não há mais alienação, pois todos somos donos de nosso próprio capital, desde que aceitemos que as regras que devem governar o mundo sejam as de mercado. Não podem ser questionadas, pois elas nos libertam. Parece muito com os totalitarismos, me refiro a tanto os de esquerda quanto os de direita, onde qualquer mal deve ser negado em nome de um suposto bem que ultrapassa a tudo. Aliás essa nova lógica, o ordoliberalismo, acaba com qualquer diferenciação ideológica possível, pois pouco importa a origem do governo, as regras que ele deve seguir são as mesmas: as de mercado.

Não dá pra dizer que a coisa é intrinsecamente boa ou má. Ainda é cedo pra julgar. Só o tempo mais distante nos dará um horizonte para poder julgar o que acontece hoje. Mas pelo menos uma coisa é certa: o sistema é um labirinto e a gente não sabe se tem saída. Nem se queremos sair ou não. Muitas coisas nos incomodam, mas é tão confortável dentro. Resta-nos a ansiedade de andar, andar e parecer não sair do lugar ao mesmo tempo que o mistério nos aguça a curiosidade e assim nos ativa a tentar decifrá-lo.

 

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. O reino e a glória. São Paulo: Boitempo, 2011. 326p.

FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 474p.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Significação

 

Sinto-me um estranho em meu próprio lar

Não há outros em mim

O outro sou eu mesmo: um estrangeiro

 

Eu sou o outro

O de fora

Aquele que não se adequa

 

Aquele que como Régio não acaba

Não tem princípios

Nem meios

Muito menos fins

 

Louvo o estrangeiro que há em mim

Se houver sujeito no forasteiro

Se não me culpo por não ser

Por constituir-me negação

 

O que não sou é o que mais me representa

O que sou nada revela

Tudo é nada

O niilismo é o universo

Onde sou algo

Indefinido, impreciso, insuportável

Ignorância

 

Em meio ao nada

Tudo se cria

Inclusive o niilismo

de saber tudo

 

Tudo que é possível

Todo o necessário

Totalmente autossuficiente

 

Um vazio de expectativas

Uma verdadeira presença

Tudo se autocompleta

 

Que bosta!

Uma vida vazia...

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Trançando renda

 Pegue a palavra

Jogue nos trilhos

Espere a locomotiva passar

 

Pegue as sílabas

Derreta os fonemas

Dê-lhe a forma necessária

 

Ajunte os fios

Trance (transe?) uma rede

Agrupe a rede

 

Realce os ruídos

Dê vida aos rumores

Acuse o sucesso

 

Temos por fim a narrativa

A história é a sua

Sem nenhum pertencimento

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

A ética do cuidar

 

Nossa sociedade é bombardeada por valores que destacam o individualismo, o consumismo, a insegurança. Abdicamos gradativamente desde a idade média do coletivo e estamos quase abandonando o individual, estamos nos desumanizando. Não porque sejamos maus ou perversos, mas porque somos jogados numa rotina massacrante em que praticamente os únicos gritos que ouvimos são cuide da sua vida, compre isso pra você, se satisfaça, e semelhantes...

Como se fosse possível viver isolado. Como se o bem do próximo não tivesse nada a haver com o seu bem. Como se você comprasse uma roupa bonita só pra você ver. Se for só isso, porque você não usa trancada no seu quarto porque só o que importa é a sua opinião.

Somos seres altamente gregários. Não somos independentes sem que os outros garantam a nossa independência ou a convalidem. Como já expôs Aristóteles, ninguém é independente sozinho. Que é independente sozinho, aliás, é independente de quem cara pálida!

Agora o que é incrível é que poucos de nós tomamos consciência de nossa interdependência. E dos que tem consciência disto, pequena parcela age como se soubesse. O que é mais complicado ainda. É necessário tomarmos uma profunda consciência deste fato e começarmos a agir de fato como se o outro existisse e fosse vital para nós. São os outros é que possibilitam a existência que determinamos.

Então volto à necessidade do cuidado que devemos ter uns com os outros de modo a tornar mais harmônica possível a nossa convivência e aí facilitar nossa interação na sociedade em vistas de estabelecermos quem somos e agirmos com maior efetividade. É preciso que entendamos que a sociedade é uma teia e que ao cuidar do outro estamos cuidando de nós.

A nossa vida é permeada de relações e a história é claramente dialética. Vivemos num grande sistema em que nossas ações não são impunes. Quem age bem e pensadamente colhe os melhores resultados. Ao sermos carinhosos e atenciosos com nossos pares, estamos estabilizando um sistema no qual fazemos parte e é claro nos afeta.

Outra questão é a da responsabilidade social, a da responsabilidade pelo outro. Temos que agir sempre eticamente de modo a causar o maior bem possível provocando o menor dano provável, pois estamos todos volúveis num mesmo plano de dominós. O menor balanço pode não te detonar, mas se a sua linha começar a cair se cuide.

Então, o que estou falando é que cuidar do outro não é uma questão simples de bondade, amor, fraternidade, é questão de sobrevivência. O que é preciso não é que sejamos bonzinhos, é que tenhamos consciência e sejamos responsáveis pelos nossos fracassos. Pois cada ser desiludido é parcialmente um fracasso pessoal de todos nós. A outra parte é do próprio, é claro.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Duas histórias para dois filósofos

 







    As concepções de história para Hegel e Benjamin são sob vários ângulos diametralmente opostas. Enquanto Hegel como o espírito de sua época, a moderna, apresenta uma história que apresenta uma enorme fé no progresso. Benjamin apresenta o progresso da técnica como a perda de muitos valores, como a degradação da humanidade.

    A razão garante o progresso da liberdade cujo seu máximo manifestação se encontra no Estado para Hegel. Benjamin denuncia justamente a razão, a razão técnica como causa da regressão dos valores humanos. Justamente por se ancorar na razão, Hegel mostra uma história que é dos vencedores, das ideias vencedoras, ou seja, as ideias vencedoras são justificadas por serem mais racionais, pois a história é conduzida pela astúcia da razão.

    Benjamin acredita que restringir a história à história dos vencedores não é contar a história de todos, a história da humanidade. O frankfurtiano entende que as ideias perdedoras também fazem história e que qualquer escolha é arbitrária, fazendo com que a história dos perdedores tenha no mínimo a mesma importância que a dos vencedores, pois é um recorte da mesma maneira e ainda pode ser a história da maioria, pois numericamente há mais ideias perdedoras que vencedoras. A cada situação há uma ideia vencedora que vence várias outras não necessariamente racionalmente, pois a razão nem sempre é o fator mais importante numa escolha. A desigualdade de poder, por exemplo, tem forte influência numa disputa de ideias.

    Hegel, que não era, nem poderia ser um marxista[1], assim como a maioria dos marxistas na época de Benjamin tinham um componente profético em sua teoria: os marxistas afirmavam que o sucesso do capitalismo levaria a ampliação do conflito entre proletariado e capitalistas de modo que o comunismo era inevitável; do mesmo modo o espírito condutor da história em Hegel inevitavelmente levaria ao conhecimento do espirito de si mesmo. Entretanto Hegel não falava do futuro. Ele foi o primeiro a defender que a modernidade é a última era: onde o espírito encontra a si mesmo.

    Benjamin troca esse componente profético do marxismo por um componente messiânico: os socialistas, o proletariado, todos deveriam estar preparados e vigilantes para a boa nova: o retorno aos valores importantes esquecidos do passado não como um retorno, mas como lembrança e valorização. Assim, Benjamin incentiva a luta contra a técnica e o capitalismo em vez de esperar que naturalmente o socialismo venha como a interpretação profética do marxismo provoca. Não se pode esperar um messias que venha para resolver tudo, pois este é a própria humanidade. A luta contra a razão técnica do capitalismo não é um caminho que assegura o socialismo segundo Benjamin, mas é um trajeto que pelo menos evita a catástrofe iminente causada pela técnica.



[1] Boa parte da teoria de Marx é uma contestação a Hegel.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Quem abraça tudo não abraça nada



    O interesse da política na Idade Antiga e boa parte de Idade Média se restringia aos que dela participavam e por ela se interessavam. Portanto tinha enorme importância se interessar e participar das decisões políticas, pois não se legislava pelo interesse geral, ou seja, dos que não participavam dela. Portanto em nenhuma hipótese poder-se-ia delegar poder ou esperar que suas demandas fossem atendidas sem agir. Para Aristóteles, os terrenos da ação por excelência eram a política e a ética. Hannah Arendt restringe esse terreno aristotélico à somente a política.

    Entretanto quando a política passa a se interessar por tudo e todos, desde o seu princípio na Idade Média ainda, mas que alcançou a sua onipresença apenas na Idade Moderna, passa a controlar não só o Estado ou suas leis, mas a absolutamente todos os corpos. Deste modo, toda a ação passa a ser controlável e, mais que isso, controlada. Os cidadãos perdem o seu poder de influenciar os destinos da “polis” por assim dizer.

Para a pergunta sobre o sentido da política existe uma resposta tão simples e tão concludente em si que se poderia achar outras respostas dispensáveis por completo. Tal resposta seria: o sentido da política é a liberdade. [...] Essa resposta não é, hoje, natural nem imediatamente óbvia. Isso evidencia-se porque a pergunta hoje não é simplesmente sobre o sentido da política, como antes se fazia, em essência, a partir de experiências não políticas ou até mesmo antipolíticas. [...] Por conseguinte, a pergunta é muito mais radical, muito mais agressiva, muito mais desesperada: tem a política algum sentido ainda? [...] Nessa pergunta assim formulada [...] mesclam-se dois elementos bem distintos: por um lado, a experiência das formas totalitárias de Estado nas quais toda a vida dos homens foi politizada por completo, tendo como resultado a liberdade não existir mais nelas. Visto que a partir daí, sob condições especificamente modernas, surge a pergunta se política e liberdade são compatíveis entre si, se a liberdade não começa onde cessa a política, de modo a não existir mais liberdade onde a coisa política não encontra seu fim e seu limite em parte alguma. [...] em segundo lugar, a pergunta é forçosamente em vista do monstruoso desenvolvimento das modernas possibilidades de destruição – cujo o monopólio os Estados detêm; sem esse monopólio, jamais teriam chegado a se desenvolver – e que só podem ser empregadas dentro do âmbito político. O que está em jogo aqui não é apenas a liberdade, mas sim a vida, a continuidade da existência da Humanidade e talvez da vida orgânica na Terra. A pergunta de agora torna duvidosa toda a política; faz parecer discutível nas condições modernas se a política e a conservação da vida são compatíveis entre si, e espera, sub-repticiamente que os homens tenham juízo e de alguma maneira consigam abolir a política antes de sucumbir por causa dela. [...] As duas experiências nas quais se inflama a pergunta atual sobre o sentido da política são as experiências políticas fundamentais de nossa época. Se passar ao largo delas, seria como se não tivesse vivido, em absoluto, no mundo que é nosso. Em contrapartida, ainda existe uma diferença entre elas. Contra a experiência da politização total nas formas totalitárias de Estado e o caráter duvidoso da coisa política que nela nasce está sempre o fato de, desde a Antiguidade, ninguém mais ser da opinião que o sentido da política é a liberdade; bem como o outro fato de, nos tempos modernos, tanto em termos teóricos como práticos, a coisa política ser tida como um meio para proteger o sustento da vida da sociedade e [a] produtividade do desenvolvimento social livre. Contra o questionamento da coisa política como existe na experiência totalitária, haveria um recuo para um ponto de vista anterior, falando-se em termos históricos – como se as formas de dominação totalitárias não houvessem demonstrado nada melhor, como se tivesse razão o pensamento liberal e conservador do século XIX. O desconcertante no aparecimento de uma possibilidade de destruição física absoluta dentro da coisa política é tal retirada ser nada mais nada menos do que impossível. Pois a coisa política ameaça exatamente aquilo onde, no conceito dos tempos modernos, reside o próprio direito de existência, a saber, a mera possibilidade de vida – na verdade, de toda a Humanidade. Se for verdade que a política nada mais é do que algo infelizmente necessário para a conservação da vida da Humanidade, então de fato ela mesma começou a se riscar do mapa, ou seja, seu sentido transformou-se em falta de sentido. (ARENDT, 2011, p.38, 39 e 40).

A ação, no sentido arendtidiano torna-se algo raro e precioso e a economia onipresente assim como a vida comum, que não fazia parte das origens da política. E Hannah Arendt, diz que num mundo onde a ação é menosprezada e coibida, a resposta para a resolução dos problemas da humanidade é o milagre, mas não no sentido religioso:

Se partirmos da lógica inerente a esses fatores e supusermos que nada mais do conhecido por nós determina e determinará o curso do mundo, então só podemos dizer que uma mudança para a salvação só poderá acontecer por meio de uma espécie de milagre. Para perguntar, com toda a seriedade, o que há de verdade nesse milagre para eliminar a suspeita de que uma esperança – ou contar com milagres – é pura leviandade ou frivolidade insensata, precisamos antes de mais nada esquecer o papel que o milagre sempre desempenhou na crença e na superstição, portanto, no religioso e no pseudo-religioso. Para nos libertarmos do preconceito de que o milagre é um fenômeno genuína e exclusivamente religioso, no qual algo sobrenatural e sobre-humano se intromete no desenrolar dos assuntos humanos ou no desenvolvimento natural, talvez seja conveniente rememorarmos em breves instantes que todo o marco de nossa existência real – a existência da Terra, da vida orgânica sobre ela, a existência do gênero humano – baseia-se numa espécie de milagre. Porque, sob o ponto de vista dos fenômenos universais e das probabilidades que nelas reinam e que podem ser apreendidas estatisticamente, o surgimento da Terra foi uma ‘infinita impossibilidade’. [...] Nesses exemplos, fica claro que sempre que algo de novo acontece, de maneira inesperada, incalculável e por fim inexplicável em sua causa, acontece justamente como um milagre dentro do contexto de cursos calculáveis. Em outras palavras, cada novo começo é, em sua natureza, um milagre – ou seja, sempre visto e experimentado do ponto de vista dos processos que ele interrompe necessariamente. Nesse sentido, a transcendência religiosa da crença no milagre corresponde à transcendência real e demonstrável de cada começo em relação ao contexto do processo no qual penetra. [...] Se tomarmos esse exemplo como uma metáfora para aquilo que sucede de fato no âmbito dos assuntos humanos, então ele logo começa a claudicar. Pois os processos com os quais temos que lidar aqui, são, como dizemos, de natureza histórica, ou seja, não se desenrolam na forma de desenvolvimentos naturais, mas sim como cadeias de acontecimentos em cujo encadeamento acontece aquele milagre das ‘infinitas improbabilidades’ sempre com tanta frequência que nos parece estranho falar aqui de milagre. Isso reside apenas no fato de que o processo da História surgiu por iniciativa humana e está sempre sendo rompido por novas iniciativas. Se vemos esse processo em seu puro caráter de processo – e isso acontece naturalmente em todas as filosofias históricas para as quais o processo histórico não é o resultado do agir em conjunto dos homens, mas sim do desenvolvimento e da coincidência de forças extra-humanas, sobre-humanas ou subumanas, ou seja, onde o homem é eliminado da História -, então cada novo começo, para a salvação ou a desgraça, é tão infinitamente improvável que todos os acontecimentos maiores se apresentam como milagres. [...] A diferença decisiva entre as ‘infinitas improbabilidades’ nas quais se baseia a vida terrestre-humana e o acontecimento-milagre no âmbito dos assuntos humanos é, claro, existir aqui um taumaturgo e o fato de o próprio homem ser dotado, de um modo extremamente maravilhoso e misterioso, de fazer milagre. No uso idiomático habitual e comum, nós chamamos essa aptidão de agir. É característico do agir a capacidade de desencadear processos, cujo automatismo depois parece muito semelhante ao dos processos naturais; é-lhe característico, inclusive, o poder impor de um novo começo, começar algo de novo, tomar iniciativa ou, adotando-se o estilo de Kant, começar uma cadeia espontaneamente. O milagre da liberdade está contido nesse poder-começar que, por seu lado, está contido no fato de que cada homem é em si um novo começo, uma vez que, por meio do nascimento, veio ao mundo que existia antes dele e vai continuar existindo depois dele. Essa concepção de que a liberdade é idêntica ao começar ou, falando de novo à maneira de Kant, à espontaneidade, é-nos bastante estranha porque faz parte do caráter e das características de nossas tradições do pensamento, identificar liberdade com livre-arbítrio e entender como livre-arbítrio a liberdade de escolha entre as coisas dadas – um grosso modo, entre o bem e o mal, mas não a liberdade; simplesmente querer que isso ou aquilo seja assim ou de outra maneira. Essa tradição [...] foi extraordinariamente fortalecida pela convicção espalhada desde o final da Antiguidade de a liberdade não estar no agir e na coisa política, mas somente ser possível quando o homem renuncia ao agir, quando se retira do mundo para si mesmo e evita a política. [...] Se o sentido da política é a liberdade, isso significa que nesse espaço – e em nenhum outro – temos de fato o direito de esperar milagres. Não porque fôssemos crentes em milagres, mas sim porque os homens, enquanto puderem agir, estão em condições de fazer o improvável e o incalculável e, saibam eles ou não, estão sempre fazendo. A pergunta se a política ainda tem algum sentido nos remete, justamente quando ela termina na crença em milagres – e onde mais deveria terminar senão aí – de volta forçosamente à pergunta sobre o sentido da política. (ARENDT, 2011, p.41 a 45).

domingo, 9 de fevereiro de 2025

O extraordinário e a democracia



 - As leis garantem a democracia (o Estado democrático de direito).

- As leis são uma construção da nação.

- O povo é que garante as leis (mas não é nem quem as formula, nem quem as promulga, nem quem as aplica).

- O soberano é investido de todo o poder legal (mas a soberania estende-se além das leis).

- Se tudo que for proposto estiver dentro das leis ordinárias e constitucionais, as leis não progridem e se aperfeiçoam.

- O soberano está legalmente fora da Lei (pode decretar estado de exceção)

- O progresso das instituições é feito fora da Lei (ou das leis que garantem a democracia), embora seja a mesma Lei que as legitimem.

- Esse estado de coisas de indefinição entre o legal e o extralegal permite ao soberano instaurar uma biopolítica severa.

- Deste modo, sobram dúvidas sobre as democracias contemporâneas.

Pulsão

 

Ah não é me dada a faculdade de fazer poemas belos
Nem desejo os fazer
Almejo tão somente os poemas úteis e sinceros
Que ainda hei de prover

Não escrevo porque quero
Esdrúxulo seria se fosse essa a razão
Escrevo porque preciso
Aplacar os anseios da mente e do coração

Queria escrever em tinta invisível
Pra me esconder
Mas escrevo em tinta vermelha
De minha veia que pulsa a valer

Esclarescimento

 


Foram-se os dias
Vieram só noites
Noites que caíram
Noites que esmagaram

Noites que acharam
Noites que esconderam
Noites complexas
Que não se resolviam num dia

E tudo escureceu
Em minha razão
Sobraram-me devaneios
Ilusões de noites perdidas

Mas ao chegar o dia
O dia definitivo
A luz do sol penetrou em meus poros
Como a esponja na água
A benzina no álcool

Amanhã

 Amanhã já não será mais hoje

E as culpas já serão desculpas
As mentiras, meias verdades
E a verdade, uma enganação

Trilharemos subidas descalços
Com nossos sapatos íngremes
Por entre variadas paisagens
De nossa monótona mente

E cansaremos de rir
Ao nos sentirmos secos
De desejo de banhar de cachoeira
Cobertos pela água
Cobertos pela mesma pele
Cobertos pelo mesmo calor
Que nos trai

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Em favor do mal estar na civilização

     


   A entrada da modernidade é caracterizada por três acontecimentos fundamentais: o surgimento de estados nacionais quase unificados por um despotismo (esclarecido ou não), da burguesia (que as cidades-estados modernas propiciaram) e pelo liberalismo como reação a essa centralização. O liberalismo tem como seu discurso fundamental a defesa do avanço da liberdade. Ninguém soube melhor explicar isso que Hegel esse movimento. Hegel dizia que a história é o avanço da liberdade e que na modernidade o espírito da história encontra a si mesmo. Ou seja, a luta pelo avanço da liberdade ou a dialética hegeliana.

     Hegel foi muito otimista na evolução da história: ele acreditava que o avanço da liberdade até sua fase definitiva, a modernidade, é concluída porque o mecanismo da história que é uma racionalidade encontra a si mesmo. Ou seja, se dá pelo conhecimento: um autoconhecimento, ainda mais. Esse conhecimento só é possível porque construímos uma Civilização. Pra construir uma civilização os liberais dizem que foi necessário um contrato social que dá o monopólio da coerção para o Estado. O que para Rousseau é uma desvirtuação. Para Hobbes é uma evolução.

    Entretanto essa coerção do Estado, seja juridicamente, normativamente ou policialmente não é suficiente para garantir a civilização. Por mais forte que seja ainda é muito permeável. Uma violência que garanta a civilização precisa ser internalizada para ser de certa forma onipresente. Freud a descreve em O mal estar da civilização. Somente quando os instintos e impulsos são cerceados, quando não amputados, quebrados, a sociedade coexiste.

    Quando Hegel descreve coerentemente com sua narrativa como o avanço da liberdade nos trouxe aqui ele deixa uma brecha para que pós-hegelianos pensassem no avanço da liberdade como uma trilha para a pós-modernidade. A necessidade de quebrar todos os consensos. Tornar o liberalismo evolucionista em revolucionário (o que ele já foi quando se viu no espelho).

    Essa ideia começou a questionar os próprios valores que possibilitaram a civilização. Que debilitaram o superego, a última instancia de controle dos desejos. Passaram a defender os seus desejos e impulsos de violentar os outros em contraponto á violência que a coletividade e eles próprios impõem a si mesmos. Essa luta cotidiana contra a civilização inevitavelmente nos levará a um Mad Max ou outro cenário apocalíptico. Quase ninguém quer isso. Mas o conforto momentâneo é tão mais importante que chega a ser primordial. 

    A sociedade contemporânea preferiu trocar a Democracia pela Idiocracia, regime dos idiotas. É bom lembrar que idiota, são os indivíduos regidos pelo Id. Id, segundo Freud é o que tem de mais primitivo (de original, básico, nascedouro) no ser humano: os instintos e desejos. No momento em que nossa sobrevivência se tornou a mais garantida, começamos a criar o império do prazer momentâneo. Esquecemos que ao dinamitar nossos fundamentos destruímos nosso mundo, nossa sociedade. Viveremos sem ela? Fora dela? 

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Zoé para Bios



Hoje vivemos um período no qual a democracia poderia estar mais consolidada do que em qualquer outro momento da história. A globalização, ou internacionalização econômica, propiciou uma possibilidade de comunicação e entendimento que até então nunca tinha sido tão provável. Não existe mais uma ameaça política à existência humana na Terra como durante a Guerra Fria. Os conflitos étnicos, ainda existentes e numerosos, estão muito mais controlados do que estiveram no passado. Parece que a racionalidade ocidental se tornou uma espécie de linguagem universal na qual todos os atores puderam se entender.

Essa mesma lógica econômica é, entretanto, a causadora do estado de exceção que, ao tomar iniciativas em defesa da democracia, acaba fragilizando-a. Resultado: enfraquece a independência de poderes, sobretudo o poder legislativo porque passa a dar poder legal ao que não é lei; transforma o poder em iniciativa. Agir é o que a política, no mínimo, deveria proporcionar; ao se transformar em uma discussão do direito, cujas leis continuem válidas, ela não tem mais eficácia jurídica, esvaziando, assim, a possibilidade de mudança. Enfim, consegue tudo o que uma economia deseja: liberdade comercial e estabilidade.

A democracia, que inicialmente salvaguardava apenas os que delas se utilizavam – ou seja, os que agiam na pólis (política)–, passou a se referir a todos até mesmo àqueles que não se interessavam por ela, àqueles que não tinham poder pra agir, ou àqueles cujo poder lhes havia sido retirado. O terreno da vida (privado) e o terreno da política (público) passaram a não mais se diferenciar e, assim, a vida invadiu a política. Em face disso, é importante mostrar como os fundamentos das teorias tradicionais da democracia se tornaram meramente formais como as leis –quando existem – no estado exceção. Entretanto, sua aplicação é suspensa.

Quanto mais a democracia se ampliou, o que é um princípio democrático moderno de atingir a todos, mais se transformou em uma democracia para ninguém. A intenção da pluralidade acabou redundando na impessoalidade, pois serve à mesma lógica da racionalidade técnica que se importa tão somente com o produto, enquanto, no processo, só se atenta para a produtividade, para eficiência e para os valores relacionados ao fim e não ao meio. Desde que se chegue aos resultados esperados, não importa quem participa, nem se a ação vai melhorar ou piorar a vida do indivíduo, tanto faz ser ele uma máquina, um protocolo.

A política, desse modo, se desvinculou da ação como mudança de um cenário e passou a ser sua administração, como se a teoria funcionalista tivesse vencido e tudo fosse um corpo para o qual o único interesse é a manutenção da sua saúde. Assim, o que possivelmente atrapalha a saúde do corpo deve ser afastado, e sua ação cerceada. Deve ser expulso do bando para não contaminar o resto do corpo; deve morrer (não necessariamente de morte física) sem ser julgado ou sacrificado.

Esse caminho em que a democratização da democracia redundou num jogo perverso em que todos estão submetidos à dominação de uma lógica impessoal é o que tentaremos demonstrar neste trabalho, sobretudo a ideia de que a defesa da democracia dos perigos externos se transformou no pior algoz da democracia.

domingo, 2 de fevereiro de 2025

Como poderia dizer posteriormente - exercício de desconto ou reconto

     

    Como poderia dizer posteriormente, nosso personagem ao iniciar esse relato estava indefinido. O autor pouco sabia de sua personalidade e pouco saberá após infindáveis linhas. Este se caracterizava por uma ligeireza de princípios. Uma brevidade de caráter. Nacionalista ufânico durante período ditatorial decidiu mudar-se para o exterior para se esvair do apego à pátria que o sufocava.

    Calçava sempre ele o pé esquerdo. Depois o direito. Benzia-se sempre ao acordar após o cochilo da tarde: três sinais da cruz. Acordava do sofá puído da sala com a impressão de que o tinham sacaneado. Batia em seu peito sempre a velha impressão de que haviam posto nele um marca-passo.

    Ao levantar, se debruçava em sutilezas como observar em que página haviam imprimido seu comentário sobre a Escola de Frankfurt ou seu breviário sócio-econômico sobre as relações entre Macau e Timor Leste. Quase sempre notava que o fora em página par. Xingava as várias gerações de Geraldo, o diagramador-chefe. Aquele disgramador-mor, pensava ele. Então tomava seu chá calmamente especulando em notar os mínimos detalhes das bolachas e biscoitos que dona Rosalinda sempre deixava pela mesa.

    Após responder a inúmeros rapapés, de certa forma tinha se acostumado com a burocracia que era ir de sua casa até a redação na outra esquina, lá estava ele a cutucar e provocar os mais incautos com seu espírito maledicente. Teria sido um fofoqueiro não fosse o excesso de jornalistas naquela redação. Sua mãe, finada Maricotinha, sempre havia dito que ele nasceu pra ser enxerido. Acabou sendo ombudsman, a opção mais inadequada, pensava.

    Ia ao jornal. Passeava por seu parque gráfico e voltava para casa esperando as calamidades do dia seguinte. Tinha sido recontratado há seis meses. Não passava um dia sem que algum novato o ameaçasse ou o agredisse física ou moralmente. A cada dia se tornava mais intolerante. Era uma bomba sem pavio. Bastava alguém se referir à Buenos Aires como Paris Sul-americana para ele redigir uma nota ao jornalista, um memorando à redação e, é claro, em seu espaço uma recomendação ao jornalista de voltar ao MOBRAL e introduzia ainda uma queixa de seu fim.

    Dizia ele: o MOBRAL foi feito para jornalistas. Poucos arriscavam trocar uma ou duas palavras com ele. Tinha fama de ser mais arisco que delegada do ministério do trabalho. Dizem que morreria de inanição se tivesse que pedir algo a alguém. Isso é que não fazia mesmo. Volta e meia levava esporros do chefe por estar comendo seus charutos. Dona Dondinha, a mulher do chefe e que era a segunda, por isso alguns a chamavam de Redondinha, não por seu físico curvilíneo do qual não se poderia tirar arestas ou sobras, estava tudo ali, trazia sempre ao meio-dia chucrute de couve e charutos de repolho com carne de carneiro.

    Era assim sua rotina. Em casa elaborava um artigo mirabolante sobre algum assunto hermético em que aproveitava pra alfinetar os colegas de redação, sobretudo quem havia escorregado na edição anterior. Exercia sem que lhe tivessem atribuído à função, a clara observância e a correção segundo seus próprios critérios do que deveriam ser textos jornalísticos.

    E sem que houvesse qualquer resistência, um excelente linotipista aposentado pagava pito a todos os pobres coitados que conviviam com aquele concentrado exemplar de sarcasmo e ironia. Os funcionários mais antigos nem mais se importavam com aquela figura dantesca. Já há muito sabiam que era apenas um estopim, uma bomba que explodia e depois voltava ao marasmo. Daí por que era conhecido como Tonho Traque.

    Sem dúvida foi uma figura muito importante. Um questionador da normalidade. A crítica em pessoa. Um grande criador de caso. Um cara que em vez de criar a polemica fora, a trazia pra dentro do jornal. Um cara que só não foi mais importante porque alguma caneta afiada achou seu peito. E hoje seu jornal enfarta sem o marca-passo que mantinha o coração do jornal vivo e vibrante.

    Morreu Antonio José João da Silva de causa ignorada que possa ter ocasionado um pequeno furo em seu peito sem deixar vestígio a não ser uma ponta estereográfica. Morreu o último jornal vivo deste pequeno país. Morre a inconsciência dos loucos que ainda bradavam contra os desvarios uniformes da mídia. Hiberna a esperança até que os hospícios já desativados, as escolas de loucos possam criar mais um.

Fica assim o mortuário de meu mestre e amigo Tonhão.

Um dândi

 

Sentia-se poderoso
Mesmo sendo imberbe mendigo
Pois tinha por precioso
A conveniência como abrigo

Vivia como que valsando
De sonhos sonhados
A sonhos perdidos
E pedra a pedra somando
Os desafios havidos

Andava como um deslumbrado
Por entre desfiladeiros cortantes
Por pedras que havia cruzado
Seus cortes eram diamantes

Sangrava como quem sangra de dentro
Lambia suas cicatrizes
Da vida se fazia o centro
Esquecendo as próprias raízes

E se ontem sabia quem era
Hoje não se importava
Pois se era homem e fera
Nada lhe assombrava

sábado, 1 de fevereiro de 2025

O fim da Política

    


As pessoas tendem a entender a política como a atividade dos políticos profissionais e participação como sufrágio eleitoral como eleição. Nós preferimos delegar a representantes o direito de escolher por nós os nossos próprios destinos e de nossas sociedades. Quase sempre nos limitando a julgar se votamos bem ou mal e quase nunca julgamos as discussões ou decisões em si.

    A ideia da política como ação, atuação dos homens presente em filósofos como Aristóteles e resgatada por filósofos como Karl Marx ou Hannah Arendt, embora sejam críticos do primeiro, parece uma ideia esquecida, presente apenas algumas vezes no domínio da teoria. A ideia de que são os homens que fazem a história que domina todas as ciências sociais atualmente e é amplamente aceita sem questionamento até mesmo pela maior parte das correntes filosóficas atuais, até porque seria um anacronismo negá-la, parece não ter nenhuma utilidade prática, pois os homens se negam a agir.

    Se pudermos dividir a política em a Política com “P” maiúsculo como Aristóteles chama aquela que se refere às ações na polis e política com “p” minúsculo aquela que se refere à forma de governo, a maneira de governar, ao formalismo em si, podemos dizer que desde a modernidade, ou talvez a idade média, a Política com “P” maiúsculo perde a importância e sobra somente a política com “p” minúsculo, as ciências políticas, um enorme rebuscamento tanto formal quanto jurídico para dificultar o acesso e a participação das pessoas na política.

    A própria ideia da política representativa e seus mecanismos parecem determinados a fazer com que o individuo se afaste da política. Segundo a filósofa contemporânea Hannah Arendt, o começo do desinteresse por política iniciou na Idade Média ou no Feudalismo quando o clero, ou melhor, a própria Igreja se “sacrificou pelos irmãos” ao assumir a política para que cada um cuidasse de sua própria subsistência, ou seja, da economia. Esse conceito atravessou a modernidade e chegou a nós contemporâneos, mas não parece explicar a apatia política existente. Até porque as próprias questões da sobrevivência só podem ser resolvidas pela política ou garantidas por esta.

    Quando a política deixa de ser atividade dos cidadãos, por poucos que sejam, para ser uma concessão de poder, o objetivo da política deixa de ser resolver os problemas da cidade ou do mundo ou solucionar as demandas de seus cidadãos para se tornar tão somente uma busca de poder. O que ocasiona um grave problema, pois a resolução dos problemas se torna tão somente, quando acontece, como mecanismo para ascender ao poder ou se manter lá, ou ainda como mecanismo para anestesiar as massas.

    Obviamente os problemas do ocaso da Política não resolveriam simplesmente pela revalorização da política, pois a revalorização da política simplesmente anestesiaria a população dos males da falta da Política, mas a retomada das ações dos homens poderia ser justamente um passo fundamental para essa mudança. É uma suposição razoável, mas ainda resta o problema da apatia política, pois sem a resolução desta não resolvemos nem o problema da política, nem o da Política.

 

O medo do medo: aonde vai nos levar?

 

Estamos na era do medo. Tomamos remédios porque não suportamos a infelicidade. Não me refiro aos deprimidos, porque depressão é uma doença séria e perigosíssima e sempre leva à perda da vida (ou de parte dela) quase sempre sem levar à morte física. Mas muitos além destes diariamente se automedicam tomando suas pílulas da felicidade. Não suportamos a dor mais. Creio que teremos muito menos poetas, menos pintores. Não precisamos mais das artes para alienar, aliviar a dor. Temos pílulas milagrosas. Nada contra elas. São um bem para a humanidade. Mas não deveríamos fugir de sermos humanos, mesmo que o humanismo em si tenha terminado no século XIX.

O ser humano para o ser (dasein) em sua completitude necessita ser completo. Existir de fato no mundo e sentir o que está a nossa volta. Ninguém pode te ensinar que as rosas machucam se exibir as rosas de floricultura com os acúleos cortados. É preciso levar os alunos ao jardim. Ser peripatético, andar pelo mundo, mesmo que entre aspas, para sentir o ambiente.

Ninguém pode sentir um alívio sem uma apreensão, dor anterior. Ninguém pode estará exultante por livrar seu dedo mínimo se ele não estiver antes debaixo de uma pedra ou prensa. É notável a metáfora da ostra e da pérola que diz que é preciso a dor, o incomodo para a ostra produzir a pérola. Traduz todo o processo de criação seja poética, seja filosófica, seja ação (Política) no sentido de Hannah Arendt ou Aristóteles.

Incomoda-me essa ideia de viver sem dores, ou seja, não viver. Porque tocar o chão descalço, sem anteparo é ser ferido pelas rochas, pelo piso, pela invasão da areia... Sem a dor, o incômodo, não somos nada!

O sabiá sabia assobiar

  Assim cantou o sabiá Como sempre Sabia assobiar Com a melodia assombrar E o ritmo encadear O sol sobe e a lua baixa As estrela...