Notavelmente
havia passado a fase de mais alta indigência e agora distribuía indulgências,
não porque o seu deus havia determinado, mas porque era parte de seu
livre-arbítrio. Caminhava estradas sem volta em direção a lugar nenhum que
conhecesse. Tropeçava em afiadas pedras que lhe dilaceravam a carne e deixava
parte de si pelo caminho como indícios de sua indubitável existência.
E assim era
feliz não de uma risada larga, mas de uma incompletude notavelmente instável.
Devorava a tudo e a todos que encontrava pelo caminho em sua mente compulsória,
como se saber fosse uma febre. Lia, relia, desvirtuava o cotidiano ao deixar
suas marcas onde não poderiam ter estado. Vivia em estado de letargia. Dos
poucos que conheceram garantem que este morreu de indigestão literária.
A melhor coisa
que existe na vida é não esperar nada. Quem se ilude, fatalmente será um
desiludido. Já dizia o príncipe Sidarta Gautama, só é possível alcançar a
absoluta paz (Nirvana) quem consegue abolir de si todos os desejos. “Os desejos
são a fonte da dor”, dizia ele. Mas esse descolamento do mundo não pode ocorrer
de maneira cínica. Se bem que Cínicos, como Diógenes o fizeram muito bem, foram
profundamente éticos, mas não pretendiam encontrar a paz, apenas se desligar do
mundo contingente.
Para viver em
qualquer mundo é preciso humildade. Uma difícil honestidade de se mostrar
fraco, incompleto por mais que se saiba saber. Saber que nenhum conhecimento
pode conduzir direto à sabedoria. Que nenhuma sabedoria é absoluta. Que nessa
vida, a questão de mestre e discípulo é mera contingencia temporária. Que
ninguém aprende sem ensinar, como ninguém ensina sem aprender. Que os antônimos
neste mundo são muito mais próximos que os sinônimos. Que os radicais tem sua
importância, mas a história não os respeita. Transforma suas palavras derivadas
em significâncias completamente diversas.
A hipocrisia e
a leviandade são os mais importantes valores do mundo. São absolutamente
cômodos. Propiciam com que as pessoas se defendam e se acusem sem o menor
esforço. A hipocrisia possibilita que as pessoas acusem as pessoas de seus
próprios erros. A leviandade, que se acusem sem a menor preocupação de provar a
realidade do que afirmam. Uma maravilha, sobretudo para quem, pretensamente,
dispõe de alguma autoridade.
Para alcançar
a paz, como eu disse, é preciso um autoconhecimento enorme para conhecer suas
aflições, seus desejos mais íntimos e ao mesmo tempo conhecer suas origens para
erradicá-las. As pessoas, muito ligadas à hipocrisia e à leviandade, não podem
percorrer este caminho. Estão profundamente condenadas ao ciclo do
desejo-ilusão-desilusão, um caminho de dor sem volta. Sem nenhuma gratificação,
a não ser a manutenção de suas ilusões, fontes de toda a sua dor. Fazer o que
se tem seres que nunca aprendem.
Nunca leram o
evangelho de Mateus que afirma “não julguem e vocês não serão julgados. De
fato, vocês serão julgados com o mesmo julgamento com que vocês julgarem, e
serão medidos com a mesma medida com que vocês medirem” (Mateus 7,1-2). Uma
regra tão simples como o provérbio que diz que quem tem telhado de vidro não
deve jogar pedra. Sobretudo, se o telhado em questão não for de vidro mesmo.
Mas como já afirmou o mais sábio dos homens à beira de sua morte; “Pai,
perdoa-lhes! Eles não sabem o que estão fazendo!” (Lucas 23,34).
Deste modo
fica muito fácil explicar porque a Política após a Idade Antiga foi cada vez
mais se desvencilhando da Ética. Essa transformou num enorme penduricalho sem
função alguma, senão atrasar as conquistas da política no momento que os homens
foram se tornando cada vez mais pragmáticos e perceberam que não importam os
princípios, apenas os fins desejados. Assim a veleidade e leviandade tomaram
seu assento no centro do mundo, centro este que depois da modernidade se tornou
o homem, hoje o que restou dele.
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