Hoje
vivemos um período no qual a democracia poderia estar mais consolidada do que
em qualquer outro momento da história. A globalização, ou internacionalização
econômica, propiciou uma possibilidade de comunicação e entendimento que até
então nunca tinha sido tão provável. Não existe mais uma ameaça política à
existência humana na Terra como durante a Guerra Fria. Os conflitos étnicos,
ainda existentes e numerosos, estão muito mais controlados do que estiveram no
passado. Parece que a racionalidade ocidental se tornou uma espécie de
linguagem universal na qual todos os atores puderam se entender.
Essa
mesma lógica econômica é, entretanto, a causadora do estado de exceção que, ao
tomar iniciativas em defesa da democracia, acaba fragilizando-a. Resultado: enfraquece
a independência de poderes, sobretudo o poder legislativo porque passa a dar
poder legal ao que não é lei; transforma o poder em iniciativa. Agir é o que a
política, no mínimo, deveria proporcionar; ao se transformar em uma discussão
do direito, cujas leis continuem válidas, ela não tem mais eficácia jurídica,
esvaziando, assim, a possibilidade de mudança. Enfim, consegue tudo o que uma
economia deseja: liberdade comercial e estabilidade.
A
democracia, que inicialmente salvaguardava apenas os que delas se utilizavam –
ou seja, os que agiam na pólis (política)–, passou a se referir a todos até mesmo
àqueles que não se interessavam por ela, àqueles que não tinham poder pra agir,
ou àqueles cujo poder lhes havia sido retirado. O terreno da vida (privado) e o
terreno da política (público) passaram a não mais se diferenciar e, assim, a
vida invadiu a política. Em face disso, é importante mostrar como os
fundamentos das teorias tradicionais da democracia se tornaram meramente
formais como as leis –quando existem – no estado exceção. Entretanto, sua
aplicação é suspensa.
Quanto
mais a democracia se ampliou, o que é um princípio democrático moderno de
atingir a todos, mais se transformou em uma democracia para ninguém. A intenção
da pluralidade acabou redundando na impessoalidade, pois serve à mesma lógica
da racionalidade técnica que se importa tão somente com o produto, enquanto, no
processo, só se atenta para a produtividade, para eficiência e para os valores
relacionados ao fim e não ao meio. Desde que se chegue aos resultados
esperados, não importa quem participa, nem se a ação vai melhorar ou piorar a
vida do indivíduo, tanto faz ser ele uma máquina, um protocolo.
A
política, desse modo, se desvinculou da ação como mudança de um cenário e
passou a ser sua administração, como se a teoria funcionalista tivesse vencido
e tudo fosse um corpo para o qual o único interesse é a manutenção da sua
saúde. Assim, o que possivelmente atrapalha a saúde do corpo deve ser afastado,
e sua ação cerceada. Deve ser expulso do bando para não contaminar o resto do
corpo; deve morrer (não necessariamente de morte física) sem ser julgado ou
sacrificado.
Esse
caminho em que a democratização da democracia redundou num jogo perverso em que
todos estão submetidos à dominação de uma lógica impessoal é o que tentaremos
demonstrar neste trabalho, sobretudo a ideia de que a defesa da democracia dos
perigos externos se transformou no pior algoz da democracia.
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