O interesse da política na Idade
Antiga e boa parte de Idade Média se restringia aos que dela participavam e por
ela se interessavam. Portanto tinha enorme importância se interessar e
participar das decisões políticas, pois não se legislava pelo interesse geral,
ou seja, dos que não participavam dela. Portanto em nenhuma hipótese
poder-se-ia delegar poder ou esperar que suas demandas fossem atendidas sem
agir. Para Aristóteles, os terrenos da ação por excelência eram a política e a
ética. Hannah Arendt restringe esse terreno aristotélico à somente a política.
Entretanto quando a política
passa a se interessar por tudo e todos, desde o seu princípio na Idade Média
ainda, mas que alcançou a sua onipresença apenas na Idade Moderna, passa a
controlar não só o Estado ou suas leis, mas a absolutamente todos os corpos.
Deste modo, toda a ação passa a ser controlável e, mais que isso, controlada.
Os cidadãos perdem o seu poder de influenciar os destinos da “polis” por assim
dizer.
Para a pergunta sobre o sentido da política
existe uma resposta tão simples e tão concludente em si que se poderia achar
outras respostas dispensáveis por completo. Tal resposta seria: o sentido da
política é a liberdade. [...] Essa resposta não é, hoje, natural nem
imediatamente óbvia. Isso evidencia-se porque a pergunta hoje não é
simplesmente sobre o sentido da política, como antes se fazia, em essência, a
partir de experiências não políticas ou até mesmo antipolíticas. [...] Por
conseguinte, a pergunta é muito mais radical, muito mais agressiva, muito mais
desesperada: tem a política algum sentido ainda? [...] Nessa pergunta assim
formulada [...] mesclam-se dois elementos bem distintos: por um lado, a
experiência das formas totalitárias de Estado nas quais toda a vida dos homens
foi politizada por completo, tendo como resultado a liberdade não existir mais
nelas. Visto que a partir daí, sob condições especificamente modernas, surge a
pergunta se política e liberdade são compatíveis entre si, se a liberdade não
começa onde cessa a política, de modo a não existir mais liberdade onde a coisa
política não encontra seu fim e seu limite em parte alguma. [...] em segundo
lugar, a pergunta é forçosamente em vista do monstruoso desenvolvimento das
modernas possibilidades de destruição – cujo o monopólio os Estados detêm; sem
esse monopólio, jamais teriam chegado a se desenvolver – e que só podem ser
empregadas dentro do âmbito político. O que está em jogo aqui não é apenas a
liberdade, mas sim a vida, a continuidade da existência da Humanidade e talvez
da vida orgânica na Terra. A pergunta de agora torna duvidosa toda a política;
faz parecer discutível nas condições modernas se a política e a conservação da
vida são compatíveis entre si, e espera, sub-repticiamente que os homens tenham
juízo e de alguma maneira consigam abolir a política antes de sucumbir por
causa dela. [...] As duas experiências nas quais se inflama a pergunta atual
sobre o sentido da política são as experiências políticas fundamentais de nossa
época. Se passar ao largo delas, seria como se não tivesse vivido, em absoluto,
no mundo que é nosso. Em contrapartida, ainda existe uma diferença entre elas.
Contra a experiência da politização total nas formas totalitárias de Estado e o
caráter duvidoso da coisa política que nela nasce está sempre o fato de, desde
a Antiguidade, ninguém mais ser da opinião que o sentido da política é a
liberdade; bem como o outro fato de, nos tempos modernos, tanto em termos teóricos como práticos, a coisa
política ser tida como um meio para proteger o sustento da vida da sociedade e
[a] produtividade do desenvolvimento social livre. Contra o
questionamento da coisa política como existe na experiência totalitária,
haveria um recuo para um ponto de vista anterior, falando-se em termos
históricos – como se as formas de dominação totalitárias não houvessem
demonstrado nada melhor, como se tivesse razão o pensamento liberal e
conservador do século XIX. O desconcertante no aparecimento de uma
possibilidade de destruição física absoluta dentro da coisa política é tal
retirada ser nada mais nada menos do que impossível. Pois a coisa política
ameaça exatamente aquilo onde, no conceito dos tempos modernos, reside o
próprio direito de existência, a saber, a mera possibilidade de vida – na
verdade, de toda a Humanidade. Se for verdade que a política nada mais é do que algo infelizmente
necessário para a conservação da vida da Humanidade, então de fato ela mesma
começou a se riscar do mapa, ou seja, seu sentido transformou-se em falta de
sentido. (ARENDT, 2011, p.38, 39 e 40).
A ação, no sentido arendtidiano
torna-se algo raro e precioso e a economia onipresente assim como a vida comum,
que não fazia parte das origens da política. E Hannah Arendt, diz que num mundo
onde a ação é menosprezada e coibida, a resposta para a resolução dos problemas
da humanidade é o milagre, mas não no sentido religioso:
Se partirmos da lógica inerente a esses fatores e
supusermos que nada mais do conhecido por nós determina e determinará o curso
do mundo, então só podemos dizer que uma mudança para a salvação só poderá
acontecer por meio de uma espécie de milagre. Para perguntar, com toda a
seriedade, o que há de verdade nesse milagre para eliminar a suspeita de que
uma esperança – ou contar com milagres – é pura leviandade ou frivolidade
insensata, precisamos antes de mais nada esquecer o papel que o milagre sempre
desempenhou na crença e na superstição, portanto, no religioso e no
pseudo-religioso. Para nos libertarmos do preconceito de que o milagre é um
fenômeno genuína e exclusivamente religioso, no qual algo sobrenatural e
sobre-humano se intromete no desenrolar dos assuntos humanos ou no
desenvolvimento natural, talvez seja conveniente rememorarmos em breves
instantes que todo o marco de nossa existência real – a existência da Terra, da
vida orgânica sobre ela, a existência do gênero humano – baseia-se numa espécie
de milagre. Porque, sob o ponto de vista dos fenômenos universais e das
probabilidades que nelas reinam e que podem ser apreendidas estatisticamente, o
surgimento da Terra foi uma ‘infinita impossibilidade’. [...] Nesses exemplos,
fica claro que sempre que algo de novo acontece, de maneira inesperada,
incalculável e por fim inexplicável em sua causa, acontece justamente como um
milagre dentro do contexto de cursos calculáveis. Em outras palavras, cada novo
começo é, em sua natureza, um milagre – ou seja, sempre visto e experimentado
do ponto de vista dos processos que ele interrompe necessariamente. Nesse
sentido, a transcendência religiosa da crença no milagre corresponde à
transcendência real e demonstrável de cada começo em relação ao contexto do
processo no qual penetra. [...] Se tomarmos esse exemplo como uma metáfora para
aquilo que sucede de fato no âmbito dos assuntos humanos, então ele logo começa
a claudicar. Pois os processos com os quais temos que lidar aqui, são, como
dizemos, de natureza histórica, ou seja, não se desenrolam na forma de
desenvolvimentos naturais, mas sim como cadeias de acontecimentos em cujo
encadeamento acontece aquele milagre das ‘infinitas improbabilidades’ sempre
com tanta frequência que nos parece estranho falar aqui de milagre. Isso reside
apenas no fato de que o processo da História surgiu por iniciativa humana e
está sempre sendo rompido por novas iniciativas. Se vemos esse processo em seu
puro caráter de processo – e isso acontece naturalmente em todas as filosofias
históricas para as quais o processo histórico não é o resultado do agir em
conjunto dos homens, mas sim do desenvolvimento e da coincidência de forças
extra-humanas, sobre-humanas ou subumanas, ou seja, onde o homem é eliminado da
História -, então cada novo começo, para a salvação ou a desgraça, é tão
infinitamente improvável que todos os acontecimentos maiores se apresentam como
milagres. [...] A diferença decisiva entre as ‘infinitas improbabilidades’ nas
quais se baseia a vida terrestre-humana e o acontecimento-milagre no âmbito dos
assuntos humanos é, claro, existir aqui um taumaturgo e o fato de o próprio
homem ser dotado, de um modo extremamente maravilhoso e misterioso, de fazer
milagre. No uso idiomático habitual e comum, nós chamamos essa aptidão de agir.
É característico do agir a capacidade de desencadear processos, cujo
automatismo depois parece muito semelhante ao dos processos naturais; é-lhe
característico, inclusive, o poder impor de um novo começo, começar algo de
novo, tomar iniciativa ou, adotando-se o estilo de Kant, começar uma cadeia
espontaneamente. O milagre da liberdade está contido nesse poder-começar que,
por seu lado, está contido no fato de que cada homem é em si um novo começo,
uma vez que, por meio do nascimento, veio ao mundo que existia antes dele e vai
continuar existindo depois dele. Essa concepção de que a liberdade é idêntica
ao começar ou, falando de novo à maneira de Kant, à espontaneidade, é-nos
bastante estranha porque faz parte do caráter e das características de nossas tradições
do pensamento, identificar liberdade com livre-arbítrio e entender como
livre-arbítrio a liberdade de escolha entre as coisas dadas – um grosso modo,
entre o bem e o mal, mas não a liberdade; simplesmente querer que isso ou
aquilo seja assim ou de outra maneira. Essa tradição [...] foi
extraordinariamente fortalecida pela convicção espalhada desde o final da
Antiguidade de a liberdade não estar no agir e na coisa política, mas somente
ser possível quando o homem renuncia ao agir, quando se retira do mundo para si
mesmo e evita a política. [...] Se o sentido da política é a liberdade, isso
significa que nesse espaço – e em nenhum outro – temos de fato o direito de
esperar milagres. Não porque fôssemos crentes em milagres, mas sim porque os
homens, enquanto puderem agir, estão em condições de fazer o improvável e o
incalculável e, saibam eles ou não, estão sempre fazendo. A pergunta se a
política ainda tem algum sentido nos remete, justamente quando ela termina na
crença em milagres – e onde mais deveria terminar senão aí – de volta
forçosamente à pergunta sobre o sentido da política. (ARENDT, 2011, p.41 a 45).
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