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domingo, 2 de fevereiro de 2025

Como poderia dizer posteriormente - exercício de desconto ou reconto

     

    Como poderia dizer posteriormente, nosso personagem ao iniciar esse relato estava indefinido. O autor pouco sabia de sua personalidade e pouco saberá após infindáveis linhas. Este se caracterizava por uma ligeireza de princípios. Uma brevidade de caráter. Nacionalista ufânico durante período ditatorial decidiu mudar-se para o exterior para se esvair do apego à pátria que o sufocava.

    Calçava sempre ele o pé esquerdo. Depois o direito. Benzia-se sempre ao acordar após o cochilo da tarde: três sinais da cruz. Acordava do sofá puído da sala com a impressão de que o tinham sacaneado. Batia em seu peito sempre a velha impressão de que haviam posto nele um marca-passo.

    Ao levantar, se debruçava em sutilezas como observar em que página haviam imprimido seu comentário sobre a Escola de Frankfurt ou seu breviário sócio-econômico sobre as relações entre Macau e Timor Leste. Quase sempre notava que o fora em página par. Xingava as várias gerações de Geraldo, o diagramador-chefe. Aquele disgramador-mor, pensava ele. Então tomava seu chá calmamente especulando em notar os mínimos detalhes das bolachas e biscoitos que dona Rosalinda sempre deixava pela mesa.

    Após responder a inúmeros rapapés, de certa forma tinha se acostumado com a burocracia que era ir de sua casa até a redação na outra esquina, lá estava ele a cutucar e provocar os mais incautos com seu espírito maledicente. Teria sido um fofoqueiro não fosse o excesso de jornalistas naquela redação. Sua mãe, finada Maricotinha, sempre havia dito que ele nasceu pra ser enxerido. Acabou sendo ombudsman, a opção mais inadequada, pensava.

    Ia ao jornal. Passeava por seu parque gráfico e voltava para casa esperando as calamidades do dia seguinte. Tinha sido recontratado há seis meses. Não passava um dia sem que algum novato o ameaçasse ou o agredisse física ou moralmente. A cada dia se tornava mais intolerante. Era uma bomba sem pavio. Bastava alguém se referir à Buenos Aires como Paris Sul-americana para ele redigir uma nota ao jornalista, um memorando à redação e, é claro, em seu espaço uma recomendação ao jornalista de voltar ao MOBRAL e introduzia ainda uma queixa de seu fim.

    Dizia ele: o MOBRAL foi feito para jornalistas. Poucos arriscavam trocar uma ou duas palavras com ele. Tinha fama de ser mais arisco que delegada do ministério do trabalho. Dizem que morreria de inanição se tivesse que pedir algo a alguém. Isso é que não fazia mesmo. Volta e meia levava esporros do chefe por estar comendo seus charutos. Dona Dondinha, a mulher do chefe e que era a segunda, por isso alguns a chamavam de Redondinha, não por seu físico curvilíneo do qual não se poderia tirar arestas ou sobras, estava tudo ali, trazia sempre ao meio-dia chucrute de couve e charutos de repolho com carne de carneiro.

    Era assim sua rotina. Em casa elaborava um artigo mirabolante sobre algum assunto hermético em que aproveitava pra alfinetar os colegas de redação, sobretudo quem havia escorregado na edição anterior. Exercia sem que lhe tivessem atribuído à função, a clara observância e a correção segundo seus próprios critérios do que deveriam ser textos jornalísticos.

    E sem que houvesse qualquer resistência, um excelente linotipista aposentado pagava pito a todos os pobres coitados que conviviam com aquele concentrado exemplar de sarcasmo e ironia. Os funcionários mais antigos nem mais se importavam com aquela figura dantesca. Já há muito sabiam que era apenas um estopim, uma bomba que explodia e depois voltava ao marasmo. Daí por que era conhecido como Tonho Traque.

    Sem dúvida foi uma figura muito importante. Um questionador da normalidade. A crítica em pessoa. Um grande criador de caso. Um cara que em vez de criar a polemica fora, a trazia pra dentro do jornal. Um cara que só não foi mais importante porque alguma caneta afiada achou seu peito. E hoje seu jornal enfarta sem o marca-passo que mantinha o coração do jornal vivo e vibrante.

    Morreu Antonio José João da Silva de causa ignorada que possa ter ocasionado um pequeno furo em seu peito sem deixar vestígio a não ser uma ponta estereográfica. Morreu o último jornal vivo deste pequeno país. Morre a inconsciência dos loucos que ainda bradavam contra os desvarios uniformes da mídia. Hiberna a esperança até que os hospícios já desativados, as escolas de loucos possam criar mais um.

Fica assim o mortuário de meu mestre e amigo Tonhão.

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