Como poderia dizer
posteriormente, nosso personagem ao iniciar esse relato estava indefinido. O
autor pouco sabia de sua personalidade e pouco saberá após infindáveis linhas.
Este se caracterizava por uma ligeireza de princípios. Uma brevidade de caráter.
Nacionalista ufânico durante período ditatorial decidiu mudar-se para o
exterior para se esvair do apego à pátria que o sufocava.
Calçava sempre
ele o pé esquerdo. Depois o direito. Benzia-se sempre ao acordar após o cochilo
da tarde: três sinais da cruz. Acordava do sofá puído da sala com a impressão
de que o tinham sacaneado. Batia em seu peito sempre a velha impressão de que
haviam posto nele um marca-passo.
Ao levantar,
se debruçava em sutilezas como observar em que página haviam imprimido seu
comentário sobre a Escola de Frankfurt ou seu breviário sócio-econômico sobre
as relações entre Macau e Timor Leste. Quase sempre notava que o fora em página
par. Xingava as várias gerações de Geraldo, o diagramador-chefe. Aquele
disgramador-mor, pensava ele. Então tomava seu chá calmamente especulando em
notar os mínimos detalhes das bolachas e biscoitos que dona Rosalinda sempre
deixava pela mesa.
Após responder
a inúmeros rapapés, de certa forma tinha se acostumado com a burocracia que era
ir de sua casa até a redação na outra esquina, lá estava ele a cutucar e
provocar os mais incautos com seu espírito maledicente. Teria sido um
fofoqueiro não fosse o excesso de jornalistas naquela redação. Sua mãe, finada
Maricotinha, sempre havia dito que ele nasceu pra ser enxerido. Acabou sendo
ombudsman, a opção mais inadequada, pensava.
Ia ao jornal.
Passeava por seu parque gráfico e voltava para casa esperando as calamidades do
dia seguinte. Tinha sido recontratado há seis meses. Não passava um
dia sem que algum novato o ameaçasse ou o agredisse física ou moralmente. A
cada dia se tornava mais intolerante. Era uma bomba sem pavio. Bastava alguém
se referir à Buenos Aires como Paris Sul-americana para ele redigir uma nota ao
jornalista, um memorando à redação e, é claro, em seu espaço uma recomendação
ao jornalista de voltar ao MOBRAL e introduzia ainda uma queixa de seu fim.
Dizia ele: o
MOBRAL foi feito para jornalistas. Poucos arriscavam trocar uma ou duas
palavras com ele. Tinha fama de ser mais arisco que delegada do ministério do
trabalho. Dizem que morreria de inanição se tivesse que pedir algo a alguém.
Isso é que não fazia mesmo. Volta e meia levava esporros do chefe por estar
comendo seus charutos. Dona Dondinha, a mulher do chefe e que era a segunda,
por isso alguns a chamavam de Redondinha, não por seu físico curvilíneo do qual
não se poderia tirar arestas ou sobras, estava tudo ali, trazia sempre ao
meio-dia chucrute de couve e charutos de repolho com carne de carneiro.
Era assim sua
rotina. Em casa elaborava um artigo mirabolante sobre algum assunto hermético
em que aproveitava pra alfinetar os colegas de redação, sobretudo quem havia
escorregado na edição anterior. Exercia sem que lhe tivessem atribuído à
função, a clara observância e a correção segundo seus próprios critérios do que
deveriam ser textos jornalísticos.
E sem que
houvesse qualquer resistência, um excelente linotipista aposentado pagava pito
a todos os pobres coitados que conviviam com aquele concentrado exemplar de
sarcasmo e ironia. Os funcionários mais antigos nem mais se importavam com
aquela figura dantesca. Já há muito sabiam que era apenas um estopim, uma bomba
que explodia e depois voltava ao marasmo. Daí por que era conhecido como Tonho
Traque.
Sem dúvida foi
uma figura muito importante. Um questionador da normalidade. A crítica em
pessoa. Um grande criador de caso. Um cara que em vez de criar a polemica fora,
a trazia pra dentro do jornal. Um cara que só não foi mais importante porque
alguma caneta afiada achou seu peito. E hoje seu jornal enfarta sem o
marca-passo que mantinha o coração do jornal vivo e vibrante.
Morreu Antonio
José João da Silva de causa ignorada que possa ter ocasionado um pequeno furo
em seu peito sem deixar vestígio a não ser uma ponta estereográfica. Morreu o
último jornal vivo deste pequeno país. Morre a inconsciência dos loucos que
ainda bradavam contra os desvarios uniformes da mídia. Hiberna a esperança até
que os hospícios já desativados, as escolas de loucos possam criar mais um.
Fica assim o mortuário de meu
mestre e amigo Tonhão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário