Tanto Aristóteles quanto Arendt veem a política como o domínio das ações em que a pluralidade tenta chegar aos objetivos em comum, resolver problemas em comum, unir suas forças para realizar desejos consensuais. Por consenso, não se fala dos desejos que coincidem, mas dos objetivos que abarcam em sua proximidade o maior número de quereres sem necessariamente coincidir com algum. Seria o que poderíamos chamar de campo de proximidade. Nesse caso, o que podemos considerar como verdadeiro é o consenso. Ele orienta tudo. Ele é que é intensamente buscado. E não pode ser facilmente questionado. Não pode sem no mínimo causar grande desconforto.
Sabemos que toda
cidade é uma espécie de associação, e que toda associação se forma tendo por
alvo algum bem; porque o homem só trabalha pelo que ele tem em conta de um bem.
Todas as sociedades, pois, propõem qualquer bem – sobretudo a mais importante
delas, pois que visa a um bem maior, envolvendo todas as demais: a cidade ou
sociedade política. [ARISTÓTELES, 1252a1-7]
Portanto,
Aristóteles define a política, que é o que acontece na polis (cidade) como uma
associação que visa um bem maior, isto é a existência da própria cidade,
unidade administrativa, local governado por um governo. Desse modo pessoas
diferentes, de diferentes níveis intelectuais, técnicos, morais, sentimentais
ou financeiros firmam sequentes acordos, talvez num nível moderno,
minicontratos, para possibilitar a convivência num mesmo espaço.
Sem dúvida, a
cidade precisa da propriedade, mas a propriedade não faz parte da cidade. A
propriedade contém, mesmo, muitos seres animados; mas a sociedade é uma reunião
de seres semelhantes, que têm por fim a vida mais perfeita possível.
[ARISTÓTELES, 1328a33-35]
Deste
modo, Aristóteles, nos mostra como os diferentes tem isonomia (todos tem
direito de falar) para discutir e que a economia (as coisas da casa) não tem
influência nessa decisão assim como as outras diferenças. Aliás, o particular
não participa do público. Do modo em que toda vez que se troca o interesse
geral pelo interesse particular seja de um grupo ou de um indivíduo para
Aristóteles está estabelecida uma tirania. Todos os outros regimes desde a
monocracia, o governo de um; passando pela aristocracia, governo dos melhores;
até a democracia, o governo de todos, governam para a coletividade.
Hannah
Arendt acentua o tema da pluralidade presente em Aristóteles e onipresente na
leitura da filosofa alemã sobre o filosofo grego. Para Arendt “a política se
baseia na pluralidade humana”. Esse aspecto de que somente pela política o
homem agir para superar as diferenças em vez de omiti-la (alguns poderão dizer
negá-la, inclusive) como faz a economia encampa toda a filosofia política da
autora. Desse modo, para Arendt,
Política diz
respeito à coexistência e associação de homens diferentes. Os homens se
organizam politicamente segundo certos atributos comuns essenciais existentes
em, ou abstraídos de, um absoluto caos de diferenças. [...] Desde o começo, a
política organiza os absolutamente diferentes, tendo em vista a sua relativa
igualdade e em contraposição a suas relativas diferenças. [ARENDT, 2010, p. 145
e 147].
Em
total contraponto a essa ideia heroica grega presente em Aristóteles e
resgatada por Montaigne e Arendt de que a política é fundada pela coragem de
agir[1], encontraremos as
descrições de Foucault e Agamben. Guiarmo-nos pelas observações de Foucault,
com pontuais interações com Agamben. Desse modo logo no início de Nascimento da
Biopolítica, descobrimos que na atualidade a política deve se guiar por uma verdade
externa a ela:
Não, é claro, que
os preços sejam, em sentido estrito, verdadeiros, que haja preços verdadeiros e
preços falsos, não é isso. Mas o que se descobre nesse momento, ao mesmo tempo
na prática governamental, é que os preços, na medida em que são conformes aos
mecanismos naturais do mercado, vão construir um padrão de verdade que vai
possibilitar discernir nas práticas governamentais as que são corretas e as que
são erradas. Em outras palavras, o mecanismo natural do mercado e a formação de
um preço natural é que vão permitir – quando se vê, a partir deles, o que o
governo faz, as medidas que ele toma, as regras que impõe – falsificar ou
verificar a prática governamental. Na medida em que, através da troca, o
mercado permite ligar a produção, a necessidade, a oferta, a demanda, o valor,
o preço, etc., ele constitui nesse sentido um lugar de veridição, quero dizer,
um lugar de verificabilidade/falsificabilidade para a pratica governamental.
Por conseguinte, o mercado é que vai fazer que um bom governo já não seja simplesmente
um governo que funciona com base na justiça. O mercado é que vai fazer que o
bom governo já não seja simplesmente um governo justo. O mercado é que vai
fazer que o governo, agora, para poder ser um bom governo, funcione com base na
verdade. [FOUCAULT, 2008, p. 44 e 45]
Ou
seja, Pasteurizam-se os governos. Tanto faz um partido liberal, conservador,
verde, socialdemocrata ou socialista no poder, pois o índice de veracidade de
suas políticas sempre estará em sua adequação aos desejos do mercado. Chegou-se
à utopia ordoliberal de despolitizar a política. Deste modo, o direito que no
liberalismo era uma limitação à ação do governo, uma proteção do mercado (de
ser oprimido pelos governos) passa a ser justamente a justificação do poder da
economia sobre os governos:
A economia
política foi importante, inclusive em sua formulação teórica, na medida em que
(somente na medida, mas é uma medida evidentemente considerável) indicou onde o
governo devia ir buscar o princípio de verdade da sua própria prática
governamental. [...] Seu papel de veridição é que vai, doravante, e de forma
simplesmente secundária, comandar, ditar, prescrever os mecanismos
jurisdicionais ou a ausência de mecanismos jurisdicionais sobre os quais deverá
se articular. [FOUCAULT, 2008, p. 45]
O liberalismo se
insere num mecanismo em que terá, a cada instante, de arbitrar a liberdade e a
segurança dos indivíduos em torno da noção de perigo. No fundo, se de um lado
(é o que eu lhes dizia da última vez) o liberalismo é uma arte de governar que
manipula fundamentalmente os interesses, ele não pode – e é esse o reverso da
medalha –, ele não pode manipular os interesses sem ser ao mesmo tempo gestor
dos perigos e dos mecanismos de segurança/liberdade, do jogo
segurança/liberdade que deve garantir que os indivíduos ou a coletividade
fiquem o menos possível expostos aos perigos. [FOUCAULT, 2008, p. 90]
O Estado, no
ordoliberalismo, se torna uma máquina eficiente, se desumaniza que é que
justamente o que mesmo liberais como Berenson temiam. Os liberais concebiam o Estado como um
opositor ao mercado. Os ordoliberais transformam os governos em servos do
mercado assim como a filosofia na idade média era serva da teologia.
[1]
Ação, para Arendt e Aristóteles é algo que modifica o mundo, portanto que não é
individual, isolada, embora possa ter origem individual desde que seja
encampada pela coletividade. É algo qualificado, mas não necessariamente
difícil, pois qualquer nascimento é uma ação, pois joga um infinito de
possibilidades ao mundo no que denominamos de vida.
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