Pretendemos muito antes de propor qualquer solução possível, expor os efeitos captados por Giorgio Agamben através de sua leitura de mundo, do seu principal influenciador Michel Foucault e de Hannah Arendt ocasionados pela mudança do centro da política do zoé para o bíos.
Os gregos não
possuíam um termo único para exprimir o que nós queremos dizer com a palavra
vida. Serviam-se de dois termos, semântica e morfologicamente distintos, ainda
que reportáveis a um étimo comum: zoé, que exprimia o simples fato de viver
comum a todos os seres vivos (animais, homens ou deuses) e bíos, que indicava a
forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo. (AGAMBEN,
2010, p.9)
Com essa passagem um maior evidenciamento da biopolítica e
do controle sobre a ação humana, que classicamente é o que definia a política. O
interesse da política na Idade Antiga e boa parte de Idade Média se restringia
aos que dela participavam e por ela se interessavam. Portanto tinha enorme
importância se interessar e participar das decisões políticas, pois não se
legislava pelo interesse geral, ou seja, dos que não participavam dela.
Tal é, pois,
o fim principal que eles se propõem comum ou individualmente. Algumas vezes,
também, é unicamente para viver juntos que eles se reúnem e estreitam os laços
da sociedade política. Porque talvez haja um pouco de felicidade no próprio
fato de viver assim , sempre que a vida (bíos) não seja sobrecarregada de males
demasiado difíceis de suportar. O que há
de certo é que a maioria dos homens suporta muitos males devido ao seu
agarramento à vida (zoé), como se ela encerrasse em si própria uma doçura e um
encanto naturais. (ARISTÓTELES, A Política 1278b, 23-31)
Portanto em nenhuma hipótese poder-se-ia delegar poder ou
esperar que suas demandas fossem atendidas sem agir. Para Aristóteles, os
terrenos da ação por excelência eram a política e a ética.
E quando, em
um trecho que deveria tornar-se canônico para a tradição política do Ocidente
(1252b, 30), define a meta da comunidade perfeita, ele o faz justamente opondo
o simples fato de viver (to zên) à vida politicamente qualificada (tó eû zên):
ginoméne mèn oûn toû zên béneken, oûsa dè toû eû zên “nascida em vista do
viver, mas existente essencialmente em vista do viver bem” (AGAMBEN, 2010,
p.10)
Entretanto quando a política passa a se interessar por tudo
e todos, desde o seu princípio na Idade Média ainda, mas que alcançou a sua
onipresença apenas na Idade Moderna, passa a controlar não só o Estado ou suas
leis, mas a absolutamente todos os corpos.
“Por
milênios, o homem permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivente e,
além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal em cuja
política está em questão a sua vida de ser vivente” (...) Segundo Foucault, o
“limiar de modernidade biológica” de uma sociedade situa-se no ponto em que a
espécie e o indivíduo enquanto simples corpo vivente tornam-se a aposta que
está em jogo nas suas estratégias políticas. (AGAMBEN, 2010, p.11)
Deste modo, toda a ação passa a ser controlável e, mais que
isso, controlada. Os cidadãos perdem o seu poder de influenciar os destinos da
“polis” por assim dizer. A ação, no sentido arendtidiano torna-se algo raro e
precioso e a economia onipresente assim como a vida comum, que não fazia parte
das origens da política.
Por outro
lado, já no fim dos anos cinquenta (ou seja, quase vinte anos antes de La
volonté de savoir) Hannah Arendt havia analisado, em The human condition, o
processo que leva o homo laborans e, com este, a vida biológica como tal, a
ocupar progressivamente o centro da cena política do moderno. Era justamente a
este primado da vida natural sobre a ação política que Arendt fazia, aliás,
remontar a transformação e a decadência do espaço público na sociedade moderna.
[...] É provável, aliás, que, se a política parece hoje atravessar um duradouro
eclipse, isto se dê precisamente porque ela eximiu-se de um confronto com este
evento fundador da modernidade. [...] Se
algo caracteriza, portanto, a democracia moderna em relação à clássica,
é que ela se apresenta desde o início como uma reinvindicação e uma liberação
da zoé, que ela procura constantemente transformar a mesma vida nua em forma de
vida e de encontrar, por assim dizer, o bíos da zoé. Daí, também, a sua
específica aporia, que consiste em querer colocar em jogo a liberdade e a
felicidade dos homens no próprio ponto – a “vida nua” – que indicava a sua
submissão. [...] Tomar consciência dessa aporia não significa desvalorizar as
conquistas e as dificuldades da democracia, mas tentar de uma vez por todas
compreender por que, justamente no instante em que parecia haver
definitivamente triunfado sobre seus adversários e atingido seu apogeu, ela se
revelou inesperadamente incapaz de salvar de uma ruína sem precedentes aquela
zoé a cuja deliberação e felicidade havia dedicado todos seus esforços.
(AGAMBEN, 2010, p. 11, 12 e 17)
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