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quinta-feira, 3 de abril de 2025

Entre o desejo e a ética

 


Nós vivemos num mundo de desejos. Digo o nosso mundo humano, porque aos outros animais não é oportuna a concepção de aspirações ou volições. Os animais executam exatamente o que querem e pagam um preço caro, barato ou nenhum por isso. Pouco lhes importa. Não há todo um quadro de valores a sustentar suas convicções, não há previdência. No máximo há providência quando a necessidade encontra a oportunidade. Algo também muito comum e conhecido pelos humanos.

Nós humanos naturalmente desejamos tudo que nos faz bem, que nos afeta sensivelmente (pela visão, tato, olfato, paladar ou audição) ou sentimentalmente (pelo afeto, desprezo, simpatia, heterofilia). Vale lembrar que simpatia, por definição é o gosto ou aproximação por valores iguais ou exaltação deles (sym+pathos). Heterofilia é o gosto pelo diferente. Não creio que há mal intrínseco em desejar. Talvez algum extrínseco, afinal somos seres civilizados e por isso podado de muitos de nossos mais majestosos instintos.

Mas nossos instintos não combinam com nossa civilidade e isso é complicadíssimo. Não combinam nem mesmo com a ética: não posso fazer tudo o que eu quero sem desrespeitar o outro. Nem mesmo se em meu código de responsabilidade e de interação não estaria cometendo um erro. As éticas pessoais (éticas sempre se referem ao coletivo, mas são escolhas pessoais dentre o aceitável e o aprendido) quase nunca são as mesmas. Seria uma novidade se dois sujeitos compartilhassem exatamente de uma mesma visão de mundo.

Nossa condição humana nos leva a um corredor sem fim de desejos mesmo sem a indústria cultural nos inculcar ainda os desejos até então inexistentes e até então desnecessários. Até nos fazer desejar o próprio desejo do desejo. Acabei dando uma volta, mas escrevi esse último parágrafo mesmo só pra lembrar como nós humanos estamos enredados nos “nossos” próprios desejos. Meu foco não são os desejos criados. São os desejos reais e apenas aceitarei os ilusórios criados pelo autoengano, pois quando enganamos a nós mesmos, nada pode ser mais real.

Não pretendo considerar que o desejo é uma coisa boa ou ruim em si. Sem o desejo muita coisa não teria sido inventada ou manufaturada, criada, concebida. Mesmo o desejo do impossível levou o homem a novas épocas, conduziu a novas tecnologias, a novos pensamentos. Toda grande mudança pessoal ou coletiva nasce de uma utopia. Mesmo os desejos mais complicados, difíceis tiveram que ser sublimados e por vezes sua expressão criou expressões de arte magníficas, belas e supremas.

O conflito entre desejo e possibilidade, muitas vezes leva a compreensões éticas e estéticas formidáveis. Se eu colo os lábios no texto (não os meus) é porque não teria melhor compreensão se colasse os ouvidos, os olhos, talvez o magnífico dorso. Não seria possível imaginar melhor leitura do desejo. A vida é uma dura batalha. Felizmente é ética.

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