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quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Contra a desilusão

 


Queria voar ao chão

Abraçar o mar

Nadar nas nuvens

Colher estrelas sem parar

Chafurdar no mousse

De limão ou chocolate

Ah! Mas só me restam tamarindos

In natura pra apreciar

Tem mel com abelha

Africana no favo pra chupar

E se no campo eu quiser deitar

As urtigas vão me acariciar

Posso rezar pra São Mindinho

Mandar chuva me molhar

Mas o sol em labaredas

Não deixa a água me tocar

Dizem que sou pessimista

Que vivo a praguejar

Mas ninguém sabe da alegria

De não desmoronar

Conto da Pâmela


 

Pamela acordou aquele dia com os olhos melados. Coisa estranha isso! Todo dia tinha que levantar da cama e correr pra fila do banheiro pra poder ver alguma coisa. Depois de lavar o rosto, ou mais especificamente os olhos, voltava pro quarto a enxergar vultos pra pegar seus óculos fundo de garrafa que usaria por pouco tempo.

Ainda sofria os efeitos da operação na vista que fizera pra diminuir sua hipermetropia de periclitante para alta. Foi uma coisa mesmo de pressa porque com o tempo e o aumento natural da miopia sua visão tenderia a melhorar. Tinha dificuldade de atravessar avenidas muito largas. Conseguia ler com dificuldade até sem óculos. Estava trocando um pouco de um por outro com o tempo, mas uma troca muito injusta que dificilmente lhe ajudaria a ver de longe e ia lhe tirando a visão de perto.

Pegava o ônibus do outro lado da rua ou no meio da rua. Não conseguia perceber esses detalhes. O que percebia é que era um flagelo chegar lá. Difícil perceber se estavam lhe sacaneando quando perguntava que ônibus era antes de entrar. Já pegara muitos ônibus errados porque alguém decidia dificultar sua vida. Tinha que por a cabeça na janela para parar no ponto certo, ver a placa bem de perto.

Chegava no banco e passava a vassoura por todo o lugar porque não conseguia enxergar onde estava sujo. Então era uma espécie de esquadrinhamento para passar a vassoura por todo lugar. Quando derramava alguma coisa no chão era um desespero. Tinha que passar pano molhado com convicção tentando perceber pelos outros se estava limpando o lugar certo.

Mas a maior parte do tempo estava lá na cantina ou na compensação fingindo fazer alguma coisa pra escapar de ter que agir de improviso e perceberem a sua condição. Faltavam ainda cinco anos pra aposentar embora tivesse contribuído por mais de quarenta anos. Daqui cinco anos talvez enxergasse muito melhor e estaria aposentada.

Talvez saísse pelo mundo pra ver as coisas que nunca viu. Talvez refizesse seu cotidiano caminho só pra enxergá-lo. Talvez descansasse sua vista num tricô ou croché. Ou pelo contrário cansasse. Talvez fosse a praia pra enxergar a areia. O mar já estava cansada de ver. Talvez, talvez fosse uma possibilidade.

Pamela via muito futuro nisso. Enxergar melhor fora sempre seu sonho. Isso se a catarata não viesse e enublasse sua visão novamente. Isso se a presbiopia antecedesse o aumento da miopia. Bom... pelo menos tinha essa visão, esse futurismo, esse sonho. Vamos ver...

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Sobre a arte e as hermenêuticas



A arte é muito mais eficiente ao capturar (ou ser capturada) pelo Zeitgeist (o espírito do tempo).  Portanto contar a história geral, humana, dita universal pela arte dos povos, grupos, nações parece ser uma abordagem muito mais rica, plural e sujeita a mais interpretações e mais erros. Quanto mais é possível errar, melhor é o método. Como assim seu idiota??? Você diz que o método menos rigoroso é melhor??? Não!!! Que métodos abertos são melhores que fechados.

 Não é possível descobrir uma verdade quando se sabe há pelo menos um séculoBa que as verdades são particulares. Que as ditas “verdades universais” são verossimilhanças consensuadas, algo que nos dá chão pra pisar. Estar próximo ou muito próximo da verdade é melhor que se prender a fantasias como se fossem realidades. Então você quer dizer que dois mais dois igual a quatro não é uma verdade? É sim. É uma verdade analítica, que é uma autoproclamação: só garante a si mesma.

Não era o propósito, mas estico: duas bananas mais duas laranjas são quatro frutas. Duas mangas mais duas jaboticabas igualmente. Duas bananas e duas laranjas são iguais a duas mangas e duas jaboticabas? As situações, os sujeitos, as interações mudam a reação. Usei uma lógica física ou química. Nem sociologia, nem filosofia, porque para essas é muito mais óbvio. Para qualquer hermenêutica, tudo é muito susceptível.

Textos se tornam eternos porque podem ser reinterpretados. Universais também porque a tradução permite ultrapassar realidades dispares entre as línguas. Não há fidelidade nenhuma nisso. Há a lealdade possível. Para isso há a verossimilhança de criar metáforas e metonímias para mudando tudo mostrar os aspectos primordiais do texto que se julga que deveriam ser preservados.

Somente a arte consegue numa mesma obra se dizer e desdizer do modo de sua época. Mostrar os conflitos não como discurso, as vezes nem como descrição, mas como narrativa. A narrativa do conflito é muito mais complexa: mocinho não é mocinho, nem bandido é bandido. Sem defender um ou outro, em muitas situações fazem o inverso. Na maioria, não é muito claro quem é quem. Salvo os casos limítrofes, as pessoas tendem a variar entre um ou outro, virtuoso e desvirtuado com frequência e precisam de uma narrativa para se estabelecerem como mocinho ou bandido. As melhores obras são as que não tem nem mocinho, nem bandido.

Quanto mais uma obra é particular, tem as dores, os prazeres, o espírito de seu tempo, mais ela é universal. A obra mais universal é a que explora a singularidade, as dores do individuo em seu tempo porque por mais que seja subjetiva (e, portanto, limitada) será lida por sujeitos que se identificarão. Quando se diz que o sertão, a vila isolada é o mundo é uma verdade porque mostra os aspectos essenciais. Embora as metrópoles mostrem muito mais o mundo que é intrinsecamente interligado. Essa é uma visão geral, panorâmica que não alcança as especificidades.

As narrativas particulares (escritas, pintadas ou cantadas) mostram lugares, épocas, ambientes que não vivemos, mas tem maior verossimilhança com nossa realidade do que textos que tentam descrever ou dissertar sobre o real. Não há verdade, mas verossimilhança graça por todo o lado. É muito mais completo descrever uma goteira numa poesia que num relatório técnico. O ultimo tem a virtude ser objetivo, mas deixa escapar quase tudo do que é uma goteira.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

A arte



Estava no meio da selva. Era uma formiga em seu próprio jardim. Ervas daninhas não incomodavam. Ele próprio se reconhecia como uma. Sugara o conhecimento de todos os sábios que conhecera. Uns dois ou três. De todo modo era um ser perdido numa amplitude infindável. Era um camelo perdido no deserto, longe de qualquer oásis. Ou não, perto da foz do Nilo.

Era um ser humano qualquer, nem mais, nem menos privilegiado. Apenas plenamente consciente. Apavoradamente consciente. Um pingo de ordem num oceano de caos, poderiam dizer. Mas era um pingo de caos mergulhado em infinitas outras desordens. Percebia que nada daquilo poderia ser racionalizado. Não adiantava ir com a corrente ou contra a corrente. Aquilo estava mais para um redemoinho.

Pensando bem, redemoinho tem uma ordem. A vida real não tem nenhuma. Saber disso é muito fácil. Ter consciência disso é desesperador. Sabia que ser cínico era impossível. Era possível a ilusão da hipocrisia. Era preciso se alienar. Fingir existir alguma ordem mesmo que grupal, comunitária ou só individual.

Saber desse pouco impediria qualquer um de viver, sabia. As pessoas alienavam a própria alienação. Viver era um apesar de todo o resto das coisas. Consciente ela sublimava suas verdades pintando, escrevendo... fazendo o possível. Pois sabia que só a arte pode expressar a realidade em forma de ficção. Ou essa ficção chamada de realidade só pode ser retratada pela arte.

domingo, 30 de novembro de 2025

Cortando e desvirtuando o conceito de história de Benjamin



Vou continuar a refletir sobre a minha concepção desvirtuada de Walter Benjamin. Vou pensar apenas um pequeno recorte da sua concepção de história. Os historiadores estão sempre voltados para o passado. Nós comumente construímos a história com base no passado. A construímos com base em nossa experiência. Nada mais natural porque partimos do que conhecemos.

Com isso sempre trazemos o passado para o nosso presente. Pior, o colocamos no futuro quando o usamos pra planejar. Impossibilitamos nascer o novo por estarmos sempre presos ao passado. Poxa! Mas se esquecermos o passado podemos repetir os mesmos erros de novo. Sim, mas se levarmos o passado para o futuro os erros são transportados. Não podemos esquecer o passado, mas não podemos construir o novo sem romper com o passado.

Pra fazer o novo é preciso partir do novo, de um presente ideal. É preciso romper com a linearidade. Começar uma nova história livre dos absurdos do passado. Não estou falando de uma revolução socialista ou anarquista. Estas estariam relacionadas a um passado. O negando, provavelmente. Não seria um corte epistemológico.

Para criar o novo, as escolas devem ensinar o passado como uma era repugnante já terminada e focar na criação do novo tempo desligado das mazelas do passado. Um tempo sem a lembrança da escravidão que impõe o racismo e a misoginia. Aí está o ponto que vou ser mais polêmico e vou tomar todas as porradas possíveis e justamente porque o novo não está aí. Não defendo o esquecimento. Como eu disse, 15 minutos após o estabelecimento do novo, o passado deve ser uma era desprezível já terminada. O escravismo precisa ser tirado da história da nova era para que deixe de ser referência. Mesmo que seja negativa, abominada continua sendo uma enorreferencia que pode ser retomada, fantasiada, sublimada como é hoje.

Para fazer uma nova história, é preciso fazer o novo a partir do novo, de novos pensamentos. É preciso romper com o velho. Romper, não negar. Desligar-se. Perder as referências. Reconstruir com base no que nunca foi feito ou adotado. Do passado só podemos se muito adotar ideias perdedoras por razões econômicas, políticas ou de preconceito se convenientes. Para fazer uma nova história é preciso agir diferente. Para agir diferente é preciso romper com a velha história: o tempo antigo, o tempo morto.

O que proponho é algo muito perigoso. O fascismo e o nazismo propuseram algo semelhante. Mas tem uma enorme diferença: não estou propondo uma volta a um passado mitológico poderoso. Estou propondo romper com qualquer passado, real ou mitológico. Proponho deixar de repetir erros. Cometer erros novos. Nós temos horror ao desconhecido, mas se quisermos algo novo precisamos avançar para o incógnito.

sábado, 29 de novembro de 2025

A percepção segundo minha interpretação de Walter Benjamin

     


     Walter Benjamin tinha uma ideia sobre a apreensão/representação nas obras de arte muito interessante. Desejo somente explorar um pedacinho dessa percepção. A filosofia se faz muitas vezes pelo obvio que deixou de ser observado ou não é observado. Ele percebe como a representação dos objetos em uma pintura, foto, filme, descrição narrativa tende a perder aspectos/qualidades/atribuições dos objetos.

Digamos uma foto simples escolhe um ponto de vista e mostra como se está vendo o objeto. Mais ou menos porque as fotografias não tem acuidade de um bom olho ou por serem externas sofrem influencias que desajustam. Uma pintura que pretende ser realista escolhe um ponto de vista, tem dentro de si uma representação do objeto. Uma subjetividade que acrescenta mais atributos ao objeto. Algo que deixa menos vazio, descaracterizado.

Uma descrição narrativa emerge em subjetividade mais claramente que as outras. As outras também estão banhadas, mas não tão objetivamente. A descrição está tão cheia de subjetividade que pode mostrar a essência do objeto para o autor da obra permitindo, inclusive, que o leitor capture outra essência. De toda forma, a representação é redutora. Não pode mostrar tudo. Os aspectos são escolhidos. É impossível passar a integralidade do objeto. Mas evidentemente são escolhas subjetivas. Mesmo que fosse possível mostrar a integralidade, o autor provavelmente preferiria mostrar seu ponto de vista, sua interpretação do objeto.

O autor pode mostrar a essência do objeto, a negação do objeto, pode “desobjetificar” o objeto, mas não pode escapar de fazer escolhas. Mostrar algumas coisas, esconder outras. Pode até negar escolhas, o que é uma decisão. Desse modo toda obra são cortes da realidade ou da negação da realidade ou da relação com a realidade. Nunca a realidade em si, sobretudo no que deseja ser verossímil.

           Essa é de longe a parte mais importante do que eu deveria dizer. O que eu quero dizer é que a melhor descrição da realidade é a ficção que deseja mostrar algo real ou que acontece porque os construtos imaginativos permitem uma interação mais real com as propriedades do objeto que foi certamente metaforizado para facilitar a interação. Complicou e explicar minunciosamente não é produtivo porque a explicação é sempre um corte que esconde partes do objeto. Pensem. Se em algum momento eu conseguir acrescentar sem destruir parte do anterior volto.

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Conto da Ofélia

 


O que dizer de Ofélia? Estaria ela numa opera? Ofélia diz de si mesma e basta: “eu sou o que sou. Nada mais!”. Na estante da sala reluzia o clássico Cozinha de Ofélia. Comprou mesmo antes de quitar seu apartamento pra ter uma ideia de como seria sua cozinha. O livro era de culinária. Nunca o leu.

Ofélia passava o dia na rua. Vendia de tudo: perfumes, bijuterias, prata, joias e ouro. De vez em quando vendia um lote. Se virava pra conseguir um dinheirinho. De pouco em pouco tocava a vida. Não dava pra almoçar no Jockey Clube todo dia, mas podia ir umas três vezes por semana lá se quisesse. Não dava tempo. Estava sempre daqui pra lá, de lá pra cá.

As vezes não dava tempo nem de almoçar. Sorte quando marcava de almoçar com algum cliente. Algumas vezes pagava um almoço numa conversa que não ia dar em nada só pra almoçar. Mas era difícil ter esse tempo. Se deslocar de um lado pro outro era essencial. Era preciso recolher cada peça do quebra-cabeça do mês, cada moeda pra fechar as contas. E se possível juntar um pouco mais.

Fruto desse vai e vem conhece o centro como ninguém. Talvez menos só que os ambulantes. Os bairros novos melhor que quase todo mundo por vender lotes sempre que possível. Não conseguiu adentrar nos feudos das concessionárias, mas no das imobiliárias de vez em quando lhe sobrava algum. É um dinheiro que garante mais tempo, dizia.

Quando vendia algum lote, o que vendesse era um algo a mais por algum tempo. Mas lote não era algo que conseguia pra vender todo mês. Vivia mais do varejo de perfumes e joias. As vezes algumas bijuterias. O que vendia era um almoço ou café da manhã garantido. Em algumas oportunidades fazia uma venda maior no varejo. Ganhava um pouco mais que pra sobrevivência imediata. Mas era uma vida incerta: hoje tinha um pouquinho mais, amanhã só pra uma refeição.

Não tinha um plano de saúde. Não tinha uma regularidade de dinheiro pra isto. Mas já fez checkup nos mais famosos hospitais quando tinha dinheiro. Com exceção da casa, comprava tudo a vista quando tinha dinheiro. Sabia que tinha, mas daqui a pouco não voltaria a ter. Gastava o absolutamente necessário. Já tinha se acostumado com essa gangorra na sua vida. Geralmente tinha o necessário, mas algumas horas tinha muito, outras não tinha nada.

Teria sido uma excelente especuladora financeira pelo sangue-frio, quase indiferença com a situação financeira. Saberia comprar os ativos que iriam se valorizar e não se afligir com a inicial queda de preço.  Embora sua especialidade não seja comprar e sim vender. Mas essa é uma conjectura que cabe na história. Pois não, essa é Ofélia.

Conto de Ulices

  Ulices não foi pra ilha de Creta. Nunca pretendeu tomar uma rainha. Quer dizer, uma vez no xadrez sim. Na Dama nunca chamou a dama de rain...