Ulices não foi pra ilha de Creta. Nunca
pretendeu tomar uma rainha. Quer dizer, uma vez no xadrez sim. Na Dama nunca
chamou a dama de rainha, então não. Já esteve dentro de um carro durante um
cavalo de pau. Já deu presentes de grego. Mas nunca construiu um cavalo de
madeira. Quando era pequeno ajudava (ou atrapalhava) seu avô fazer
caminhõezinhos de madeira.
Nunca se candidatou a parlamentar, nem a vereador.
Odiava discutir as coisas sabendo que tudo era mera retorica de todos os lados.
Como ninguém convenceria ninguém, todos balbuciavam coisas sem o menor sentido.
Criavam mitologias de dar inveja aos gregos da antiguidade. Ulices fugia disso.
Quando era inevitável dava o seu parecer e corria, corria sem fim pra não
prolongar a conversa mais do que o insuportável que já tinha acontecido.
Mesmo que se candidatasse Ulices não teria
nenhum voto. Nem o seu. Não conseguiria ficar num partido, pois discordava de
todos. Todos não se refere a partidos, mas a todos. Todos mesmo! Inclusive ele
mesmo. Tinha orgulho de não conhecer verdades por mais angustiante que fosse
isso. Não sabia ele que René Descartes seria seu discípulo se tivesse nascido
hoje. Kant seria seu maior fã.
Mas pra seu imenso azar, Ulices nasceu no século
limiar do século XXI. Não na época de Kant ou Descartes. Mas depois de Nietzsche,
Freud e Marx. A plena confusão entre modéstia e soberba. Um mundo de infinitas verdades,
de democratização, de uma verdade pra cada um. Na verdade, múltiplas verdades
pra cada um escolher a conveniente ao momento.
Não quero dizer que Ulices era sincero. Sabia
mentir muito bem. Mas evitava mentir pra não se entregar na esquina. Buscava ter
um limiar de lógica. Não buscava ter razão. Os supracitados filósofos mostraram
que é impossível ter razão. Ter emoção é mais fácil. Mas isso até os gregos
sabiam. Apenas acreditavam que impor uma ordem, uma cosmogonia era possível.
Bobinhos eles.
Ulices não fez filosofia ou história. Era carpinteiro.
Profissão do pai de Jesus. Santo segundo a igreja universal, digo católica. Mas
no mínimo comum pra quem lê os evangelhos apócrifos. Já fizera mesas, cadeiras,
armários, até mesmo brinquedos por encomenda de uma loja de brinquedos pedagógicos.
Daquelas que só os novos ricos frequentam por causa do preço extorsivo. Fizera
até uns dois altares para seu companheiro de profissão santo. Mais comum era
fazer altares pra mulher dele, a mãe de Jesus, que é muito mais popular. Se
tivesse uma conta no Instagram ia espocar de ganhar dinheiro.
Ulices ia na igreja todo domingo pra pedir pra
não entrar farpas no seu dedo, dentre outras coisas. Todo sábado ia na farmácia
pra fazer curativos nos dedos e lixar o portal nunca terminado. Precisava ir no
meio da semana lá passar esmalte. No portal, pra estabilizar o desgaste. “Todo
mundo que vai lá tira uma lasquinha do portal”, dizia ele. Assim vivia Ulices.
Assim tocava Ulices. Melhor! Ia empurrando a vida com a barriga que era pouca.
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