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quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Luxúria



Quisera fazer uma viagem. Partir de onde desejava e chegar onde estava. Não seria uma viagem longa, mas custosa. Enfrentar o percurso talvez fosse uma vida. Ou a capa dela. Não haveria vida nenhuma. Só duro trabalho consigo mesmo. Constante reflexão sem espelhos. Ou melhor com um espelho projetando ora a imagem de si ideal, ora real.

Procurou parque de diversões. Todos fechados. Aquilo era nada divertido. Uma casa de espelhos seria talvez uma boa música, não um bom parâmetro. Precisava meditar, mas não com mantras preestabelecidos, mas construir suas próprias meditações. Criar uma consciência. Procurar uma essência, embora esta não exista, seja um ideal.

A viagem estaria floreada de paisagens belas, seda perfumada, mas sabe criaria pântanos infernais pelo caminho. Nestes sabe que aprenderia. Nos campos floridos descansaria. Então desejava desafios. Embora lhe fossem bem custosos e o desgastassem bastante. E, sobretudo, era muito desagradável. As saídas e fugas sim, eram muito reconfortantes. Sabia que não podia viver a vida no infortúnio, mas era o preço de aprender.

Não esperava recompensa pelos desafios. Sabia que eles nada lhe acrescentavam. Suas soluções sim, simbolicamente. Tinha uma enganosa sensação de vitória. Mas só era conduzido ao novo problema. Que solucionado revelava o próximo. Entremeado a isso viu flores, sentiu perfumes, sentiu a pele, o pelo, o osso. Deitou na grama em luxuria do contato com terra, agua e ar.

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Passatempo



Por toda parte ouve-se a mesma ladainha

Meditabundo repetem o mantra:

Não sou eu

O inferno são os outros

Sartre riria:

O inferno são os outros?

Que outros?  Você quer ser único

Os outros não te deixam ser?

Você quer ser raridade

Mas consome moda

Ou melhor, a moda te consome

Ou os outro te lembram quem és?

Será que o inferno é ser o que és?

Não há comunidade, só sociedade

Falida, insolvente

Com os sócios se canibalizando

Morreu a política com o príncipe

Sobrevive a economia

A mesma que escravizou

Os estrangeiros

Os negros

As mulheres

As crianças

E, por fim,

A mente em geral

Presa, mente pra você:

Isso é liberdade!

16, 18 horas sem parar

Para os algoritmos

terça-feira, 25 de novembro de 2025

Sobre Queila e o anarquismo

 


Asseveram que Queila atravessou sete estradas. Eu não duvidaria se o seu corpo não estivesse sempre quente. Se o terreno não fosse tão inóspito. Atravessar um deserto na beira do mar é quase impossível. Mas quem construiu sete estradas no Atacama. Alguma dessas construtoras falidas brasileiras? A Mendes Júnior não foi porque ela faliu no Iraque. A Odebrecht se inviabilizou na Operação Lavajato.

Há um histórico de empreiteiras brasileiras ganharem notória experiencia, juntar títulos que permitem fazer qualquer obra em qualquer lugar do mundo e, condições adversas inesperadas as levarem a falência. O que não acontece com empreiteiras chinesas, americanas ou italianas.

Bom... não importam as empreiteiras. Falamos de Queila, a sobrevivente. É notório que Queila andou muitas trilhas. Talvez tivesse escalado muitos morros. Romper serras não lhe seja impossível. Mas andar centenas de quilômetros entre os Andes e o Pacífico no deserto mais seco do planeta Terra? Sim, Queila faria isso. Não com tranquilidade. Porque é uma tarefa que não deixa ninguém tranquilo.

Dizem que bebeu seu colete com gelo durante o caminho. Queila disse que deixou quase tudo pro final. Isso é difícil descobrir com todo mundo variando com aquela temperatura e sol escaldante. O que se pode dizer é que não foi integralmente bebido. Será que fizeram as sete estradas só pra Queila atravessar? Pouco provável. Umas três ou quatro estradas é possível que tenha atravessado.

Queila sempre manteve sua pulsação levemente abaixo do normal. O fazia para manter a tranquilidade. Efeito disso suava com maior intensidade e quem tocasse sua pele acreditaria que ela estava febril. Ela dizia que nada disso. Era uma mulher quente. Disso eu não sei. Intrigada por desafios com certeza. Se impunha desafios. Queria sempre superar dentro do que ela acreditava ser seguro.

Era hora de voltar pra uma bacia hidrotermal e passar uma quinzena ou mês relaxando pra depois planejar com cuidado o resto do ano o desafio do ano vindouro. Enquanto isso corria seus quilômetros diários e reforçava a musculatura para estar pronta para o que desejasse. Era uma linda morena que pela atividade interditava os menos atrevidos, (homens ou mulheres) os que tinham chances, e demolia os pretensiosos ou pretensiosas. Afinal ela sempre gostou de desafios. Timidez é um belo desafio.

Já nadara no Amazonas e no Nilo. Já subira o Everest e o K2. Nunca correu uma ultramaratona porque ela sempre achou que é muito mais exibição que desafio com toda a estrutura disponível. Já foi correspondente de guerra, mas não dessas guerras midiáticas em que você está minimamente protegida no front e sim de guerras na África e guerrilhas na América Latina quando tinha. Agora pensava em passar três meses no partido anarquista sem ser expulsa, o que seria um recorde três meses maior que o recorde anterior.

Tá bom... eu até acredito em atravessar sete estradas e sete cachoeiras no deserto de Atacama. Mas alguém que ficou mais de um dia filiado a um partido anarquista legitimo, melhor acreditar em São Jorge na Lua ou uma tripulação respirando oxigênio em Marte sem mascaras. Aliás um partido anarquista é uma contradição. Legitimidade disso é outra. Bakunin e Malatesta nunca se filiariam a mesma organização. Queila não quer saber disso. Vai pensar em outro desafio. Ano que vem saberemos.

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Eternidade

Subi a escada despretensiosamente. Desceu o céu sobre minha cabeça. Torci a camisa e virei o boné. Alguns dirão que fabriquei uma caixa d’água. Minha alma tremia. No minhas veias tocava um pancadão. Respirei como um quem está prestes a afogar. Mas tudo passou. Dormi ali na grama. Lua cheia, sonhando com seu hálito. Parou o tempo. Gravou-se a imagem. Fez-se eternidade.

domingo, 23 de novembro de 2025

As briófitas e o surfista

 


Dizem que nascera por ali mesmo entre Cejana e Trajano. Talvez numa praia quase deserta. Não sei se Cejana e Trajano são vilas de pescadores de Alagoas ou Sergipe. Ou se seriam os progenitores dele. Ignoro se em Alagoas, Sergipe ou Pernambuco ainda existem praias inexploradas ou quase isso.

   O importante é que fora bem recebido por aqueles franceses radicados na foz do Rio Negro. Quase nunca frequentara uma praia. Uma vez foi a Salinas. Mas achou a agua muito salgada. A areia ele achou muito agradável. Entretanto aqueles filhotes brancos de urubus sempre vomitando de medo das pessoas lhe embrulhavam o estômago.

Desde cedo aprendeu a nadar contra e a favor da correnteza. A nadar como qualquer ribeirinho. Aprendeu a conhecer todas as briófitas. Conhecer os seus usos e o perigo deles. O casal que o adotou eram botânicos. Tinham as angiospermas e as gimnospermas, mas ele gostava mesmo dos fungos e seus parentes.

Quando tinha um dinheirinho ia passear em Manaus.  Era uma espécie de faz tudo. Era pescador, fabricante de canoas, pesquisador de briófitas, guia turístico para as raras visitas na região. Costumava ir a Manaus. Mas já tinha ido umas duas vezes a Belém. Uma vez guiou uma visita de um surfista ao encontro do Amazonas com o mar. O turista o desafiou a surfar a pororoca. Ele surfou como se fosse de sua natureza. Nunca tinha surfado e nunca mais surfou. Mas o fez tão bem que passou a ser conhecido como o surfista de pororocas.

Talvez por comedimento, talvez por se interessar mesmo por briófitas, por mais que insistissem nunca mais surfou, nem ondas, nem pororocas. O que o fez se tornar uma lenda. Quem viu, viu. Quem não viu, acredita ou duvida. O que só aumenta sua lenda.

sábado, 22 de novembro de 2025

Da praia à montanha

“Armei a rede. Fiquei um tanto ressabiado de usar. Os peixes não ligaram pra isso. Nenhum me disse nada”, gritava desesperadamente Amanda. Eu nem ouvi. Estava a duas praias dali. Fiquei sabendo das más, aliás, péssimas línguas. Não confiei. Não porque eram, provavelmente, fofocas. Mas porque não acredito em notícias. Tá bom, não é que não acredito, mas que confio desconfiando.

Pulei dois córregos. Tudo bem, dois regos, e cochichei: Amanda vem cá. Me conta do seu passeio. Amanda começou: “tio, sabe aquela rede que deixa a gente quadriculado? Levei pro passeio e um cara pegou emprestado pra usar na canoa”. Me senti muito enredado pela narração/descrição.

Decidi sentar no toco e puxar a criança: vem cá, Amanda. Me conta mais! O Dasenhor prefere a descrição algébrica ou a geométrica? Menina, para de racionalismos. Me descreve geograficamente as coisas. Se não se sentir à vontade, pode descrever filologicamente. Ah, tio, para de sandices e me escuta... a praia era de uma areia que esfolia a gente e você tem que andar quase sempre de costas pro mar.

O mar rumina uma melodia bem compassada de três tons: baixa, alta e depois média. Parece um ritmo hipnótico, mas muito mais sereno que tecno. Não é batidão. É mais uma flauta em três tons. O oceano dá pra entrar de costas e é muito sereno, de ondas muito pouco frequentes e baixas. Uma água muito morna e salgada.

À meia-noite dizem que um peixe sai da água e canta uma ária muito própria em tons muito altos. Sua cauda brilhante serve de holofote para destaca-lo num “palco”. Mas isso tudo é mentira que eu criei na minha cabeça agora, disse-me Mariana. Tá bem, Amanda. Fiquei encantado com tua história, Amanda Mariana. Boa Noite! Vai dormir que amanhã tu vai me contar tudo de novo só que numa montanha.

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Conto de Nanda



 

Nanda, Nandinha, digo Fernanda. Não a Montenegro, nem a Torres, nem a Lima. Não era uma Meireles também. Não era economista, nem milionária. Era tampouco uma Souza. Silva. Sim, Silva era seu sobrenome. Fez muita cena quando criança pequena. Agora tentava economizar algum. Não por nada. Tinha ficado adulta e como por maldição as contas começaram a bater em sua porta e sem cerimonia invadir sua casa. Sim. Ainda tinha uma. Não sabia por quanto tempo.

Nada de especial. Só a Serasa Experian querendo fazer parte da sua vida. Sabe quando toca um tambor e você se empolga com o ritmo... pois é... chegando a idade adulta você é obrigado a aprender a rebolar. Quando você não tem gingado você sofre. Se a escola passar com o seu enredo e você conseguir evoluir adequadamente no conjunto corre o risco de não ser convidado na próxima.

Nandinha fazia seus bolos. E dava bolo em todos os compromissos possíveis. Menos nos que podia vender seus bolos. Fazer um dinheirinho pra poder cozinhar o próximo. Cozinhar os credores pra ver se podem receber na semana que vem. Ver se os fornecedores podem colocar algo no caderninho pro mês que vem.

Desajeitadamente evoluía pela pista se desviando dos perigos. “Eu posso pagar com um bolo? Olha! Eu faço um bolo muito bom!” tentava Nanda as vezes. “O aniversário da sua filha tá chegando, né. Deixa que eu faço o bolo e os docinhos” propunha. Infelizmente, mais dava bolos que vendia. Quem recebia os bolos não era agradecido.

Chegou a pedir pra um primo espalhar uns papeis pela rua. Não literalmente jogar na rua. Distribuir pros pedestres e motoristas. Mas o destino foi a rua mesmo. Teve que interromper a operação pra não ficar com fama de porca além de caloteira. Tudo muito injusto! Se pudesse pagar, pagaria tudo antecipado pra não ficarem lhe cobrando. Se não precisasse de alguma divulgação não teria proposto propaganda.

Sua vida mesmo era dar e vender bolos. Mais dar que vender. Uns dias da semana fazia faxina numas madames lá de um condomínio. Chegava cedo e saia de tardezinha da casa da contratante. Não recebia nenhum cafezinho. As patroas acham que intervalo na limpeza é improdutivo. Saía umas quatro da tarde do cercado chique e ia comer uma quentinha no bar lá perto e limpar a goela com um gole de caninha.

Entrava se esgueirando pela vida pra não passar pelo mercado que tinha prometido pagar ontem, mas só pagaria amanhã se vendesse um bolo hoje pra completar o dinheiro. Se vendesse, beleza! Ninguém dava cano. Se dava era só por uns minutos, no máximo um dia.

Essa era sua vida agora. Que saudade de quando era gari como Marianna na sua vila natal! Ganhava uma miséria. Sua rua era fedida. Descontavam de seu salário já miserável. Mas tinha o que comer. “Que inferno ter ouvido coach coachar, coisa de sapo, que devia empreender. Ano que vem eu passo no concurso de merendeira e saio dessa!”, pensava ela. Com esperanças, assim termina nossa história, não a de Nanda.


Conto do Théo

  A história de Théo seria uma teogonia? Se a questão se refere a um demiurgo, certamente não. Mas é uma história do todo-poderoso, oniscien...