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domingo, 23 de março de 2025

Sobre_andar

Andar nunca foi algo objetivo

Andar é deslocar

Colocar o corpo em movimento

Piso a piso, laje a laje

 

Andar é mesurar o mundo

Desligar-se da vida objetiva

É divagar vagarosamente

Em breves instantes sem lucidez

 

Andar definitivamente não é chegar

É sobretudo partir sem itinerário

É perder-se em si mesmo

Encontrar o que estava perdido

 

Andar é criar novas teses

É juntar peças desordenadamente

Andar é fugir do óbvio

E se afundar no inexplicado

sábado, 22 de março de 2025

O que uma noite de sono faz

 


Você já pensou como uma simples noite de sono ou de insônia revoluciona a vida de um ser humano? Como é tênue a linha entre o mundo fantasioso do sonho e o mundo imaginário real? Por vezes acordamos e acreditamos viver a continuidade do sonho ainda não colocado em stand by. Outras vezes acordamos assustados com a diferença de realidade entre a vivida nos devaneios noturnos e nos perguntamos: será que estou sonhando agora? Dormir e acordar são muito confusos, sobretudo após uma excelente noite de insônia. Até porque é bastante razoável a dúvida se neste momento estamos dormindo ou acordados. Não é nenhum disparate nos interrogarmos sobre o que realmente é real. Sobre esse assunto, o livro No caminho de Swan, parte da obra Em busca do tempo perdido tem uma excelente descrição do problema:

Um homem que dorme mantém em círculo em torno de si o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos. Ao acordar consulta-os instintivamente e neles verifica em um segundo o ponto da terra em que se acha, o tempo que decorreu até despertar; essa ordenação, porém, pode-se confundir e romper. Se acaso pela madrugada, após uma insônia, vem o sono surpreende-lo durante a leitura, em uma posição muito diversa daquela que dorme habitualmente, basta seu braço erguido para deter e fazer recuar o sol, e, no primeiro minuto em desperte, já não saberá da hora, e ficará pensando que acabou de deitar-se. Se adormece em posição ainda mais insólita e contrafeita, por exemplo sentado em uma poltrona depois do jantar, dar-se-á então uma completa reviravolta nos mundos desorbitados, a cadeira mágica o fará viajar a toda a velocidade no tempo e no espaço, e, no momento de abrir as pálpebras, pensará que está deitado alguns meses antes, em uma terra diferente. (PROUST, 2007, p. 22).

Não é porque o nosso mundo seja uma ilusão, às vezes insatisfatória, outrora supimpa, delirante, que nossa vida não seja uma realidade. A vida parece ser o único dado palpável e provado em si. As ações como única realidade a deixar rastro no mundo, embora não produza nada de material como o trabalho e o labor, produz as únicas consequências perenes. Todo o material é perecível de certo modo, pois não foge à contingência do tempo. As ações (inclusos os pensamentos) têm realidade histórica e como tal se modificam, se transformam a cada degrau da escada espiral histórica. O ser humano e a humanidade (termos ultrapassado pelo indivíduo, pelo número, pela estatística, mas não pelo agonizante, mas nunca morto humanismo) não são seres estáticos, são seres históricos e como tal precisam mudar seu ambiente continuamente, quiçá corrigir suas falhas. Deste modo fica evidente a função do sonho como condutor da humanidade dos ares mais contaminados para ambientes mais herméticos, onde o veneno pode-se respirar privadamente (ou o inverso, porque nem sempre sabemos o que queremos e se o sabemos temos consciência deles). Sobre isso Eduardo Galeano é magistral:

A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar, afirma Eduardo Galeano.

 

quinta-feira, 20 de março de 2025

Ação

 


A ação é fundamental na filosofia de Hannah Arendt. Apenas com ela, os seres humanos, a humanidade pode mudar o mundo e a si própria através do constante nascimento de pessoas, de ideias, de novos tempos. Hannah foi uma das primeiras a entender que tudo se renova a todo o momento através da interação e da pluralidade, peças fundamentais de seu entendimento de política fundado principalmente em Aristóteles. Mas Aristóteles não via o papel da ação como Arendt. Na verdade, embora a ação seja importante para o filósofo grego (a política nunca havia sido tão estudada e descrita), Aristóteles, como todos que frequentaram a escola de Platão, dá maior valor à contemplação. Hannah dedica apenas um último livro à contemplação: A vida do espírito.

Hannah Arendt apesar de ser muito influenciada pela compreensão geral de política em Aristóteles ou pela descrição que o aluno brilhante de Platão fez como ninguém da política grega e da coisa pública (res publica), compreende ao contrário deste que somente pela ação o ser humano pode alcançar a felicidade depois que o homem depositou a fé no engenho das próprias mãos. Assim a ação passou a ser o valor fundamental para entender a condição humana. Sobre esse termo fundamental para as ciências humanas, o Dicionário de Análise do Discurso, de Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau conceitua:

Em certas perspectivas psicológicas, a ação é definida em termos de sua finalidade (“metas”), o que a inscreve em um quadro de intencionalidade e a estrutura em “plano de ação”, e como fenômeno de regulação, que a inscreve em um quadro intersubjetivo a partir da existência de uma interatividade (ação-reação). Esse ponto de vista funda uma teoria psicológica da ação: “Falar, como já se afirmou, não consiste somente na colocação em funcionamento de um sistema linguístico, objeto da atenção dos linguistas, mas é, antes, uma forma de função social...” [...] Na perspectiva pragmática, Austin e Searle sugeriram que “uma teoria da linguagem é uma parte de uma teoria da ação”, e que ela se define em função de sua finalidade, representando um papel de regulação em um quadro intersubjetivo. [...] Na perspectiva sociofilosófica de Habermas, uma teoria da linguagem deve se inscrever em uma teoria da ação, teoria que ele denomina “o agir comunicacional”. [...] Ela se caracteriza pelo fato de que toda ação é: teleológica, na medida em que os atores sociais põem em ação estratégias eficazes, racionais, a fim de chegar a um consenso; regulada, no sentido de que os movimentos acionais dependem das normas que são estabelecidas pelo grupo de que esses atores fazem parte; intersubjetiva, na medida em que os atores sociais colocam-se em cena, oferecendo ao outro uma certa imagem de si, para produzir um certo efeito sobre ele. (CHARAUDEAU, 2004, p.25 e 26).

Interação

 


Um fenômeno importante tanto para Hannah Arendt, Jüngen Habermas, como para outros filósofos preocupados com a política ou com a comunicação é a interação. Nem Hannah Arendt, nem Jüngen Habermas poderiam conceber suas teorias mais importantes sem considerar a interação. Esta, aliás, está no coração da teoria deles. Sobre a interação, o Dicionário de Análise do Discurso, de Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau conceitua:

Portanto a interação, embora siga regras estritas que possibilitam a comunicação, não segue um roteiro, ou seja, é construída pelo contato, pela pluralidade, porque ninguém pensa igual (se pensássemos, seria identidade) e, portanto, não é previsível, nem predizível. E de interação em interação, por acordos (ou desacordos reacordados) são engendradas as teias da história num tecido incomum e inconstante.

É de fato, o que oferece o mais forte grau de interatividade; porque, se todos os discursos implicam certas formas de interação entre emissor e receptor(es), isto se dá em graus muito diferentes, sendo a comunicação “face a face” desse ponto de vista a mais representativa dos mecanismos próprios de interação. Correlativamente, essa abordagem colocou em evidência a importância do papel que exercem na elaboração do discurso certos fenômenos completamente negligenciados até então pela descrição gramatical (marcadores conversacionais em todos os gêneros, repetições e reformulações, truncamento e retificações, hesitações e outros procedimentos de “reparação”), bem como a importância das dimensões relacional e afetiva no funcionamento das comunicações humanas, que estão longe de reduzir-se a uma “pura” troca de informações. Mais genericamente, os discursos são, nessa perspectiva, concebidos como construções coletivas, sendo que todos os seus componentes podem prestar-se à negociação entre os interactantes: se é verdade que preexistem às interações todos os tipos de regras (lexicais, sintáticas, pragmáticas, conversacionais etc.) que subjazem a seu funcionamento, elas são em sua maior parte suficientemente vagas para que seja possível, e mesmo necessário, “compor” com elas quando se “compõe” uma interação. Porque os sujeitos engajados em uma interação, nos diz Winkin, são comparáveis aos interpretes de uma partitura musical: “Mas, nesta vasta orquestra cultural, não há maestro nem partitura. Cada um toca de acordo com o outro. Só um observador exterior, isto é, um pesquisador da comunicação, pode progressivamente elaborar uma partitura escrita, que se revelará, talvez, bastante complexa”.

terça-feira, 18 de março de 2025

A Liberdade e a Coerção

 


A liberdade é considerada um dos valores dos liberais, tanto que faz parte do lema da Revolução Francesa: Igualdade, Liberdade e Fraternidade. Esta última para tentar conciliar os dois primeiros valores que no capitalismo são antagônicos. Para os socialistas estes valores passaram a ser relacionados ao econômico, o que seria pertinente se não fosse considerado suficiente essa relação. Para os anarquistas, que enfatizam a liberdade, considerando que os demais nascem desta primeira necessidade, apresenta-se uma solução muito mais eficiente, embora necessite de uma sociedade muito preparada moralmente para sua implantação. Algo que praticamente impossibilita sua realização, mas suas denúncias são palpáveis, vejamos as considerações do panfletário Errico Malatesta tirado de Os grandes escritos anarquistas:

A própria afirmação de que a existência do Estado não é natural e de que o contrato social que os funda beneficia muito mais uns que outros e que para a imensa maioria é extremamente danoso, coloca em outra vista o que aceitamos tão naturalmente. Malatesta constatava ainda que “o governo significa delegação de poder, isto é, abdicação da iniciativa e soberania de todos os homens nas mãos de poucos”. Acredito que hoje se tenha muita pouca dúvida disso.

O homem, como todos os seres vivos, se adapta às condições em que vive e transmite, através da herança cultural, seus hábitos adquiridos. Portanto, por nascer e viver na escravidão, por ser descendente de escravos, quando começou a pensar o homem acreditava que a escravidão era uma condição essencial à vida. A liberdade parecia impossível. Assim também o trabalhador foi forçado, por séculos, a depender da boa vontade do patrão para trabalhar, isto é, para obter pão. Acostumou-se a ter sua própria vida à disposição daqueles que possuíssem a terra e o capital. Passou a acreditar que seu senhor era aquele que lhe dava o pão, e perguntava ingenuamente como viveria se não tivesse um patrão.

Se acrescentarmos ao efeito natural do hábito a educação dada pelo patrão, pelo padre, pelo professor, que ensinam que o patrão e o governo são necessários; se acrescentarmos o juiz e o policial para pressionar aqueles que pensam de outra forma, e tentam difundir suas opiniões, entenderemos como o preconceito da utilidade e da necessidade do patrão e do governo são estabelecidos.

segunda-feira, 17 de março de 2025

O que somos?


   

O Renascimento e o Iluminismo nasceram centrados na figura do sujeito. Um sujeito ainda muito limitado no Renascimento, mas reivindicando bastante autonomia no Iluminismo, sobretudo na sua primeira fase de Kant a Hegel, da Crítica da Razão Pura (1781) à Fenomenologia do Espírito (1807). Um curto período, mas que perpassou todo o século XIX. Só em meados do século XIX começamos a pensar na modernidade tardia com Nietzsche, com Marx (1818-1893), Nietzsche (1844-1900) e, principalmente Freud (1856-1939). Começa e desconstrução da razão autônoma e, por consequência, do sujeito nos moldes do Iluminismo.

  Um fenômeno que nunca cessou de se auto-alimentar. O sujeito foi constantemente desmontado. Foi progressivamente alienado como Marx e Nietzsche denunciam de maneiras diferentes. Mas sobretudo desmontado e reconstruído seguida e constantemente como objetos diferentes (ou maquinas diferentes, como preferiria Deleuze). A modernidade ou o capitalismo foi progressivamente tomando os indivíduos por suas funções. José não é um semita ou um religioso. Também o é. Mas é sobretudo um carpinteiro. Tiago e João não são pregadores, nem viajantes, são pescadores. Cito exemplos religiosos da antiguidade para ser questionado justamente. Lá não havia essa demarcação, essa percepção. Mas na era moderna inegavelmente as pessoas perderam sua individualidade (no sentido de serem únicas) passaram a ser sobretudo o que fazem.

  Seu trabalho passa a ser o que são. E ser ocupa toda a existência. Não importa se adotemos uma ontologia antiga, medieval ou moderna. Ser ou Dasein. Não importa se fujamos para o existencialismo. O sujeito foi desmontado. Não há um ser-em-si, talvez nem um ser em relação à. Somos todos particularmente iguais no que nos é imposto de fora pra dentro, sobretudo por nós mesmos. Um poeta vive a sua vida captando signos. Um ferreiro a observar colunas ou outras coisas que desconhecia sobre seu oficio ou que poderia fazer melhor do que foi feito. Um jornalista na eterna angústia por acontecimentos ou desdobramentos. O oficio ultrapassa o período trabalhado e invade a vida. Tanto a pessoa (pessoa?) não se vê mais como uma razão autônoma, um sujeito no mundo, como os outros indivíduos também não o veem. Esclarecedora é uma passagem de Deleuze sobre Kafka:


   Se a calderaria, contudo, não é descrita por si mesma (o barco, aliás, é preso), é que jamais uma máquina é simplesmente técnica. Ao contrário, ela só é técnica como máquina social, tomando homens e mulheres em suas engrenagens, ou, antes, tendo homens e mulheres dentre suas engrenagens, não menos que coisas, estruturas, metais, matérias. Bem mais, Kafka não pensa somente nas condições de trabalho alienado, mecanizado, etc.: ele conhece tudo isso de muito perto, mas seu gênio é considerar que os homens e mulheres fazem parte da máquina, não somente em seu trabalho, mas ainda mais em suas atividades adjacentes, seu descanso, seus amores, seus protestos, suas indignações, etc. O mecânico é parte da maquina, não somente enquanto mecânico, mas no momento em quede cessa de sê-lo. [...] A máquina não é social sem se desmontar em todos os elementos conexos, que fazem máquina por seu turno. [...] É que a máquina é desejo, não que o desejo seja desejo da máquina, mas porque o desejo não cessa de fazer máquina da máquina, e de constituir uma nova engrenagem ao lado da engrenagem precedente, indefinidamente, mesmos essas engrenagens parecem se opor, ou funcionar de maneira discordante. O que faz máquina, falando propriamente, são as conexões, todas as conexões que conduzem a desmontagem. [DELEUZE, 2024. p.147 e 148]

domingo, 16 de março de 2025

Tem dia que é noite

 


Engels diz que "a história é o mundo das intenções inconscientes e dos fins não desejados" (CASTORIADIS, 1982, p.59). Essas afirmações colocam a história no escuro, ao sabor de um acaso não determinável. Mostra toda a herança hegeliana em Marx e Engels, praticamente ratificando o famoso Espírito da História, que dialeticamente "dá uma vida própria à história".

Portanto, "o hegelianismo como podemos em verdade ver, não está ultrapassado. Tudo o que é e tudo o que será real, é e será racional. Que Hegel pare esta realidade e esta racionalidade no momento em que aparece sua própria filosofia, enquanto que Marx as prolonga indefinidamente até e inclusive a humanidade comunista, não enfraquece o que dizemos, antes o reforça. O império da razão que, no primeiro caso, englobava (por um postulado especulativo necessário) o que já está dado, estende-se agora também a tudo o que poderá ser dado na história. O fato de que o que podemos dizer desde agora sobre o que será torna-se cada vez mais vago na medida em que nos afastamos do presente, provém de limitações contingentes do nosso conhecimento e sobretudo de que se trata de fazer; o que há por fazer; hoje e não de "dar receitas para as cozinhas socialistas do futuro". Mas esse futuro está desde já fixado em seu princípio: ele será liberdade, como o passado e o presente foram e são necessidade" (CASTORIADIS, 1982, p.56).

Conto do Théo

  A história de Théo seria uma teogonia? Se a questão se refere a um demiurgo, certamente não. Mas é uma história do todo-poderoso, oniscien...