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sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

O panfleto de Kant ou a vã esperança da razão

        


  Certamente o maior exemplo da crença de que a razão poderia governar o mundo, proporcionar entendimento nos diálogos, o fim das guerras é o autor de Paz Perpétua, Immanuel Kant. Resposta à pergunta: Que é esclarecimento [<Aufklärung>]? o autor mostra suas esperanças na razão autônoma ou na, como preferiu denominar, na passagem da menoridade para a maioridade intelectual.

    Embora seja algo importante e valioso tentar ter uma razão autônoma, a história posterior veio a mostrar que até mesmo o conceito iluminista de sujeito é discutível. Quanto mais a ideia de um ser intensamente influenciado por sua comunidade e suas paixões dentre outras inúmeras coisas conseguir pensar autonomamente. Ser um cartesiano a se isolar de tudo e julgar de fora o objeto de sua conjectura.

    Kant define o esclarecimento como a saída da menoridade intelectual e moral, numa clara alusão à passagem da infância[1] para a vida adulta[2]. Kant faz uma analogia usando uma construção histórica, a infância[3], faz um discurso metafísico sobre uma condição do tempo dele e também do nosso, mas que não existia antes da modernidade e portanto não se refere a uma verdade eterna, problema no qual quase toda metafisica, pelo menos até Hegel esbarra e muitos filósofos contemporâneos que ainda pensam em metafisicas a-históricas ainda esbarram: o problema do fluxo do pré-socrático Heráclito ainda hoje milhares de anos após a morte deste.

    Entretanto como é uma metáfora não há nenhum problema, pois a metáfora pode se referir ao imaginário e ainda assim referir-se a situações reais. A questão de fundo é a autonomia, mais precisamente a autonomia de pensamento ou a razão autônoma. Um problema extremamente pertinente ao período no qual viveu Kant, no qual há uma revalorização da racionalidade e a separação progressiva entre filosofia e teologia, com a crescente autonomia tanto da filosofia quanto das ciências, que começaram o processo muito mais cedo, mesmo ainda dentro da filosofia, da teologia. A teologia perde essas muletas e perde muito do seu poderio e domínio. Por outro lado, a filosofia parece reencontrar sua autonomia, sua maioridade, pelo menos no discurso dos iluministas, nos quais Kant se insere, que chamam a Idade Média de Idade das Trevas ou A longa noite.

    A passagem da menoridade para a maioridade parece ser o chamado a esse novo tempo. A época que a humanidade pode alcançar a maioridade ao pensar por si própria. O fato de ele enfatizar nos exemplos a religião, por ser um reduto onde o dirigismo é valorizado, conforme ele próprio escreve:

Acentuei preferentemente em matéria religiosa o ponto principal do esclarecimento [<Aufklärung>], a saída do homem de sua menoridade, da qual tem a culpa. Porque no que se refere às artes e ciências nossos senhores não têm nenhum interesse em exercer a tutela sobre seus súditos, além de que também aquela menoridade é de todas a mais prejudicial e a mais desonrosa. (KANT, p.6).

    Nesse ambiente, Kant foi alimentado com ótimos argumentos para construir a sua tese, que é uma das fundamentais da Idade Moderna. Ou seja, que a maioridade intelectual é garantida pelo pensamento autônomo. A razão autônoma era justamente o que os primeiros filósofos da modernidade buscavam, este segundo Kant só poderia se manifestar publicamente, pois privadamente enfrenta obstáculos que não deixam a razão ser livre. A liberdade é, em termos aristotélicos, republicana, ou seja, garantida pelo desejo de bem comum que deve ser mais forte que o desejo particular de qualquer governante ou administração. Nesse sentido, Kant faz uma distinção entre as razões usadas nos empregos particulares, mesmo que tenham por objetivo o bem público, da razão usada publicamente: a primeira deve ser obediente aos preceitos do cargo e da autoridade a qual servem, a segunda deve ser livre e, portanto, autônoma.

    Embora Kant afirme que no espaço público atue a razão autônoma, ele demonstra que esta é propiciada por alguns, embora se torne propriedade pública como preceito e, portanto, ao mesmo tempo torna a razão do público não autônoma, pois esta é tomada como um preceito. Kant estabelece, assim, uma dialética do conhecimento onde um mesmo exercício que liberta também cria a dependência de outros. Mas Kant tem uma fé no aumento da liberdade através dos constantes exercícios da razão autônoma, pois cada vez mais, mais pessoas se libertam ao fazer uso da filosofia.

    Infelizmente ao se calcar na autonomia, a tese kantiana se torna complicada após o surgimento de Freud e Marx e sobretudo da Escola de Frankfurt que demonstram respectivamente o eclipse da razão e da autonomia da mesma. Mas ninguém pode negar que expressou muito bem a sua época.



[1] A palavra infância, do latim infantia, significa incapacidade de falar. Até a Idade Moderna considerava-se que a criança não teria condições de expressar seus pensamentos e seus sentimentos. A palavra infância carrega consigo o estigma da incapacidade, da incompletude, impondo-lhes uma condição subalterna diante dos adultos.

[2] Quando o ser passa a ser responsável por si mesmo.

[3] A infância é uma construção da Idade Moderna, a ideia de proteção e de latência inexistia até quase o fim da Idade Média.


quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Reflexões sobre Kafka e a modernidade tardia

     Perguntamos-nos se a mudança da autonomia para a heteronomia seria um dos fatores que divide as etapas da modernidade. E se em caso afirmativo, as obras de Franz Kafka são um retrato dessa mudança? Buscamos investigar se os livros de Franz Kafka retratam uma sociedade em que a política (enquanto poder ou Estado) invade o domínio particular e substitui o papel central da razão da primeira fase da modernidade pela opressão da cultura (no sentido mais amplo que se possa dar à cultura). Assim a sujeição do Sujeito (Ego) ao Pai ou ao Estado (Superego) na obra de Franz Kafka possivelmente retrate a mudança de etapa na modernidade.

    Assim pensando na troca da autonomia pela heteronomia como uma das principais condições para o surgimento de uma segunda etapa da modernidade, no livro Carta ao pai de Franz Kafka, o autor demonstra ser oprimido por algo externo: seu pai que lhe repassa os valores societários e reage, dentro de suas possibilidades ao que lhe impede de ser tão autônomo quanto gostaria.

    Na aurora da modernidade como resposta à heteronomia da Idade Média, surge um sujeito autônomo que garante sua autonomia usando a razão. Segundo Nery:

Com a inauguração dos tempos modernos, o homem se torna o centro, a medida do conhecimento em que tudo está estritamente ligada à razão. Daí a importância da compreensão da modernidade para, então, se compreender como foi descoberta a ideia de sujeito, de agente dominador. [...] Não é mais a vontade da divindade e entidades que garantem ou definem o sentido do agir humano, é o próprio sujeito quem dá significado à sua existência. O próprio indivíduo é responsável pelo progresso ou decadência da sua vida. (NERY, 2011, p.34 e 35).

    Nery afirma que o grande propagador do projeto moderno, o Iluminismo, depositou uma confiança cega e ilimitada na razão. Esta chegaria “a um estágio de desenvolvimento que ela seria capaz de dissipar as trevas da ignorância que obscurecem o espírito humano” (2011, p.35 e 36). E, partindo do mesmo pressuposto, Habermas demonstra como a exacerbação dos valores da modernidade conduz ao esvaziamento do sujeito.

O mundo de exteriorização e apropriação das forças essenciais deve-se, por um lado, à dinamização do conceito aristotélico da forma: o indivíduo desdobra suas forças essenciais mediante sua própria atividade produtiva; e, por outro, à mediação conduzida pela filosofia da reflexão do conceito aristotélico com o conceito de forma estética: as objetivações, nas quais a subjetividade assume forma exterior, são simultaneamente a expressão simbólica de um ato de criação consciente e de um processo inconsciente de formação. A produtividade do gênio artístico é, por isso, o protótipo para uma atividade em que autonomia e auto-realização se unificam de tal modo, que a objetivação das forças humanas essenciais perde o caráter coercitivo em face da natureza tanto externa como interna. (HABERMAS, 2000, p. 111 e 112).

    Nery caracteriza mais detalhadamente esse fenômeno que é a desconstrução do sujeito “onipotente” da primeira fase da modernidade. Mostra como o capitalismo e a sociedade civil vão desarticulando e mostrando o quão eram falsas as liberdades do início da modernidade até o seu auge com Kant e depois Hegel. Nery mostra sobretudo como é a própria radicalização do sujeito, ou melhor de sua individualidade que leva a isso:

Numa incessante busca do seu bem-estar e uma supervalorização do EU, o indivíduo moderno torna-se frágil e vulnerável á medida que se fecha para o outro e imerge dentro de si. Esse individualismo estimulado pelo consumismo foi esvaziando o sujeito a tal ponto que ele já não tem mais forças para lutar pelos ideais comunitários e transfere a responsabilidade política para os partidos por não ter tempo disponível para a “res publica” estando envolvido nos seus próprios negócios, em seu mundo, cuidando dos seus interesses. [...] Todas as instituições, organizações e todos os valores estão sendo esvaziados de sua substância. O saber, o poder, o trabalho, o exército, a família, a Igreja, já não estão em funcionamento como princípios absolutos e intangíveis. Há uma descrença geral em todos eles. [...] Entretanto, o sistema funciona e as instituições se desenvolvem multiplicando-se assustadoramente, a diferença é que agora num ritmo livre e leve, no vazio e sem sentido. É preciso saber viver ou sobreviver nos “espaços desativados”. (NERY, 2011, p.42 e 43).

    Sigmund Freud, que juntamente com Nietzsche e Marx, são responsáveis pelas três investidas mais impactantes contra a autonomia do sujeito, propôs que o homem além do eu (ego), é controlado por outras duas instâncias: o ID (instintos, o original) e o Superego (a domesticação do Complexo de Édipo). Deste modo Freud explica a formação do Superego como superação do Édipo e consequentemente uma parte do Id (dos instintos) dentro do Ego (o Eu racional):

O superego, contudo, não é simplesmente um resíduo das primitivas escolhas objetais do id; ele também representa uma formação reativa enérgica contra essas escolhas. A sua relação com o ego não se exaure com o preceito: ‘Você deveria ser assim (como o seu pai)’. Ela também compreende a proibição: ‘Você não pode ser assim (como o seu pai), isto é, você não pode fazer tudo o que ele faz; certas coisas são prerrogativas dele.’ Esse aspecto duplo do ideal do ego deriva do fato de que o ideal do ego tem a missão de reprimir o complexo de Édipo; em verdade, é a esse evento revolucionário que ele deve a sua existência. É claro que a repressão do complexo de Édipo não era tarefa fácil. Os pais da criança, e especialmente o pai, eram percebidos como obstáculo a uma realização dos desejos edipianos, de maneira que o ego infantil fortificou-se para a execução da repressão erguendo esse mesmo obstáculo dentro de si próprio. Para realizar isso, tomou emprestado, por assim dizer, força ao pai, e este empréstimo constituiu um ato extraordinariamente momentoso. O superego retém o caráter do pai, enquanto que quanto mais poderoso o complexo de Édipo e mais rapidamente sucumbir à repressão (sob a influência da autoridade do ensino religioso, da educação escolar e da leitura), mais severa será posteriormente a dominação do superego sobre o ego, sob a forma de consciência (conscience) ou, talvez, de um sentimento inconsciente de culpa. (FREUD, 1927)

    O fundador da psiquiatria mostra que o Superego (ou ideal do Ego) tem uma natureza tanto histórica quanto biológica o que o aproxima muito do tipo de construção que Piaget, Genet e os estruturalistas proporiam bem depois. Mas a coincidência se resume apenas a essa conjunção biológico temporal, pois Freud privilegia os aspectos morais. Desse modo, Freud demonstra como os valores de autoridade são internalizados. Mostra que através do desejo do poder do pai que tem a posse do que mais deseja, o menino passa a incorporar os valores do pai por cópia. Tudo isso graças ao processo de domínio do Complexo de Édipo:

Erigindo esse ideal do ego, o ego dominou o complexo de Édipo e, ao mesmo tempo, colocou-se em sujeição ao id. Enquanto que o ego é essencialmente o representante do mundo externo, da realidade, o superego coloca-se, em contraste com ele, como representante do mundo interno, do id. Os conflitos entre o ego e o ideal, como agora estamos preparados para descobrir, em última análise refletirão o contraste entre o que é real e o que é psíquico, entre o mundo externo e o mundo interno. (FREUD, 1927)

    Ele também demonstra, o que é mais importante para nossa tese, que o processo não termina neste momento, mas prossegue por toda a vida como incorporação da autoridade. Afirma ele:

É fácil demonstrar que o ideal do ego responde a tudo o que é esperado da mais alta natureza do homem. Como substituto de um anseio pelo pai, ele contém o germe do qual todas as religiões evolveram. O autojulgamento que declara que o ego não alcança o seu ideal, produz o sentimento religioso de humildade a que o crente apela em seu anseio. À medida que uma criança cresce, o papel do pai é exercido pelos professores e outras pessoas colocadas em posição de autoridade; suas injunções e proibições permanecem poderosas no ideal do ego e continuam, sob a forma de consciência (conscience), a exercer a censura moral. A tensão entre as exigências da consciência e os desempenhos concretos do ego é experimentada como sentimento de culpa. Os sentimentos sociais repousam em identificações com outras pessoas, na base de possuírem o mesmo ideal do ego. [...] A religião, a moralidade e um senso social - os principais elementos do lado superior do homem - foram originalmente uma só e mesma coisa. Segundo a hipótese que apresentei em Totem e Tabu, foram filogeneticamente adquiridos a partir do complexo paterno: a religião e a repressão moral através do processo de dominar o próprio complexo de Édipo, e o sentimento social mediante a necessidade de superar a rivalidade que então permaneceu entre os membros da geração mais nova. (FREUD, 1927)

    Em seu livro Totem e Tabu, Freud, falando sobre obsessão (dos neuróticos),[1] afirma que “a [...] mais óbvia coincidência das proibições obsessivas [...] com o tabu está em que são igualmente desprovidas de motivação e enigmáticas em sua origem” (2013, p. 21). Há um paralelo formidável também com a internalização da autoridade pelo superego, que embora descrito pelo psiquiatra como forma de superação do Complexo de Édipo, atua de maneira inconsciente como intromissão do Id no Ego. Freud prossegue a explicação:

Apareceram um belo dia e têm de ser observadas, devido um medo invencível. É desnecessária uma ameaça de castigo externa (uma consciência) de que a transgressão ocasionará uma intolerável desgraça. O máximo que um doente obsessivo pode comunicar é o vago pressentimento de que uma determinada pessoa de seu ambiente será prejudicada por tal transgressão. Não se sabe qual será este prejuízo, e mesmo essa pouca informação é obtida mais por ocasião dos atos expiatórios e defensivos [...] do que das proibições mesmas. (FREUD, 2013, p. 21 e 22)

    Como podemos notar, há mais semelhanças ainda entre os tabus e as determinações do superego para as quais a sanção apesar de temida não é clara, possivelmente até desconhecida. É bom lembrar que essas determinações do superego constituem segundo as próprias palavras de Freud o mais nobre de nosso ego. Estão relacionadas à nossa civilidade como podemos encontrar em outro livro dele: O mal estar da civilização onde demonstram que as instituições civilizatórias como escolas e igrejas castram o que há de mais natural e original no sujeito, mas possibilitam a civilização, a convivência civilizada.

    É sobre esse caldo todo que procuraremos entrecruzar as informações e tentar demonstrar a factibilidade da tese que é o máximo que poderemos fazer, provar sua veracidade fica para pesquisadores mais argutos e com maior conhecimento das partes. Primeiro é preciso demonstrar uma possível relação entre a compreensão filosófica e a psicológica da passagem da primeira para a segunda fase da modernidade[2]. Depois será tentado correlacionar a obra Carta ao Pai de Franz Kafka com as manifestações do superego e as mudanças ocasionadas pelo período, tanto do surgimento no autor do superego quanto com as relações societárias percebidas a partir da segunda fase do modernismo.

    Cabe então fazer uma breve contextualização, já que o início já está longe, tentando correlacionar os conceitos sobre a mudança da percepção entre as fases da modernidade. É interessante lembrar que a primeira fase está alicerçada (ou fundada, não sei qual termo expressa melhor) na autonomia do sujeito, ou seja, de um eu (ego) independente. É bom lembrar que o mais autentico da modernidade, o iluminismo, firma-se precisamente na oposição entre a idade da luz (da razão, podemos traduzir precariamente em um ego) e a idade das trevas (onde a razão não tem domínio, portanto anterior ao ego o que pra Freud seria um Id ainda não domesticado) [3]. A segunda fase da modernidade surge exatamente da descoberta de que o sujeito não é tão autônomo como se pensava.[4] Curiosamente o superego é exatamente a constatação feita por parte do Id ao domínio egóico. Para Freud, ao contrario do que comumente se pensa as três instancias[5] não são independentes, sequer são definitivamente separadas. Há uma parte do Id (inconsciente) restante dentro do Ego (consciente) e parte desse Id se transforma em Superego. Essa parte do Inconsciente transformada se transforma numa instancia que está sempre a cobrar as falhas do Ego. A segunda fase da modernidade não nasce justamente com esse pensamento: a fragilidade do sujeito (eu, ego) ou da racionalidade do sujeito ou do sujeito racional? Obviamente raciocinar por paralelismos não pode assegurar veracidades, só garante semelhanças, mas o que se pretende é tão somente levantar um assunto, demonstrar sua viabilidade.

    Rosa afirma que Franz Kafka “[...] trata de modo constante e progressivo o tema da Lei e, em especial, da Lei paterna”.  Ela exemplifica isso ao revelar que o escritor considerou a possibilidade de publicar um volume intitulado "Punições", que incluiria as obras: O veredicto (1912), A metamorfose (1915) e Na Colônia Penal (1914). Ao descrever a obra, Rosa mostra como a sombra da autoridade paterna debilita o autor:

Em O Veredicto (KAFKA, 1998[1912]), surpreendemo-nos com o despertar aparentemente imotivado e caprichoso da ira paterna, ira que dará lugar ao enunciado de uma sentença de morte ("eu o condeno à morte por afogamento") que o filho se apressará em cumprir. Em A Metamorfose (KAFKA, 1965[1915]), um dia o filho acorda transformado em inseto e enfrenta o poder destrutivo do pai. Em Na Colônia Penal (KAFKA, 1998[1914]), temos um observador que assiste a uma cerimônia de tortura e execução, cerimônia levada a efeito por uma máquina, operada por um oficial, que escreve nas costas de cada condenado a sentença que lhe cabe: o sujeito recebe assim, na carne, o peso da Lei.

    A própria perda de potencia do sujeito na segunda fase da modernidade está também bem expressa em Kafka, segundo Carone apud Rosa:

[...] diante do impasse moderno da perda da noção de totalidade, aquele que narra, em Kafka, não sabe nada ou quase nada sobre o que de fato acontece - do mesmo modo, portanto, que o personagem. Trata-se, quando muito, de visões parceladas, e é essa circunstância que obscurece o horizonte da narrativa e obriga quem lê a mapear por dentro a falsa consciência se se quiser, a alienação -, pois o narrador não tem chance de ser um agente esclarecedor ou 'iluminista' (CARONE apud ROSA).

    Outros traços como a perversidade do Superego e como ele fragiliza o Ego com as suas constantes criticas infundadas também estão presentes em Kafka. Benjamin apud Rosa mostra como em vários livros de Kafka,

[...] o pai é a figura que pune. A culpa o atrai, como atrai os funcionários da Justiça. Há muitos indícios de que o mundo dos funcionários e o mundo dos pais são idênticos para Kafka. Essa semelhança não os honra. Ela é feita de estupidez, degradação e imundície. O uniforme do pai é cheio de nódoas, sua roupa de baixo é suja. A imundície é o elemento vital do funcionário (BENJAMIN apud ROSA).

    O sujeito (ou o ego) é tão fragilizado que mesmo o pai, embora sua autoridade persista se torna o mesmo nada que os personagens angustiados de Kafka. É como se os homens fosse niilizados segundo Rosa:

A atração pela culpa une o pai aos funcionários da Justiça, degradando-os e lançando na abjeção o mundo do funcionalismo e em seu funcionamento burocrático. Se nos servirmos da teoria da burocracia, tal como a concebeu Max Weber (2010) em seu A ética protestante e o espírito do capitalismo, encontramos entre seus elementos definidores uma impessoalidade que faz com que os funcionários se limitem a cumprir tarefas em um funcionamento considerado completamente previsível, dado que fundado em normas e regulamentos rígidos que acabam sendo um fim em si mesmos. Além dessa última, a burocracia gera disfunções tais como um formalismo excessivo, uma conformidade à rotina, uma incapacidade de lidar com a informalidade e a variabilidade humana e, essencial para o que nos interessa no momento, uma despersonalização. Posto isso, ao aproximar o pai dos funcionários da Justiça, Kafka deixa subentendida uma leitura da função paterna não apenas pela via de uma satisfação pulsional perversa, uma vez que atraídos pela culpa, mas também pela via da burocracia, ou seja, da impessoalidade, da despersonalização, [...] do anonimato.

    Portanto, os textos de Kafka, de forma metafórica espelham o seu tempo com sujeitos debilitados e oprimidos por suas obrigações, por uma sociedade burocrática. A burocracia é fruto da modernidade e é exaltada por Hegel, por exemplo, um dos filósofos que mais exaltaram o progresso do mundo moderno e a sociedade burocrática como espaço da liberdade. Kafka demonstra exatamente o oposto, pois, apoia-se no espirito de seu tempo já bastante influenciado pela alienação de Marx, o Inconsciente de Freud e a crítica da razão de Nietzsche.

    Basta ler trechos do inicio da carta de Franz Kafka a seu pai para perceber como o poder paterno repercute nele como um apequenador que o torna quase um não-sujeito. Mostra como o psicológico torna a autoridade do pai, mesmo fora de seu papel típico, grandiosa e assustadora. Vejamos:

Querido Pai:

Você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Como de costume, não soube responder, em parte justamente por causa do medo que tenho de você, em parte porque na motivação desse medo intervêm tantos pormenores, que mal poderia reuni-los numa fala. [...] também ao escrever, o medo e suas consequências me inibem diante de você e porque a magnitude do assunto ultrapassa de longe minha memória e meu entendimento. [...] Naturalmente não digo que me tornei o que sou só por influencia sua. Seria muito exagerado (e até me inclino a esse exagero). É bem possível  que, mesmo que eu tivesse crescido totalmente livre da sua influência, eu não pudesse me tornar um ser humano na medida do seu coração. Provavelmente seria um homem sem vigor, medroso, hesitante, inquieto [...], mas completamente diferente do que sou na realidade [...] Eu teria sido feliz por tê-lo como amigo, chefe, tio, avô, até mesmo (embora mais hesitante) como sogro. Mas justamente como pai você era forte demais pra mim, principalmente porque meus irmãos morreram pequenos, minhas irmãs só vieram muito depois e eu tive, portanto, de suportar inteiramente só o primeiro golpe, e para isso eu era fraco demais. (KAFKA, 1997, p.7, 9 e 10)

    Como se vê demonstrando muitos dos os elementos do mito da formação do superego, tal como a fragilidade com relação ao adulto que detém poderes que ele não dispõe e que torna a luta desigual.  No mesmo livro estão presentes também o temor da autoridade provocado pelo superego e a fragilização da autonomia do sujeito que mesmo podendo decidir sem nada que materialmente ou realmente o entrave, se torna um vacilante, inseguro das decisões mais seguras que pudesse tomar.

 

Referencias:

KAFKA, Franz. Carta ao Pai. São Paulo: Companhia das letras, 1997. 88p.

FREUD, Sigmund. Ego, Id e outros trabalhos – volume XIX de Obras Completas de Freud. Londres: Hogarth Press e Instituto de Psicanálise, 1927.

FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2013. 169p.

HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 540p.

NERY, Daniel. A discussão filosófica da modernidade e da pós-modernidade. Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.13, 2011 in http://www.ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/revistalable/3_DANIEL_NERY_DA_CRUZ.pdf

(http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=1984-0292)

ROSA, Márcia. Franz Kafka: a ultrapassagem da burocratização da instância paterna e da voz áfona do supereu.  Fractal : Revista de Psicologia vol.23 no.2. Rio de Janeiro, 2011 in (http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=1984-0292)



[1] É bom não se impressionar obsessivamente pela palavra que para alguns ainda é tabu apesar de vivermos numa sociedade neurótica e obsessiva (vejamos o consumo, o medo, a insegurança pessoal, etc.).

[2] A conceituação das duas fases está no início do texto.

[3] Em Ego, Id e outros trabalhos, Freud mostra que o Ego é uma domesticação de parte do Id ainda na pré-história.

[4] Os três principais pensadores que introduziram essa dúvida já foram anteriormente citados: Freud, Marx e Nietzsche.

[5] Id, Ego e Superego

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

A verdade e o verdadeiro

 

É uma obrigação moderna conhecermos a verdade para manifestá-la mesmo quando estamos mentindo, isto é negando-a. Na modernidade, toda a natureza, isto é, todo o ambiente que nos cerca é matéria-prima para ser manipulada por nós. É nossa propriedade, por assim dizer. Sobretudo a verdade, nossa mais trivial matéria-prima. Tornamo-nos donos da verdade.

Poxa! Mas quanta besteira tu falas! Não há verdades universais! Nem que dois mais dois são quatro, pois é pura analítica, uma verdade que encerra a si mesma, que apenas admite verificação. Uma verificação inútil, pois apenas confirma a si mesma. Pois bem... Como é feito nosso pensamento? Nós não pensamos quase sempre através de preconceitos (de antes dos conceitos), de verdades prontas, anátemas, como tudo o que é líquido molha, os cisnes são brancos, nossos genes determinam quem nós somos ou a inversa: nós somos o que aprendemos ser. Mesmo todos sabendo que ninguém é. Tudo flui (panta-rei).

Temos verdades prontas que nos livram da dor de parir um conceito. Conceito não é uma coisa simples. Pode nascer de um insight, “um clique”, mas é preciso trabalhar muito um clique para delimitar seu universo, testar todos os limites, conhecer todo o universo particular “concebido”, conhecer suas propriedades. E mesmo depois de tudo isso, se maravilhar por ter construído um ponto de partida ou uma ponte para o que futuramente poderá ser aí sim um conceito.

As verdades nos dão uma enorme segurança num mundo pós-iluminista no qual as incertezas e o desconhecido são “buracos negros”, sugam-nos e nos jogam no limbo, na estranheza. Não admitimos estar num mundo desconstruído, tudo necessita ser palpável, abaixo de nós sempre terá um chão. É inadmissível andar pelo teto, mesmo que a Terra esteja de cabeça pra baixo. Temos uma orientação universal. Não importa se estamos de um lado ou de outro, acima ou abaixo: sempre abaixo de nós está o chão e acima o teto ou o céu. Alimentamo-nos de verdades inquestionáveis. Ai de quem as examine!

A modernidade morta nas artes e arquitetura, transformada na filosofia e nas ciências ainda é a doutrina nas nobres aplicações das ciências (engenharias e medicina) e da filosofia (pedagogia e direito). A maioria dos engenheiros, médicos, professores, advogados, juízes, promotores sabem que a razão iluminista falhou. No entanto, sabem que o uso delas manteve a eficácia. Um bom médico não pode se importar se a aplicação de um placebo com muito menores efeitos colaterais surte mais efeito que o fármaco indicado para a enfermidade. A não ser que seja um purista disposto a arriscar a saúde do paciente em nome de uma verdade. 

domingo, 26 de janeiro de 2025

Dialética da certeza

     


     Hegel afirma em fenomenologia dos espíritos que o saber que nos interessa é o imediato e que a certeza sensível nos leva à certezas tidas como “o mais rico conhecimento”, embora sejam entretanto a “verdade mais abstrata e mais pobre”, pois ela exprime somente o que ela é. O Eu é um puro este e o Objeto um puro isto. Estabelecem uma relação na qual não levam a nenhum conhecimento, nenhum relacionamento, repete os termos como eles são sem acrescentar nenhum conhecimento, apenas repetindo que o objeto é o que é e que o objeto não é o que ele não é.

    Ao fazer uma simples experiência de guardar uma expressão que é verdadeira num momento para verifica-la em outro momento e descobri-la falsa, percebe que nem sujeito, nem objeto permanecem sempre verdadeiros, não são universais. Assim descobre que o universal está no singular, porque todo instante é singular e que a única verdade é a do movimento e que assim a essência não está nem no sujeito, nem no objeto, mas no movimento, na dialética da certeza sensível que afirma inicialmente o que é e consequentemente o que não é, mas percebo que já não é o mesmo e assim, que ele era foi suprassumido por um novo, mas esse também não é a sua verdade visto que esse também será superado conservando. Assim a verdade está no movimento e é este que deve interessar a filosofia, a experiência deve ser a própria filosofia.

O Cético e o Racionalista - finalmente um reconto

 

Nascera desconfiado. Era um cético à procura de verdades evidentes. Nunca as encontrara. Não acreditava em verdades, nas mentiras sim. Estas eram muito mais sinceras. Eram versões imperfeitas e pessoais dos fatos conhecidos. As verdades não, todas muito soberbas, evocavam para si uma credibilidade que ninguém tem.

Pensava: se eu não acredito nem em mim mesmo, porque vou acreditar em fatos externos a mim, que independem de meu domínio e os quais nunca poderei comprovar. Quando alguém vinha lhe falar, perguntava se o que vinha lhe dizer era uma mentira. Se o fosse era todo ouvidos, mas se esta tinha pretensões de veracidade logo despachava o sujeito para o terreiro do lado onde percutiam batidas compassadas de um coração ingênuo.

Passava o dia em meio a seus livros, à espera do próximo incauto que viesse tentar lhe comunicar algum fato indiscutível. Pensava: Rosseau estava certíssimo em sua notória embromação de que o homem nasce bom e a humanidade, com suas supostas verdades, é que o corrompe e o torna tão ignóbil, mesquinho e mau. Adorava descrençar os incautos visitantes que invariavelmente viam o mundo como uma seqüência de oportunidades e não como uma seqüência de lutas e desafios impossíveis em que a única alegria possível era a da consciência tranqüila de lutar contra eles.

Sabia-se taxativamente louco, como o era o alienista de um notável romance de Machado de Assis. Num mundo de loucos, quem tem a sobriedade exacerbada não tem outro destino que não seja a descrença e o desprezo. Bem o sabia, mas infelizmente o professor de matemática do jovem Albert Einstein e o resto dos bons homens não. Mas ao contrário de todos os outros que sabem aquilo que mais ninguém sabe, não tinha nenhum orgulho disso. Pelo contrário havia certo pesar nessa situação, pois a única coisa que não desejava era possuir uma verdade.

As verdades, danosas e imprestáveis, não deveriam ter dono, ninguém pra suportar o peso de provocar um mal tão irreversível à humanidade. A verdade deveria ser pública como os homens públicos e mulheres públicas, porque como eles a verdade não tem donos e está sempre a serviço de alguém. Dizia ele: a verdade faz até tremular bandeiras onde não tem vento. Faz do menos culpado, culpado solitário e do mais culpado, inocente. Aliás, se alguém se jurava inocente ele logo sabia que aquele era o mais culpado. Poderia haver outros culpados, mas o principal culpado era aquele, provavelmente, porque toda exceção tem sua regra também. Bom... no mínimo este era culpado de se declarar inexistente, pois inocente ninguém é.

O seu vizinho, um notório cientista, três vezes indicado ao Nobel, acreditava em tudo que pudessem lhe provar cientificamente. Era um inocente desvairado pelas ilusões da ciência. Como se a ciência fosse um campo neutro, isento das desvirtuações do mundo. Como se o homem pudesse conceber verdades. Aquela ingenuidade daquele cientista o irritava, pois ele sabia que este era um bom homem com ótimos princípios e intenções, mas se encontrava naquele chafurdar na lama, fazendo sua parte na deturpação/perversão do mundo.

Este se encontrava sempre em seu laboratório que quase dividia parede com a biblioteca de nosso personagem. E passava dias e noites por lá quando decidia hibernar em busca de uma descoberta. Algumas vezes viajava e ficava meses longe de seu laboratório. Era um tipo muito estranho: ou ficava meses ou anos sem sair ou ficava semanas ou meses sem voltar ao seu local preferido. Nosso personagem preferia a sua temperança rotineira de passar horas na biblioteca, mas não contíguas e quase que estabelecer uma rotina pra não cair na inconsistência de seu vizinho. Mas também, quem acredita em verdades é capaz de acreditar ou fazer qualquer coisa mesmo, pensava ele em voz altíssima.

Se não fossem visinhos aqueles primos segundos nunca saberiam um da existência do outro e não carregariam para si o peso da inconsciência do outro. Ainda que nunca tenham discutido ou se cumprimentado, apesar do desprezo que ambos davam um ao outro, ambos se tornaram mutuamente primordiais, modelos do que é o mais pérfido.

 

O conto do veio - outro desconto

 

Certa vez, ao chegar perto do buraco branco, Coronel Josias desfiava seus rosários de contos, causos e anedotas quando viu o que nunca tinha visto: o invisível, algo que para ele definitivamente não existia. Aquele ocorrido lhe parecia como se ele tivesse fisgado um rio com sua módica vara de pescar. Uma vara cuja linha já tinha estado em contato intimo com praticamente todos os rios daquele sertão.

Vivia ele naquele deserto de gente, oceano de perigos, sem perceber que o isolacionismo era uma doutrina sua. Uma idéia que havia criado para si mesmo. Se às vezes atravessava o muro e se debatia em uma convulsão de vozes era tão somente para se preencher daqueles pequenos ecos do silêncio que precedem e intermeiam as falas. Mas como numa metrópole o silêncio é quase absoluto ao tentarmos impudicamente achar significados para as palavras soltas, ele ia, ficava algum tempo e logo se enfadava. Não conseguia travar qualquer discurso exterior a seu mundo.

Logo voltava a sua selva particular e fechava o portão de qualquer externidade. Sentava-se em sua cama, bem de frente a uma pequena mesa onde se podia facilmente avistar uma pequena máquina de escrever, e retomava seus pesadelos. Era o que tinha de mais orgânico em sua intensa artificialidade. Dizia ele: sonhar é para fracos, quem é digno de se chamar ser humano deve saber enfrentar os pesadelos. E os caçava. E os tinha. Dia-a-dia cada vez mais profundos e desafiadores.

Coronel Josias, cético como era só acreditava no que via ou no que presenciara. Tanto que renegava um filho que nasceu no hospital. Não vira seu nascimento. Não sabia se ele era filho pelo menos de sua ex-mulher. Bom... mas isso pouco importa porque ele renegara a sua família, a qual fazia questão de dizer a todos que quisessem ouvir que não a tinha. A família é que quisera ter ele. Mas isso é outra coisa que não muda nada a nossa história, nem a do personagem, pois ninguém se disporá a ouvir sobre a família dele, nem sobre nada que ele falasse em sua estranha maneira de conceber o mundo.

O certo mesmo é que todo dia ele tentava contato com o mundo exterior e tomava todas as iniciativas para se isolar. Passava toda as manhãs das terças, quartas, quintas, sábados e domingos escrevendo seus pesadelos. Nas tardes de segunda,quarta, quinta, sexta, sábado e domingo os tinha. Nas manhãs de segunda e sexta ele contava seus pesadelos para ninguém e era ovacionado sempre por calorosas palmas de silêncio. Nada lhe agradava mais. À noite ele curtia prazerosamente sua costumeira insônia e aproveitava para ter pesadelos nos breves intervalos que esta lhe cedia. Acreditava ele os pesadelos da noite serem os mais elaborados.

Há anos vivia naquele mundo imaginário. Um mundo intenso da única presença que suportava: a dele mesmo. Criara um deserto humano para seu maior conforto. E desde então, sem nenhum intervencionismo que não seja o dele próprio, começou a brigar com seus monstros internos numa intensa e incessante batalha à qual ele faz questão que não hajam vencidos, nem vencedores.

Ele era considerado uma incógnita por todos que conseguiam se aproximar e desconhecê-lo um pouco. Poucos o conseguiam, é verdade. Mas para os escassos que tiveram acesso algum dia a figura, praticamente nada lhes adiantava senão para terem uma noção do desconhecido, caótico e impreciso.

Já construira e desfizera milhares de contos naquela sua precisa maquina de escrever uma letra sim, outra não. Tinha um intenso orgulho de sua transitoriedade enquanto um ser absoluto em sua existência. Sabia que seu fim não seria tão providencial para ninguém como seria para si mesmo. Enquanto isso curtia intensamente suas dores, temores e medos como causa necessária da particular beleza que criara para si mesmo. Sabia que ninguém em seu mundo solitário poderia ser tão corajoso quanto ele. Não que isso tivesse alguma importância para ele. Classificações, catalogações lhe causavam ate ânsia de vomito. Maniqueísmo então, tinha um nojo profundo dele.

Passava os dias em profunda apreensão, como cabia a seu espírito inquieto e profundamente angustiado. Havia um certo heroísmo em conviver com os inúmeros, seqüentes e renovados temores sem necessitar vencer, nem se dobrar a eles. Ele na verdade não acreditava em vitórias, conseqüentemente também não existiam derrotas para ele. Nada disso lhe era palpável. Nada disso existia então.

Tudo corria muito bem até aquele dia em que ele presenciou o nada existencial. Uma experiência que lhe foi mais profunda do que todas as que tivera até ali. Todo o seu ceticismo caíra diante do nada absoluto. Teve a vontade de sair por aí bradando expressões inexplicáveis e acreditar naquelas vozes exteriores que não diziam nada. A partir daquele momento seus significados não preocupavam mais com o significante e qualquer ruído lhe era um sinal, um aviso. Foi internado em algum desses hospitais psiquiátricos com o diagnóstico de excesso de lucidez.

Bom... pelo menos foi essa a versão da história que contaram pra mim. Embora tenha muitos motivos pra acreditar me reservo o direito de duvidar de qualquer escrito fora das normas da ABNT e que não esteja de acordo com o paradigma positista-funcionalista-estruturalista. Não tem que ter certificação pra ser verdade? Não acredito mais em conversas de falantes não certificados. Aliás ao tomar essa sóbria medida não vou poder acreditar em nada até que alguém venha garantir a qualidade do falante. É até capaz começarem a imprimir data de validade para seres humanos.

Cômodos e Alpendres - um velho desconto

Sacada

 

Este vivera sempre em seu lugar. Bom isso não me parece um bom começo de história...

Um dia sem qualquer aviso o tiraram do lugar. Vixe!!! Parece que o começo piorou!!!

Bom... agora qualquer começo eu aceito. Não sei é se o personagem vai aceitar. Quem me dera se não aceitasse e tivesse um começo mágico na manga de seu palitó.

Aquele lugar onde sempre vivera já não era mais o mesmo. Ele havia ruidosamente mudado de lugar. Não entendia. Realmente não conseguia entender essas idéias malucas de mudar as coisas de lugar. Também não compreendia nem lhe agradava a idéia daquele moço estranho de escrever a sua história. Certamente ele daria uma dinâmica àquilo que foi sempre estático: a sua vida. Tenho horror a mudanças, a movimentos, pensava ele. Ainda se perguntava por que mudar algo ao qual já estava acostumado. Aquilo era como se lhe dissessem que o sol não é o centro do universo.

Bom que sol não fosse o centro do universo, isso nada lhe importava. Somente lhe importava que os sacrílegos não viessem, incomodar a sua estabilidade. Sabia que mais dia, menos dia alguma coisa mudaria, mas esperava estar morto antes disso. Aquela mudança o inquietava. Era uma mera mudança do ângulo de visão, mas uma mudança em sua vida tão certinha, tão perfeita, certamente teria efeitos catastróficos.

Estava muito confuso. Agora toda a sua esquerda lhe parecia a direita antiga e a sua nova direita, a perfeita visão de uma esquerda anterior. Todo o seu mundo havia rodado sem lhe pedir permissão. Ele, um metódico por excelência, nunca faria aquilo a outro, mesmo se a nova posição lhe aprouvesse um melhor panorama, pois sabia que mudar é algo inquietante e desconfortável.

Como lhe diria um Camelo, preferia não arriscar ganhar novas coisas pra não correr o risco de perder algo que já possuía. Esse era o âmago de seu conformismo: nunca arriscar, pois arriscar é arriscado, revelava redundantemente ele.

Aliás, aquela mudança era extremamente inoportuna. Descobrira que agora tinha medo de altura ao estar na sacada para o alpendre a três metros e vinte de altura. Nunca tivera tamanho temor, medo que só era inferior ao de mudanças. Dessas cada vez fica mais evidente o pavor que ele possui.

 

Alpendre

Aquele local denominado de alpendre ou varanda era muito pequeno para ela, que ansiava por liberdade. Aqueles muros a dez metros de distancia a sufocavam, embora fossem vazados. Sentia que tinha pouco espaço naquele lugar e volta e meia estava sempre por cima da cerca, ou melhor, de cerca em cerca para ver se sentia ou apreendia algo novo que pudesse acabar com a monotonia daquele lugar ao qual sempre voltava: o alpendre.

Jurava que seu próximo passo era pra longe daquela prisão com muros abertos de concreto, muretas e cercas de metal e madeira. Mas algo sempre a trazia de volta àquele local incomodo, ou melhor, cômodo e confortável demais. Odiava comodidade. Era uma espécie de morte em vida.

Não importava sua desilusão com as necessárias paradas. Odiava dormir. Ah se pudesse dormir correndo e pulando as muretas. Um dia vira o siamês de cima no alpendre. Ele parecia petrificado. Não conseguia entender como alguém de sua natureza vivia tanto tempo imóvel, impassível às mudanças. As mudanças sempre lhe remexiam, lhe dava uma espécie de gastura por alguma ação.

 

Cômodos e Alpendres

Nessa nossa recortada história, aliás, nossa não porque é mais sua que minha. Eu não consigo ver lógica nenhuma nessa história então deixei ao seu encargo, incauto, de dar um nexo a essa narrativa (narrativa ou descritiva?). Bom... é fato que cômodo um dia caiu da sacada e se estilhaçaria no chão se não o fosse a técnica, malandragem e experiência da gata manchada.

Todos os gatos sempre caem de pé. Aquela peça de tão acomodada caía de qualquer jeito. Talvez esse excesso de comodismo fosse a causa de um corte longitudinal nas suas costas e algumas rodas de metal que aparentemente ele tinha comido na falta de outro cardápio. É um gato belíssimo, pensava a gata. O angorá não pensava nada, nem agia, nenhuma reação se apreendia do gato.

A gata se engraçava, se enveredava em volta daquele coração pétreo. De certa forma o couro do gato também era muito consistente. Apesar da maciez dos pêlos, seu couro ou seu corpo se mantinha imóvel e imoldável mesmo a um aperto mais consistente da gata vadia. A felina logo se estressava diante da imutabilidade do siamês. Pensava: é um esnobe. Mas como o alpendre, depois de suas incontáveis voltas sempre estava lá de volta a ele.

Um dia o dono da casa, ou um de seus pequenos filhos, ao sair de casa sem querer pisoteou aquele cofrinho em forma de siamês. O gato se fez em pedaços. Quando a gata voltou já não havia mais nada por lá. Apenas o alpendre que já não era mais o suficiente. E a gata sumiu dali. A partir desse dia eu aprendi que cômodos em alpendres não dão certo e que muitas vezes o resultado disso é desastroso.

sábado, 25 de janeiro de 2025

O Socrates de Hannah Arendt

  


 

  Hannah Arendt sempre escreveu sobre a vida ativa, que abrange entre outros a política (vida pública) e a economia (vida particular), mas no seu último livro A vida do espírito discutiu a vida contemplativa. Nessa obra, aparece em um trecho o Sócrates de Hannah Arendt. Embora toda a sua obra sobre a vida ativa e a decadência da Política com p maiúsculo sejam de suma importância, no derradeiro livro ela através de um Sócrates nem platônico, nem aristotélico resolve escrever sobre o mais vital: a reflexão.

    O Sócrates da autora judia alemã passeia pela rua recolhe e discute todas as opiniões. Por opiniões temos que entender por doxa: opiniões embasadas, relevantes. Não quaisquer fala. Sócrates diz passar dia na cidade (polis, do qual nasce política) apurando opiniões, lapidando as suas com as diversas. Mas Sócrates só é Sócrates quando chega em casa e conversa consigo mesmo. Expõe toda a suas convicções ao debate consigo mesmo: a reflexão.

Doxa para Platão, com todo o seu horror pela democracia que para ele matou seu mestre Sócrates, são opiniões ingênuas que devem ser superadas. No entanto também são verdades vigentes, ou seja, não são opiniões quaisquer, foram aceitas pela maioria. Quer dizer receberam algum refinamento. Podem ser mentiras absurdas, mas também podem ser verdade. No sentido de que a Doxa tem que ser superada para chegar a um conceito não há discordância. Dizer que o Sol resfria a Terra ou a Terra é plana não é opinião, é um engano, quando não uma mentira deslavada.

Só a reflexão constrói o conhecimento. Saber o que se discute no mundo. Conhecer as opiniões e aderir a uma delas sem refletir (acriticamente) não leva a nenhum conhecimento. Ler as notícias só leva a você conhecer o que os outros pensam. Só a reflexão pode descobrir o que você pensa. Mas nos tornamos papagaios.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

A Política se tornou economia política?

     


        Tanto Aristóteles quanto Arendt veem a política como o domínio das ações em que a pluralidade tenta chegar aos objetivos em comum, resolver problemas em comum, unir suas forças para realizar desejos consensuais. Por consenso, não se fala dos desejos que coincidem, mas dos objetivos que abarcam em sua proximidade o maior número de quereres sem necessariamente coincidir com algum. Seria o que poderíamos chamar de campo de proximidade. Nesse caso, o que podemos considerar como verdadeiro é o consenso. Ele orienta tudo. Ele é que é intensamente buscado. E não pode ser facilmente questionado. Não pode sem no mínimo causar grande desconforto.

 

Sabemos que toda cidade é uma espécie de associação, e que toda associação se forma tendo por alvo algum bem; porque o homem só trabalha pelo que ele tem em conta de um bem. Todas as sociedades, pois, propõem qualquer bem – sobretudo a mais importante delas, pois que visa a um bem maior, envolvendo todas as demais: a cidade ou sociedade política. [ARISTÓTELES, 1252a1-7]

 

    Portanto, Aristóteles define a política, que é o que acontece na polis (cidade) como uma associação que visa um bem maior, isto é a existência da própria cidade, unidade administrativa, local governado por um governo. Desse modo pessoas diferentes, de diferentes níveis intelectuais, técnicos, morais, sentimentais ou financeiros firmam sequentes acordos, talvez num nível moderno, minicontratos, para possibilitar a convivência num mesmo espaço.

 

Sem dúvida, a cidade precisa da propriedade, mas a propriedade não faz parte da cidade. A propriedade contém, mesmo, muitos seres animados; mas a sociedade é uma reunião de seres semelhantes, que têm por fim a vida mais perfeita possível. [ARISTÓTELES, 1328a33-35]

 

    Deste modo, Aristóteles, nos mostra como os diferentes tem isonomia (todos tem direito de falar) para discutir e que a economia (as coisas da casa) não tem influência nessa decisão assim como as outras diferenças. Aliás, o particular não participa do público. Do modo em que toda vez que se troca o interesse geral pelo interesse particular seja de um grupo ou de um indivíduo para Aristóteles está estabelecida uma tirania. Todos os outros regimes desde a monocracia, o governo de um; passando pela aristocracia, governo dos melhores; até a democracia, o governo de todos, governam para a coletividade.

    Hannah Arendt acentua o tema da pluralidade presente em Aristóteles e onipresente na leitura da filosofa alemã sobre o filosofo grego. Para Arendt “a política se baseia na pluralidade humana”. Esse aspecto de que somente pela política o homem agir para superar as diferenças em vez de omiti-la (alguns poderão dizer negá-la, inclusive) como faz a economia encampa toda a filosofia política da autora. Desse modo, para Arendt,

 

Política diz respeito à coexistência e associação de homens diferentes. Os homens se organizam politicamente segundo certos atributos comuns essenciais existentes em, ou abstraídos de, um absoluto caos de diferenças. [...] Desde o começo, a política organiza os absolutamente diferentes, tendo em vista a sua relativa igualdade e em contraposição a suas relativas diferenças. [ARENDT, 2010, p. 145 e 147].

 

    Em total contraponto a essa ideia heroica grega presente em Aristóteles e resgatada por Montaigne e Arendt de que a política é fundada pela coragem de agir[1], encontraremos as descrições de Foucault e Agamben. Guiarmo-nos pelas observações de Foucault, com pontuais interações com Agamben. Desse modo logo no início de Nascimento da Biopolítica, descobrimos que na atualidade a política deve se guiar por uma verdade externa a ela:

Não, é claro, que os preços sejam, em sentido estrito, verdadeiros, que haja preços verdadeiros e preços falsos, não é isso. Mas o que se descobre nesse momento, ao mesmo tempo na prática governamental, é que os preços, na medida em que são conformes aos mecanismos naturais do mercado, vão construir um padrão de verdade que vai possibilitar discernir nas práticas governamentais as que são corretas e as que são erradas. Em outras palavras, o mecanismo natural do mercado e a formação de um preço natural é que vão permitir – quando se vê, a partir deles, o que o governo faz, as medidas que ele toma, as regras que impõe – falsificar ou verificar a prática governamental. Na medida em que, através da troca, o mercado permite ligar a produção, a necessidade, a oferta, a demanda, o valor, o preço, etc., ele constitui nesse sentido um lugar de veridição, quero dizer, um lugar de verificabilidade/falsificabilidade para a pratica governamental. Por conseguinte, o mercado é que vai fazer que um bom governo já não seja simplesmente um governo que funciona com base na justiça. O mercado é que vai fazer que o bom governo já não seja simplesmente um governo justo. O mercado é que vai fazer que o governo, agora, para poder ser um bom governo, funcione com base na verdade. [FOUCAULT, 2008, p. 44 e 45]

 

    Ou seja, Pasteurizam-se os governos. Tanto faz um partido liberal, conservador, verde, socialdemocrata ou socialista no poder, pois o índice de veracidade de suas políticas sempre estará em sua adequação aos desejos do mercado. Chegou-se à utopia ordoliberal de despolitizar a política. Deste modo, o direito que no liberalismo era uma limitação à ação do governo, uma proteção do mercado (de ser oprimido pelos governos) passa a ser justamente a justificação do poder da economia sobre os governos:

 

A economia política foi importante, inclusive em sua formulação teórica, na medida em que (somente na medida, mas é uma medida evidentemente considerável) indicou onde o governo devia ir buscar o princípio de verdade da sua própria prática governamental. [...] Seu papel de veridição é que vai, doravante, e de forma simplesmente secundária, comandar, ditar, prescrever os mecanismos jurisdicionais ou a ausência de mecanismos jurisdicionais sobre os quais deverá se articular. [FOUCAULT, 2008, p. 45]

 

     O liberalismo não te promete a liberdade, mas criar condições para você ser livre. Se você não for livre a incompetência é sua (ou da sua mãe que não lhe propiciou as condições propícias para você ter um alto capital humano). Falando em liberdade, medo e segurança dentro do liberalismo estão inseridos num mecanismo análogo. Vejamos:

 

O liberalismo se insere num mecanismo em que terá, a cada instante, de arbitrar a liberdade e a segurança dos indivíduos em torno da noção de perigo. No fundo, se de um lado (é o que eu lhes dizia da última vez) o liberalismo é uma arte de governar que manipula fundamentalmente os interesses, ele não pode – e é esse o reverso da medalha –, ele não pode manipular os interesses sem ser ao mesmo tempo gestor dos perigos e dos mecanismos de segurança/liberdade, do jogo segurança/liberdade que deve garantir que os indivíduos ou a coletividade fiquem o menos possível expostos aos perigos. [FOUCAULT, 2008, p. 90]

 

    O Estado, no ordoliberalismo, se torna uma máquina eficiente, se desumaniza que é que justamente o que mesmo liberais como Berenson temiam.  Os liberais concebiam o Estado como um opositor ao mercado. Os ordoliberais transformam os governos em servos do mercado assim como a filosofia na idade média era serva da teologia.



[1] Ação, para Arendt e Aristóteles é algo que modifica o mundo, portanto que não é individual, isolada, embora possa ter origem individual desde que seja encampada pela coletividade. É algo qualificado, mas não necessariamente difícil, pois qualquer nascimento é uma ação, pois joga um infinito de possibilidades ao mundo no que denominamos de vida.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Kafka: burocracia ou rotina?

     


    Eu sempre achei que Kafka mostrava que o mundo era completamente burocratizado, que sua metanoia era um totalitarismo da burocracia que preenchia todos os espaços possíveis chegando a colonizar inclusive as reflexões e as relações humanas. Uma descrição que sempre me encantou, no sentido tanto de agradar como de levar da física à metafísica. Numa comparação ruim (toda comparação é ruim porque ao simplificar o real, tolhe grande parte de sua complexidade) e pensando em Aristóteles, um filósofo da antiguidade e portanto um metafísico, seria como se passássemos da política e da ética ou mesmo da sua arte (todas ligadas as limitações da realidade) para a metafísica que pelo menos acredita capturar e discutir a essência.

    Essa burocratização do universo acaba racionalizando o mesmo. Classificando, ordenando, organizando tudo de modo a que se torne o quanto possível racional, entendível. Deleuze e Guattari tem um modo diferente de ver a literatura de Kafka, a entendem como a descrição de uma maquina que abarca tudo, preenche absolutamente. O que eu vejo como burocracia, rotinas, leis, eles veem como rotina, processo da maquina:

     "Uma máquina de Kafka é, portanto, construída por conteúdos e expressões formalizados em graus diversos como por matérias não formuladas que nela entram, dela saem e passam por todos os estados. Entrar, sair da máquina, estar na máquina, percorrê-la, aproximar-se dela, ainda faz parte da máquina: são os estados do desejo, independentemente de toda interpretação. A linha de fuga faz parte da máquina. No interior ou no exterior, o animal faz parte da máquina-toca. O problema: de modo algum ser livre, mas encontrar uma saída, ou bem uma entrada, ou bem um lado, um corredor, uma adjacência, etc. Talvez seja preciso levar em conta vários fatores: a unidade puramente aparente da máquina, a maneira pela qual os homens são eles mesmos peças da máquina, a posição do desejo (homem ou animal) relativamente a ela. Na Colônia penal, a máquina parece ter uma forte unidade, e o homem se introduz completamente nela - talvez isto que acarrete a explosão final, o esfacelamento da máquina. Em América, ao contrário, K permanece exterior a toda uma série de máquinas, passando de uma à outra, expulso desde que tenta entrar: a máquina-barco, a máquina capitalista do tio, a máquina-hotel... No Processo, trata-se de novo de uma máquina determinada como máquina única de justiça; mas sua unidade é tão nebulosa, máquina de influenciar, máquina de contaminação, que não há mais diferença entre dentro e fora. No Castelo, a aparente unidade cede lugar por seu turno a uma segmentação de fundo ("O castelo era, no fim das contas, apenas uma pequena vila miserável, um amontoado de choupanas vilarinhas... Não fui feito nem para os camponeses nem, sem dúvida, para o castelo. - Não há diferença entre os camponeses e o castelo, diz o professor"); mas, desta vez, a indiferença do dentro e do fora não impede a descoberta de uma outra dimensão, uma espécie de adjacência marcada de pausas, paradas, onde se montam as peças, engrenagens e segmentos: "A estrada fazia um ângulo que se teria dito intencional, e, apesar de não se distanciar mais do castelo, ela cessava de se aproximar dele". O desejo passa evidentemente por todas essas posições e esses estados, ou, antes, segue essas linhas: o desejo não é a forma, mas processo, procedimento." [DELEUZE, 2024, p.17 e 18]

    A compreensão de Deleuze e Guattari parece dar mais plasticidade, aproximar-se mais de um conceito por permitir maior raciocínio à posteriori. No entanto, é mais totalitária no sentido em que se fragmentando em máquinas distintas muito menos resíduos escapam. Não podemos pensar como em Agamben (2004) que a perda da subjetividade, no sentido de não ser mais um sujeito e com isso não ter mais direitos ou não ser mais o retira de alguma máquina. Simplifiquei absurdamente o Agamben, até o distorci de algum modo, mas só para termos a compreensão do totalitarismo das maquinas multiplicadas. Nem o marginal (que está a margem das regras), nem o marginalizado (que foi colocado a margem da Lei) estão fora de alguma máquina. Um pouco mais a fundo, nem para Agamben. Mas tomei essa superficialidade para fazer diferença.


AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua I, Belo Horizonte: UFMG: Humanitas, 2004.

DELEUZE, Gilles. Kafka: por uma literatura menor, Belo Horizonte: Autêntica. 2024.

 


O sabiá sabia assobiar

  Assim cantou o sabiá Como sempre Sabia assobiar Com a melodia assombrar E o ritmo encadear O sol sobe e a lua baixa As estrela...