Certamente o maior exemplo da crença de que a razão poderia governar o mundo, proporcionar entendimento nos diálogos, o fim das guerras é o autor de Paz Perpétua, Immanuel Kant. Resposta à pergunta: Que é esclarecimento [<Aufklärung>]? o autor mostra suas esperanças na razão autônoma ou na, como preferiu denominar, na passagem da menoridade para a maioridade intelectual.
Embora seja algo importante e valioso tentar ter uma razão autônoma, a história posterior veio a mostrar que até mesmo o conceito iluminista de sujeito é discutível. Quanto mais a ideia de um ser intensamente influenciado por sua comunidade e suas paixões dentre outras inúmeras coisas conseguir pensar autonomamente. Ser um cartesiano a se isolar de tudo e julgar de fora o objeto de sua conjectura.
Kant define o esclarecimento como a saída da menoridade intelectual e moral, numa clara alusão à passagem da infância[1] para a vida adulta[2]. Kant faz uma analogia usando uma construção histórica, a infância[3], faz um discurso metafísico sobre uma condição do tempo dele e também do nosso, mas que não existia antes da modernidade e portanto não se refere a uma verdade eterna, problema no qual quase toda metafisica, pelo menos até Hegel esbarra e muitos filósofos contemporâneos que ainda pensam em metafisicas a-históricas ainda esbarram: o problema do fluxo do pré-socrático Heráclito ainda hoje milhares de anos após a morte deste.
Entretanto como é uma metáfora não há nenhum problema, pois a metáfora pode se referir ao imaginário e ainda assim referir-se a situações reais. A questão de fundo é a autonomia, mais precisamente a autonomia de pensamento ou a razão autônoma. Um problema extremamente pertinente ao período no qual viveu Kant, no qual há uma revalorização da racionalidade e a separação progressiva entre filosofia e teologia, com a crescente autonomia tanto da filosofia quanto das ciências, que começaram o processo muito mais cedo, mesmo ainda dentro da filosofia, da teologia. A teologia perde essas muletas e perde muito do seu poderio e domínio. Por outro lado, a filosofia parece reencontrar sua autonomia, sua maioridade, pelo menos no discurso dos iluministas, nos quais Kant se insere, que chamam a Idade Média de Idade das Trevas ou A longa noite.
A passagem da menoridade para a maioridade parece ser o chamado a esse novo tempo. A época que a humanidade pode alcançar a maioridade ao pensar por si própria. O fato de ele enfatizar nos exemplos a religião, por ser um reduto onde o dirigismo é valorizado, conforme ele próprio escreve:
Acentuei preferentemente em matéria religiosa o ponto principal do esclarecimento [<Aufklärung>], a saída do homem de sua menoridade, da qual tem a culpa. Porque no que se refere às artes e ciências nossos senhores não têm nenhum interesse em exercer a tutela sobre seus súditos, além de que também aquela menoridade é de todas a mais prejudicial e a mais desonrosa. (KANT, p.6).
Nesse ambiente, Kant foi alimentado com ótimos argumentos para construir a sua tese, que é uma das fundamentais da Idade Moderna. Ou seja, que a maioridade intelectual é garantida pelo pensamento autônomo. A razão autônoma era justamente o que os primeiros filósofos da modernidade buscavam, este segundo Kant só poderia se manifestar publicamente, pois privadamente enfrenta obstáculos que não deixam a razão ser livre. A liberdade é, em termos aristotélicos, republicana, ou seja, garantida pelo desejo de bem comum que deve ser mais forte que o desejo particular de qualquer governante ou administração. Nesse sentido, Kant faz uma distinção entre as razões usadas nos empregos particulares, mesmo que tenham por objetivo o bem público, da razão usada publicamente: a primeira deve ser obediente aos preceitos do cargo e da autoridade a qual servem, a segunda deve ser livre e, portanto, autônoma.
Embora Kant afirme que no espaço público atue a razão autônoma, ele demonstra que esta é propiciada por alguns, embora se torne propriedade pública como preceito e, portanto, ao mesmo tempo torna a razão do público não autônoma, pois esta é tomada como um preceito. Kant estabelece, assim, uma dialética do conhecimento onde um mesmo exercício que liberta também cria a dependência de outros. Mas Kant tem uma fé no aumento da liberdade através dos constantes exercícios da razão autônoma, pois cada vez mais, mais pessoas se libertam ao fazer uso da filosofia.
Infelizmente ao se calcar na autonomia, a tese kantiana se torna complicada após o surgimento de Freud e Marx e sobretudo da Escola de Frankfurt que demonstram respectivamente o eclipse da razão e da autonomia da mesma. Mas ninguém pode negar que expressou muito bem a sua época.
[1] A
palavra infância, do latim infantia,
significa incapacidade de falar. Até a Idade Moderna considerava-se que a
criança não teria condições de expressar seus pensamentos e seus sentimentos. A
palavra infância carrega consigo o estigma da incapacidade, da incompletude, impondo-lhes
uma condição subalterna diante dos adultos.
[2] Quando
o ser passa a ser responsável por si mesmo.
[3] A
infância é uma construção da Idade Moderna, a ideia de proteção e de latência
inexistia até quase o fim da Idade Média.
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