Acompanham

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Amanhã

 Amanhã já não será mais hoje

E as culpas já serão desculpas
As mentiras, meias verdades
E a verdade, uma enganação

Trilharemos subidas descalços
Com nossos sapatos íngremes
Por entre variadas paisagens
De nossa monótona mente

E cansaremos de rir
Ao nos sentirmos secos
De desejo de banhar de cachoeira
Cobertos pela água
Cobertos pela mesma pele
Cobertos pelo mesmo calor
Que nos trai

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Em favor do mal estar na civilização

     


   A entrada da modernidade é caracterizada por três acontecimentos fundamentais: o surgimento de estados nacionais quase unificados por um despotismo (esclarecido ou não), da burguesia (que as cidades-estados modernas propiciaram) e pelo liberalismo como reação a essa centralização. O liberalismo tem como seu discurso fundamental a defesa do avanço da liberdade. Ninguém soube melhor explicar isso que Hegel esse movimento. Hegel dizia que a história é o avanço da liberdade e que na modernidade o espírito da história encontra a si mesmo. Ou seja, a luta pelo avanço da liberdade ou a dialética hegeliana.

     Hegel foi muito otimista na evolução da história: ele acreditava que o avanço da liberdade até sua fase definitiva, a modernidade, é concluída porque o mecanismo da história que é uma racionalidade encontra a si mesmo. Ou seja, se dá pelo conhecimento: um autoconhecimento, ainda mais. Esse conhecimento só é possível porque construímos uma Civilização. Pra construir uma civilização os liberais dizem que foi necessário um contrato social que dá o monopólio da coerção para o Estado. O que para Rousseau é uma desvirtuação. Para Hobbes é uma evolução.

    Entretanto essa coerção do Estado, seja juridicamente, normativamente ou policialmente não é suficiente para garantir a civilização. Por mais forte que seja ainda é muito permeável. Uma violência que garanta a civilização precisa ser internalizada para ser de certa forma onipresente. Freud a descreve em O mal estar da civilização. Somente quando os instintos e impulsos são cerceados, quando não amputados, quebrados, a sociedade coexiste.

    Quando Hegel descreve coerentemente com sua narrativa como o avanço da liberdade nos trouxe aqui ele deixa uma brecha para que pós-hegelianos pensassem no avanço da liberdade como uma trilha para a pós-modernidade. A necessidade de quebrar todos os consensos. Tornar o liberalismo evolucionista em revolucionário (o que ele já foi quando se viu no espelho).

    Essa ideia começou a questionar os próprios valores que possibilitaram a civilização. Que debilitaram o superego, a última instancia de controle dos desejos. Passaram a defender os seus desejos e impulsos de violentar os outros em contraponto á violência que a coletividade e eles próprios impõem a si mesmos. Essa luta cotidiana contra a civilização inevitavelmente nos levará a um Mad Max ou outro cenário apocalíptico. Quase ninguém quer isso. Mas o conforto momentâneo é tão mais importante que chega a ser primordial. 

    A sociedade contemporânea preferiu trocar a Democracia pela Idiocracia, regime dos idiotas. É bom lembrar que idiota, são os indivíduos regidos pelo Id. Id, segundo Freud é o que tem de mais primitivo (de original, básico, nascedouro) no ser humano: os instintos e desejos. No momento em que nossa sobrevivência se tornou a mais garantida, começamos a criar o império do prazer momentâneo. Esquecemos que ao dinamitar nossos fundamentos destruímos nosso mundo, nossa sociedade. Viveremos sem ela? Fora dela? 

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Zoé para Bios



Hoje vivemos um período no qual a democracia poderia estar mais consolidada do que em qualquer outro momento da história. A globalização, ou internacionalização econômica, propiciou uma possibilidade de comunicação e entendimento que até então nunca tinha sido tão provável. Não existe mais uma ameaça política à existência humana na Terra como durante a Guerra Fria. Os conflitos étnicos, ainda existentes e numerosos, estão muito mais controlados do que estiveram no passado. Parece que a racionalidade ocidental se tornou uma espécie de linguagem universal na qual todos os atores puderam se entender.

Essa mesma lógica econômica é, entretanto, a causadora do estado de exceção que, ao tomar iniciativas em defesa da democracia, acaba fragilizando-a. Resultado: enfraquece a independência de poderes, sobretudo o poder legislativo porque passa a dar poder legal ao que não é lei; transforma o poder em iniciativa. Agir é o que a política, no mínimo, deveria proporcionar; ao se transformar em uma discussão do direito, cujas leis continuem válidas, ela não tem mais eficácia jurídica, esvaziando, assim, a possibilidade de mudança. Enfim, consegue tudo o que uma economia deseja: liberdade comercial e estabilidade.

A democracia, que inicialmente salvaguardava apenas os que delas se utilizavam – ou seja, os que agiam na pólis (política)–, passou a se referir a todos até mesmo àqueles que não se interessavam por ela, àqueles que não tinham poder pra agir, ou àqueles cujo poder lhes havia sido retirado. O terreno da vida (privado) e o terreno da política (público) passaram a não mais se diferenciar e, assim, a vida invadiu a política. Em face disso, é importante mostrar como os fundamentos das teorias tradicionais da democracia se tornaram meramente formais como as leis –quando existem – no estado exceção. Entretanto, sua aplicação é suspensa.

Quanto mais a democracia se ampliou, o que é um princípio democrático moderno de atingir a todos, mais se transformou em uma democracia para ninguém. A intenção da pluralidade acabou redundando na impessoalidade, pois serve à mesma lógica da racionalidade técnica que se importa tão somente com o produto, enquanto, no processo, só se atenta para a produtividade, para eficiência e para os valores relacionados ao fim e não ao meio. Desde que se chegue aos resultados esperados, não importa quem participa, nem se a ação vai melhorar ou piorar a vida do indivíduo, tanto faz ser ele uma máquina, um protocolo.

A política, desse modo, se desvinculou da ação como mudança de um cenário e passou a ser sua administração, como se a teoria funcionalista tivesse vencido e tudo fosse um corpo para o qual o único interesse é a manutenção da sua saúde. Assim, o que possivelmente atrapalha a saúde do corpo deve ser afastado, e sua ação cerceada. Deve ser expulso do bando para não contaminar o resto do corpo; deve morrer (não necessariamente de morte física) sem ser julgado ou sacrificado.

Esse caminho em que a democratização da democracia redundou num jogo perverso em que todos estão submetidos à dominação de uma lógica impessoal é o que tentaremos demonstrar neste trabalho, sobretudo a ideia de que a defesa da democracia dos perigos externos se transformou no pior algoz da democracia.

domingo, 2 de fevereiro de 2025

Como poderia dizer posteriormente - exercício de desconto ou reconto

     

    Como poderia dizer posteriormente, nosso personagem ao iniciar esse relato estava indefinido. O autor pouco sabia de sua personalidade e pouco saberá após infindáveis linhas. Este se caracterizava por uma ligeireza de princípios. Uma brevidade de caráter. Nacionalista ufânico durante período ditatorial decidiu mudar-se para o exterior para se esvair do apego à pátria que o sufocava.

    Calçava sempre ele o pé esquerdo. Depois o direito. Benzia-se sempre ao acordar após o cochilo da tarde: três sinais da cruz. Acordava do sofá puído da sala com a impressão de que o tinham sacaneado. Batia em seu peito sempre a velha impressão de que haviam posto nele um marca-passo.

    Ao levantar, se debruçava em sutilezas como observar em que página haviam imprimido seu comentário sobre a Escola de Frankfurt ou seu breviário sócio-econômico sobre as relações entre Macau e Timor Leste. Quase sempre notava que o fora em página par. Xingava as várias gerações de Geraldo, o diagramador-chefe. Aquele disgramador-mor, pensava ele. Então tomava seu chá calmamente especulando em notar os mínimos detalhes das bolachas e biscoitos que dona Rosalinda sempre deixava pela mesa.

    Após responder a inúmeros rapapés, de certa forma tinha se acostumado com a burocracia que era ir de sua casa até a redação na outra esquina, lá estava ele a cutucar e provocar os mais incautos com seu espírito maledicente. Teria sido um fofoqueiro não fosse o excesso de jornalistas naquela redação. Sua mãe, finada Maricotinha, sempre havia dito que ele nasceu pra ser enxerido. Acabou sendo ombudsman, a opção mais inadequada, pensava.

    Ia ao jornal. Passeava por seu parque gráfico e voltava para casa esperando as calamidades do dia seguinte. Tinha sido recontratado há seis meses. Não passava um dia sem que algum novato o ameaçasse ou o agredisse física ou moralmente. A cada dia se tornava mais intolerante. Era uma bomba sem pavio. Bastava alguém se referir à Buenos Aires como Paris Sul-americana para ele redigir uma nota ao jornalista, um memorando à redação e, é claro, em seu espaço uma recomendação ao jornalista de voltar ao MOBRAL e introduzia ainda uma queixa de seu fim.

    Dizia ele: o MOBRAL foi feito para jornalistas. Poucos arriscavam trocar uma ou duas palavras com ele. Tinha fama de ser mais arisco que delegada do ministério do trabalho. Dizem que morreria de inanição se tivesse que pedir algo a alguém. Isso é que não fazia mesmo. Volta e meia levava esporros do chefe por estar comendo seus charutos. Dona Dondinha, a mulher do chefe e que era a segunda, por isso alguns a chamavam de Redondinha, não por seu físico curvilíneo do qual não se poderia tirar arestas ou sobras, estava tudo ali, trazia sempre ao meio-dia chucrute de couve e charutos de repolho com carne de carneiro.

    Era assim sua rotina. Em casa elaborava um artigo mirabolante sobre algum assunto hermético em que aproveitava pra alfinetar os colegas de redação, sobretudo quem havia escorregado na edição anterior. Exercia sem que lhe tivessem atribuído à função, a clara observância e a correção segundo seus próprios critérios do que deveriam ser textos jornalísticos.

    E sem que houvesse qualquer resistência, um excelente linotipista aposentado pagava pito a todos os pobres coitados que conviviam com aquele concentrado exemplar de sarcasmo e ironia. Os funcionários mais antigos nem mais se importavam com aquela figura dantesca. Já há muito sabiam que era apenas um estopim, uma bomba que explodia e depois voltava ao marasmo. Daí por que era conhecido como Tonho Traque.

    Sem dúvida foi uma figura muito importante. Um questionador da normalidade. A crítica em pessoa. Um grande criador de caso. Um cara que em vez de criar a polemica fora, a trazia pra dentro do jornal. Um cara que só não foi mais importante porque alguma caneta afiada achou seu peito. E hoje seu jornal enfarta sem o marca-passo que mantinha o coração do jornal vivo e vibrante.

    Morreu Antonio José João da Silva de causa ignorada que possa ter ocasionado um pequeno furo em seu peito sem deixar vestígio a não ser uma ponta estereográfica. Morreu o último jornal vivo deste pequeno país. Morre a inconsciência dos loucos que ainda bradavam contra os desvarios uniformes da mídia. Hiberna a esperança até que os hospícios já desativados, as escolas de loucos possam criar mais um.

Fica assim o mortuário de meu mestre e amigo Tonhão.

Um dândi

 

Sentia-se poderoso
Mesmo sendo imberbe mendigo
Pois tinha por precioso
A conveniência como abrigo

Vivia como que valsando
De sonhos sonhados
A sonhos perdidos
E pedra a pedra somando
Os desafios havidos

Andava como um deslumbrado
Por entre desfiladeiros cortantes
Por pedras que havia cruzado
Seus cortes eram diamantes

Sangrava como quem sangra de dentro
Lambia suas cicatrizes
Da vida se fazia o centro
Esquecendo as próprias raízes

E se ontem sabia quem era
Hoje não se importava
Pois se era homem e fera
Nada lhe assombrava

sábado, 1 de fevereiro de 2025

O fim da Política

    


As pessoas tendem a entender a política como a atividade dos políticos profissionais e participação como sufrágio eleitoral como eleição. Nós preferimos delegar a representantes o direito de escolher por nós os nossos próprios destinos e de nossas sociedades. Quase sempre nos limitando a julgar se votamos bem ou mal e quase nunca julgamos as discussões ou decisões em si.

    A ideia da política como ação, atuação dos homens presente em filósofos como Aristóteles e resgatada por filósofos como Karl Marx ou Hannah Arendt, embora sejam críticos do primeiro, parece uma ideia esquecida, presente apenas algumas vezes no domínio da teoria. A ideia de que são os homens que fazem a história que domina todas as ciências sociais atualmente e é amplamente aceita sem questionamento até mesmo pela maior parte das correntes filosóficas atuais, até porque seria um anacronismo negá-la, parece não ter nenhuma utilidade prática, pois os homens se negam a agir.

    Se pudermos dividir a política em a Política com “P” maiúsculo como Aristóteles chama aquela que se refere às ações na polis e política com “p” minúsculo aquela que se refere à forma de governo, a maneira de governar, ao formalismo em si, podemos dizer que desde a modernidade, ou talvez a idade média, a Política com “P” maiúsculo perde a importância e sobra somente a política com “p” minúsculo, as ciências políticas, um enorme rebuscamento tanto formal quanto jurídico para dificultar o acesso e a participação das pessoas na política.

    A própria ideia da política representativa e seus mecanismos parecem determinados a fazer com que o individuo se afaste da política. Segundo a filósofa contemporânea Hannah Arendt, o começo do desinteresse por política iniciou na Idade Média ou no Feudalismo quando o clero, ou melhor, a própria Igreja se “sacrificou pelos irmãos” ao assumir a política para que cada um cuidasse de sua própria subsistência, ou seja, da economia. Esse conceito atravessou a modernidade e chegou a nós contemporâneos, mas não parece explicar a apatia política existente. Até porque as próprias questões da sobrevivência só podem ser resolvidas pela política ou garantidas por esta.

    Quando a política deixa de ser atividade dos cidadãos, por poucos que sejam, para ser uma concessão de poder, o objetivo da política deixa de ser resolver os problemas da cidade ou do mundo ou solucionar as demandas de seus cidadãos para se tornar tão somente uma busca de poder. O que ocasiona um grave problema, pois a resolução dos problemas se torna tão somente, quando acontece, como mecanismo para ascender ao poder ou se manter lá, ou ainda como mecanismo para anestesiar as massas.

    Obviamente os problemas do ocaso da Política não resolveriam simplesmente pela revalorização da política, pois a revalorização da política simplesmente anestesiaria a população dos males da falta da Política, mas a retomada das ações dos homens poderia ser justamente um passo fundamental para essa mudança. É uma suposição razoável, mas ainda resta o problema da apatia política, pois sem a resolução desta não resolvemos nem o problema da política, nem o da Política.

 

O medo do medo: aonde vai nos levar?

 

Estamos na era do medo. Tomamos remédios porque não suportamos a infelicidade. Não me refiro aos deprimidos, porque depressão é uma doença séria e perigosíssima e sempre leva à perda da vida (ou de parte dela) quase sempre sem levar à morte física. Mas muitos além destes diariamente se automedicam tomando suas pílulas da felicidade. Não suportamos a dor mais. Creio que teremos muito menos poetas, menos pintores. Não precisamos mais das artes para alienar, aliviar a dor. Temos pílulas milagrosas. Nada contra elas. São um bem para a humanidade. Mas não deveríamos fugir de sermos humanos, mesmo que o humanismo em si tenha terminado no século XIX.

O ser humano para o ser (dasein) em sua completitude necessita ser completo. Existir de fato no mundo e sentir o que está a nossa volta. Ninguém pode te ensinar que as rosas machucam se exibir as rosas de floricultura com os acúleos cortados. É preciso levar os alunos ao jardim. Ser peripatético, andar pelo mundo, mesmo que entre aspas, para sentir o ambiente.

Ninguém pode sentir um alívio sem uma apreensão, dor anterior. Ninguém pode estará exultante por livrar seu dedo mínimo se ele não estiver antes debaixo de uma pedra ou prensa. É notável a metáfora da ostra e da pérola que diz que é preciso a dor, o incomodo para a ostra produzir a pérola. Traduz todo o processo de criação seja poética, seja filosófica, seja ação (Política) no sentido de Hannah Arendt ou Aristóteles.

Incomoda-me essa ideia de viver sem dores, ou seja, não viver. Porque tocar o chão descalço, sem anteparo é ser ferido pelas rochas, pelo piso, pela invasão da areia... Sem a dor, o incômodo, não somos nada!

O sabiá sabia assobiar

  Assim cantou o sabiá Como sempre Sabia assobiar Com a melodia assombrar E o ritmo encadear O sol sobe e a lua baixa As estrela...