Acompanham

segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

O sabiá sabia assobiar

 


Assim cantou o sabiá

Como sempre

Sabia assobiar

Com a melodia assombrar

E o ritmo encadear

O sol sobe e a lua baixa

As estrelas virão

Mas o maestro

De fraque espera

O momento da condução

Com um assovio

Conduz a orquestra em ascensão

domingo, 14 de dezembro de 2025

O muro

 


Murei o muro.

Impedi-lo de ir pra lá e pra cá

Fez-se atravessar a divisória

Poucos se equilibram

Caem os outros pra um lado e pro outro

O chão abraça

A grama afaga

A memória apaga

O rio segue

O barquinho vaga

Rumo ao inesperado

Sólido mesmo só o muro

sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Conta de Sebastian

 


Convidaram Sebastiana para dançar um xaxado na Paraíba... Tocava no rádio. Sebastian não tocava guitarra. Tocava bodes. E tinha um bode bem na sua sala: mudara da chácara para a cidade. Resolveram que a melhor coisa que podiam fazer era afogar seu vilarejo.

Resolveram assim do nada. Não perguntaram ninguém. Não fizeram um plebiscito. Chegaram a conclusão de que faltava energia lá no sul e que tinham que fazer uma usina no seu estado que por assim dizer já produzia umas dez vezes a energia que consumia.

Não deu muito tempo de vender seus cinco bodes. Teve que soltar dois no mato e torcer pra não se afogar. Três vendeu para um restaurante da capital que é pra onde desgostosamente foi.  As galinhas foi tudo numa galinhada pra despedir dos vizinhos antes de todos terem que capar o gato. Expressão infeliz de quem nunca teve que capar um gato.

O arroz foi da mercearia do Seu Zé, que na verdade chamava Dêmocles, mas era mais fácil chamar de Zé mesmo. As mercadorias que tinham prazo ele revendeu a preço de custo para uns supermercados da capital. O arroz que estava vencendo foi todo pra galinhada. Por sorte Sebastian tinha muitas galinhas.

Sebastian ia morar na Vila da Investco. Mas decidiu que não ia entrar em acordo com a empresa não. Afogaram seu bongô. Isso era inaceitável! Sua cachorra foi ficando doente a medida que chegava o tempo do alagamento. Morreu um dia antes. Era uma espécie de anuncio da tragedia.

A cadela foi perdendo os pelos. Já tinha muitas falhas. Perdeu os dentes também aos poucos. Ficou banguela antes de ficar sem pelos. Era de dá dó, mas não era um caso isolado. Muitos caninos perderam parte dos pelos ou dos dentes ao internalizar a angustia de seus donos. Mas nenhum outro ficou careca e banguela como a Esperança, cadela de Sebastian.

Nunca ia perdoar aquele povo da usina e aqueles políticos por terem feito aquilo. Afogar o povoado era suma maldade. Tirar um povo que vivia lá há muito mais tempo que o pessoal da capital pra umas empresas ter energia pra fabricar cimento, moldar aço... era um absurdo. Acabar com um dos luares mais lindos do mundo pra ligar lâmpadas num galpão de fábrica...

Era revoltante aquilo. O bode estava na sala. Ninguém podia explicar aquilo. Ficou abestalhado como os entreguistas haviam conseguido se reeleger. Mas dinheiro compra tudo, até dignidade. Até a ponte que atravessa o lago que afogou sua localidade ganhou o nome do presidente que soltou dinheiro (verba federal) para construí-la e depois tiraram o nome pra pôr o do governador da época.

Mas bode na sala não chateia tocantinense. Até a sede da FIETO (Federação das Indústrias do Tocantins) tem o nome do presidente da CNI (Confederação Nacional das Indústrias) que liberou o dinheiro pra construí-la. Só mesmo Sebastian é que tinha um bode chifrudo na sala. Que incomodava por demais.

Essa é a história do bode, quer dizer do Sebastian. Não boto nem a canela dentro d’água pra continuar a contá-la. Não acredito em destino, mas parece obvio que tem uns, que não importa a situação, sempre vencem. Sebastian não é um deles. Nem eu. E, provavelmente nem você.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Conto de Rafael


 

Rafael não era um anjo. Mas parecia. Um anjo trincado. Daqueles de porcelana com uns poucos cacos faltando. Voava em seu skate com extrema elegância. Exibia seus arranhões e roxos como cicatrizes de guerra. Dificilmente batia no chão ou na parede. Mas quando chocava... não era só um galo, só umas escoriações, alguns calos e joanetes.

Usava sempre seu velho tênis acolchoado dentro com algodão e penas. Até mesmo joelheiras e cotoveleiras tinham suas proteções extras. Capacete sempre usava. Por um bom tempo usou até protetor de pescoço. As asas, nunca protegeu. Vai ver que é por isso que não se viam. Sei lá se não tinha mais. Ou se ficou só um potoco.

Gostava de viver aventuras. Voar alto. Alcançar velocidades inéditas para ele. Não daqueles de extrema técnica que faziam os lances com aparente naturalidade. O que fazia era por instinto. Acreditava piamente que cada manobra era possível, ia acontecer. Não as fazia pra enfeitar movimentos. So as fazia porque era necessário para se mover na velocidade desejada. Porque precisava voar. Tinha que desviar de algo ou de alguém.

Se deslocava de casa para o trabalho, do trabalho pra casa no velho skate remoldado várias vezes. Seria um paradoxo de Teseu se Rafael entendesse de mitologia grega ou de paradoxos. Shape várias vezes refeito. Rodas constantemente trocadas. Amortecedor constantemente refeito e aperfeiçoado. A pintura trocava constantemente de acordo com sua vibe. Nem tanto assim. Mas digamos, a cada quatro ou cinco meses.

No trabalho usava uma moto para sair por aí pegando, pagando, distribuindo documentos. Era motoboy. Queria ser skateboy, mas não dava. Mas mesmo assim levava o skate consigo. Se tivesse uma brechinha para usá-lo... Também tinha medo de alguém pegar e estragar sua prancha sobre rodas.

Quando sobrava um tempinho no fim de semana pintava seus quadros. Não era lá uma Capela Sistina, mas... pintava até bem. Não era um De Sanzio. Mas tinha suas desproporções nada arbitrarias. Um quadro seu foi arrematado por milhões num leilão. Tanto o leiloeiro quanto o comprador confundiram o autor. Depois ficaram com vergonha de demonstrar a ignorância. Foi a única vez que vendeu um quadro seu. Passou a pintar para si mesmo e para encomendas. Mas toda vez que vinham pechinchar ele ficava ofendido. Daí vociferava sua frase: “Vai. Leva essa merda!”.

No tempo que não sobrava estava a cultivar o jardim do vizinho do fundo. Por uma dessas infelicidades urbanas sua casa não tinha nem quintal, nem varanda. Passava por um corredor exíguo  à esquerda ou direita das casas toda madrugada e alta noite pra regar as bromélias, lírios e alfazemas plantadas. Elas perfumavam seu sono. Sonhava.

Bom deixa sonhar. Não vou atrapalhar os sonhos. É hora de terminar.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Antônio e a vida

 


Antônio via a vida. Corria em suas vias suave suco. Bombado ora violentamente, ora compassado. Antônio não pensava nisso. Como eu disse, ele via a vida. A vida floria. A vida secava. A vida se desdobrava. A vida não era um rio. Não tem leito. A vida não tem pulsação. A vida tem ciclos? Tem revolução? Digo: tem frequência?

Antônio observava. Os cenários se desdobravam. Mas tem lógica? Era caos absoluto ou a ordem não foi descoberta? A vida seria um teatro? Uma peça sobre a guerra ou a guerra mesmo? Uma tragédia ou uma comédia? Somos todos atores? O enredo já está escrito? Os gregos ou Espinosa estão certos? Existe destino? Ou existe um livre-arbítrio individual que no conjunto, na soma das forças não altera a providência?

A vida vai passar e Antônio não. Antônio vai ficar em algum ponto. Vai virar esterco ou cinza. No final, Antônio passa e a vida não. A vida é que observa Antônio.

domingo, 7 de dezembro de 2025

Romantismo

 


O rio cruza a mata

Em silêncio

Coaxa um sapo pra lá pra cá

A fênix persiste silenciosa

Escondida

Invisível

O saci perereca

Pra lá e pra cá

Na sombra do sol

A dama da noite

Cresce em direção a luz da lua

A lua e o sol dançam um tango

Mas a selva...

Na floresta é batidão

É pedra rolando...

Poesia concreta

Não romântica

sábado, 6 de dezembro de 2025

Real

 


Aspirou a ser grande

Mas nunca foi pequeno

Fez muita média

e...

ponto final

Nada a acrescentar

Ninguém nasceu

Nem morreu

Existe???

O rei enforcou o antigo rei

O príncipe sempre será

Nunca rei

Das tripas se faz coroas

A educação faz príncipes

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Conto de Queila


 

O que diria Queila? É sempre uma boa pergunta que teria sempre uma resposta inesperada. Queila certamente diria algo que não desejasse dizer. Não pra agradar ninguém. O que, aliás, não agradava. Tinha sempre aquela resposta a uma pergunta não feita disfarçada de má compreensão da pergunta feita. Era como se fosse um exercício de contorcer, torturar as palavras, desfazer rimas e colocar farinha na areia.

Foi assessora da câmara municipal por muito tempo. Sempre deixava todo mundo insatisfeito. Não comprometia os vereadores, mas também não os defendia. Ah! Então ela se limitava aos fatos? Longe disso! Seu discurso até tinha alguma veracidade, mas fato era o que menos tinha ali.

Tudo pra ela era um causo onde em nome de ilustrar a história retirava todos os fatos, as narrativas centrais e amarrava uma serie fuxicos marginais de modo a dar uma interpretação mais justa às coisas. No meio da conversa deslocava uma ou duas rimas de lugar de modo a tirar todo o ritmo da conversa.

Ninguém era mais atenta às seções pra que nenhum fato saísse sem o seu floreio. Bom floreio é uma péssima palavra porque se tivesse qualquer gramínea ali o que ela fazia era passar um dessecante. Tornava tudo aquilo ali desinteressante para quem não tivesse paciência para minerar as histórias. Transformar minutos de conversa em um ano de constatações ao apurar todas as pistas deixadas.

Queila precisava ser compreendida. Quase ninguém a compreendia. Sobretudo os vereadores e funcionários graduados da casa. Se a compreendessem seria sumariamente demitida por vazar tantos indícios. O grande problema é que ninguém tinha um on. Precisava cavoucar os indícios pra achar os fatos denunciados. Quando perguntavam a um vereador não podiam dizer de onde tiraram e muitas vezes estes se indignavam, diziam que é um absurdo e retoricamente perguntavam de onde teriam tirado aquelas perguntas absurdas, aquelas blasfêmias, injurias e difamações.

Certa vez, no meio da conversa, disse que os funcionários de uns vereadores tinham uns meses que não recebia os salários integrais. Uns dias depois que o partido de um tal vereador estava com muito dinheiro pra campanha. Outra oportunidade que outro tinha comprado um barco enorme. Se tivessem perguntado a ela se alguns vereadores estariam desviando dinheiro dos funcionários ela diria que não poderia afirmar, não tinha como saber disso.

Ela só repassava as conversas da câmara. Nada além disso. Sem nenhuma intenção por traz. Apesar de dizer que ninguém ali era ingênuo. Ninguém. Sempre tinha desdobramentos. Toda fala. Ela mesmo não falava mal de ninguém. So repassava o que essas pessoas maldosas falavam pras pessoas saberem como são as coisas. Se tinha uma coisa que odiava era fofoca.

Essa é a Queila que só não era sincera porque é perigoso. Se fosse sincera ninguém suportaria ela, segundo ela mesma não cansava de dizer. Dizia que mentia, mas mentia só pra se defender porque as verdades são muito agressivas. Fiquei com medo! Tchau! Hora de terminar esse relato...

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Truco

 


Breve mormaço antecede a chuva. Esvai-se a esperança. Glória!!! Cai a realidade do céu. Nenhuma estrela há de me salvar. Nem de mim mesmo. Nem do outro eu que retruca. Na mesa um par de ases. Outra carta. Tomara que seja um quatro. Um zap. Eu truco! Para acabar com o marasmo. O az era de espadas. Mas não era um quatro. Quase! Era um três. Só uma espadilha é pouco. O que terá meu parceiro? Passo instantes entre a euforia e a dor de barriga.

O destino há de definir o resultado...

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Contra a desilusão

 


Queria voar ao chão

Abraçar o mar

Nadar nas nuvens

Colher estrelas sem parar

Chafurdar no mousse

De limão ou chocolate

Ah! Mas só me restam tamarindos

In natura pra apreciar

Tem mel com abelha

Africana no favo pra chupar

E se no campo eu quiser deitar

As urtigas vão me acariciar

Posso rezar pra São Mindinho

Mandar chuva me molhar

Mas o sol em labaredas

Não deixa a água me tocar

Dizem que sou pessimista

Que vivo a praguejar

Mas ninguém sabe da alegria

De não desmoronar

Conto da Pâmela


 

Pamela acordou aquele dia com os olhos melados. Coisa estranha isso! Todo dia tinha que levantar da cama e correr pra fila do banheiro pra poder ver alguma coisa. Depois de lavar o rosto, ou mais especificamente os olhos, voltava pro quarto a enxergar vultos pra pegar seus óculos fundo de garrafa que usaria por pouco tempo.

Ainda sofria os efeitos da operação na vista que fizera pra diminuir sua hipermetropia de periclitante para alta. Foi uma coisa mesmo de pressa porque com o tempo e o aumento natural da miopia sua visão tenderia a melhorar. Tinha dificuldade de atravessar avenidas muito largas. Conseguia ler com dificuldade até sem óculos. Estava trocando um pouco de um por outro com o tempo, mas uma troca muito injusta que dificilmente lhe ajudaria a ver de longe e ia lhe tirando a visão de perto.

Pegava o ônibus do outro lado da rua ou no meio da rua. Não conseguia perceber esses detalhes. O que percebia é que era um flagelo chegar lá. Difícil perceber se estavam lhe sacaneando quando perguntava que ônibus era antes de entrar. Já pegara muitos ônibus errados porque alguém decidia dificultar sua vida. Tinha que por a cabeça na janela para parar no ponto certo, ver a placa bem de perto.

Chegava no banco e passava a vassoura por todo o lugar porque não conseguia enxergar onde estava sujo. Então era uma espécie de esquadrinhamento para passar a vassoura por todo lugar. Quando derramava alguma coisa no chão era um desespero. Tinha que passar pano molhado com convicção tentando perceber pelos outros se estava limpando o lugar certo.

Mas a maior parte do tempo estava lá na cantina ou na compensação fingindo fazer alguma coisa pra escapar de ter que agir de improviso e perceberem a sua condição. Faltavam ainda cinco anos pra aposentar embora tivesse contribuído por mais de quarenta anos. Daqui cinco anos talvez enxergasse muito melhor e estaria aposentada.

Talvez saísse pelo mundo pra ver as coisas que nunca viu. Talvez refizesse seu cotidiano caminho só pra enxergá-lo. Talvez descansasse sua vista num tricô ou croché. Ou pelo contrário cansasse. Talvez fosse a praia pra enxergar a areia. O mar já estava cansada de ver. Talvez, talvez fosse uma possibilidade.

Pamela via muito futuro nisso. Enxergar melhor fora sempre seu sonho. Isso se a catarata não viesse e enublasse sua visão novamente. Isso se a presbiopia antecedesse o aumento da miopia. Bom... pelo menos tinha essa visão, esse futurismo, esse sonho. Vamos ver...

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Sobre a arte e as hermenêuticas



A arte é muito mais eficiente ao capturar (ou ser capturada) pelo Zeitgeist (o espírito do tempo).  Portanto contar a história geral, humana, dita universal pela arte dos povos, grupos, nações parece ser uma abordagem muito mais rica, plural e sujeita a mais interpretações e mais erros. Quanto mais é possível errar, melhor é o método. Como assim seu idiota??? Você diz que o método menos rigoroso é melhor??? Não!!! Que métodos abertos são melhores que fechados.

 Não é possível descobrir uma verdade quando se sabe há pelo menos um séculoBa que as verdades são particulares. Que as ditas “verdades universais” são verossimilhanças consensuadas, algo que nos dá chão pra pisar. Estar próximo ou muito próximo da verdade é melhor que se prender a fantasias como se fossem realidades. Então você quer dizer que dois mais dois igual a quatro não é uma verdade? É sim. É uma verdade analítica, que é uma autoproclamação: só garante a si mesma.

Não era o propósito, mas estico: duas bananas mais duas laranjas são quatro frutas. Duas mangas mais duas jaboticabas igualmente. Duas bananas e duas laranjas são iguais a duas mangas e duas jaboticabas? As situações, os sujeitos, as interações mudam a reação. Usei uma lógica física ou química. Nem sociologia, nem filosofia, porque para essas é muito mais óbvio. Para qualquer hermenêutica, tudo é muito susceptível.

Textos se tornam eternos porque podem ser reinterpretados. Universais também porque a tradução permite ultrapassar realidades dispares entre as línguas. Não há fidelidade nenhuma nisso. Há a lealdade possível. Para isso há a verossimilhança de criar metáforas e metonímias para mudando tudo mostrar os aspectos primordiais do texto que se julga que deveriam ser preservados.

Somente a arte consegue numa mesma obra se dizer e desdizer do modo de sua época. Mostrar os conflitos não como discurso, as vezes nem como descrição, mas como narrativa. A narrativa do conflito é muito mais complexa: mocinho não é mocinho, nem bandido é bandido. Sem defender um ou outro, em muitas situações fazem o inverso. Na maioria, não é muito claro quem é quem. Salvo os casos limítrofes, as pessoas tendem a variar entre um ou outro, virtuoso e desvirtuado com frequência e precisam de uma narrativa para se estabelecerem como mocinho ou bandido. As melhores obras são as que não tem nem mocinho, nem bandido.

Quanto mais uma obra é particular, tem as dores, os prazeres, o espírito de seu tempo, mais ela é universal. A obra mais universal é a que explora a singularidade, as dores do individuo em seu tempo porque por mais que seja subjetiva (e, portanto, limitada) será lida por sujeitos que se identificarão. Quando se diz que o sertão, a vila isolada é o mundo é uma verdade porque mostra os aspectos essenciais. Embora as metrópoles mostrem muito mais o mundo que é intrinsecamente interligado. Essa é uma visão geral, panorâmica que não alcança as especificidades.

As narrativas particulares (escritas, pintadas ou cantadas) mostram lugares, épocas, ambientes que não vivemos, mas tem maior verossimilhança com nossa realidade do que textos que tentam descrever ou dissertar sobre o real. Não há verdade, mas verossimilhança graça por todo o lado. É muito mais completo descrever uma goteira numa poesia que num relatório técnico. O ultimo tem a virtude ser objetivo, mas deixa escapar quase tudo do que é uma goteira.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

A arte



Estava no meio da selva. Era uma formiga em seu próprio jardim. Ervas daninhas não incomodavam. Ele próprio se reconhecia como uma. Sugara o conhecimento de todos os sábios que conhecera. Uns dois ou três. De todo modo era um ser perdido numa amplitude infindável. Era um camelo perdido no deserto, longe de qualquer oásis. Ou não, perto da foz do Nilo.

Era um ser humano qualquer, nem mais, nem menos privilegiado. Apenas plenamente consciente. Apavoradamente consciente. Um pingo de ordem num oceano de caos, poderiam dizer. Mas era um pingo de caos mergulhado em infinitas outras desordens. Percebia que nada daquilo poderia ser racionalizado. Não adiantava ir com a corrente ou contra a corrente. Aquilo estava mais para um redemoinho.

Pensando bem, redemoinho tem uma ordem. A vida real não tem nenhuma. Saber disso é muito fácil. Ter consciência disso é desesperador. Sabia que ser cínico era impossível. Era possível a ilusão da hipocrisia. Era preciso se alienar. Fingir existir alguma ordem mesmo que grupal, comunitária ou só individual.

Saber desse pouco impediria qualquer um de viver, sabia. As pessoas alienavam a própria alienação. Viver era um apesar de todo o resto das coisas. Consciente ela sublimava suas verdades pintando, escrevendo... fazendo o possível. Pois sabia que só a arte pode expressar a realidade em forma de ficção. Ou essa ficção chamada de realidade só pode ser retratada pela arte.

O sabiá sabia assobiar

  Assim cantou o sabiá Como sempre Sabia assobiar Com a melodia assombrar E o ritmo encadear O sol sobe e a lua baixa As estrela...