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sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Conto de Queila


 

O que diria Queila? É sempre uma boa pergunta que teria sempre uma resposta inesperada. Queila certamente diria algo que não desejasse dizer. Não pra agradar ninguém. O que, aliás, não agradava. Tinha sempre aquela resposta a uma pergunta não feita disfarçada de má compreensão da pergunta feita. Era como se fosse um exercício de contorcer, torturar as palavras, desfazer rimas e colocar farinha na areia.

Foi assessora da câmara municipal por muito tempo. Sempre deixava todo mundo insatisfeito. Não comprometia os vereadores, mas também não os defendia. Ah! Então ela se limitava aos fatos? Longe disso! Seu discurso até tinha alguma veracidade, mas fato era o que menos tinha ali.

Tudo pra ela era um causo onde em nome de ilustrar a história retirava todos os fatos, as narrativas centrais e amarrava uma serie fuxicos marginais de modo a dar uma interpretação mais justa às coisas. No meio da conversa deslocava uma ou duas rimas de lugar de modo a tirar todo o ritmo da conversa.

Ninguém era mais atenta às seções pra que nenhum fato saísse sem o seu floreio. Bom floreio é uma péssima palavra porque se tivesse qualquer gramínea ali o que ela fazia era passar um dessecante. Tornava tudo aquilo ali desinteressante para quem não tivesse paciência para minerar as histórias. Transformar minutos de conversa em um ano de constatações ao apurar todas as pistas deixadas.

Queila precisava ser compreendida. Quase ninguém a compreendia. Sobretudo os vereadores e funcionários graduados da casa. Se a compreendessem seria sumariamente demitida por vazar tantos indícios. O grande problema é que ninguém tinha um on. Precisava cavoucar os indícios pra achar os fatos denunciados. Quando perguntavam a um vereador não podiam dizer de onde tiraram e muitas vezes estes se indignavam, diziam que é um absurdo e retoricamente perguntavam de onde teriam tirado aquelas perguntas absurdas, aquelas blasfêmias, injurias e difamações.

Certa vez, no meio da conversa, disse que os funcionários de uns vereadores tinham uns meses que não recebia os salários integrais. Uns dias depois que o partido de um tal vereador estava com muito dinheiro pra campanha. Outra oportunidade que outro tinha comprado um barco enorme. Se tivessem perguntado a ela se alguns vereadores estariam desviando dinheiro dos funcionários ela diria que não poderia afirmar, não tinha como saber disso.

Ela só repassava as conversas da câmara. Nada além disso. Sem nenhuma intenção por traz. Apesar de dizer que ninguém ali era ingênuo. Ninguém. Sempre tinha desdobramentos. Toda fala. Ela mesmo não falava mal de ninguém. So repassava o que essas pessoas maldosas falavam pras pessoas saberem como são as coisas. Se tinha uma coisa que odiava era fofoca.

Essa é a Queila que só não era sincera porque é perigoso. Se fosse sincera ninguém suportaria ela, segundo ela mesma não cansava de dizer. Dizia que mentia, mas mentia só pra se defender porque as verdades são muito agressivas. Fiquei com medo! Tchau! Hora de terminar esse relato...

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Truco

 


Breve mormaço antecede a chuva. Esvai-se a esperança. Glória!!! Cai a realidade do céu. Nenhuma estrela há de me salvar. Nem de mim mesmo. Nem do outro eu que retruca. Na mesa um par de ases. Outra carta. Tomara que seja um quatro. Um zap. Eu truco! Para acabar com o marasmo. O az era de espadas. Mas não era um quatro. Quase! Era um três. Só uma espadilha é pouco. O que terá meu parceiro? Passo instantes entre a euforia e a dor de barriga.

O destino há de definir o resultado...

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Contra a desilusão

 


Queria voar ao chão

Abraçar o mar

Nadar nas nuvens

Colher estrelas sem parar

Chafurdar no mousse

De limão ou chocolate

Ah! Mas só me restam tamarindos

In natura pra apreciar

Tem mel com abelha

Africana no favo pra chupar

E se no campo eu quiser deitar

As urtigas vão me acariciar

Posso rezar pra São Mindinho

Mandar chuva me molhar

Mas o sol em labaredas

Não deixa a água me tocar

Dizem que sou pessimista

Que vivo a praguejar

Mas ninguém sabe da alegria

De não desmoronar

Conto da Pâmela


 

Pamela acordou aquele dia com os olhos melados. Coisa estranha isso! Todo dia tinha que levantar da cama e correr pra fila do banheiro pra poder ver alguma coisa. Depois de lavar o rosto, ou mais especificamente os olhos, voltava pro quarto a enxergar vultos pra pegar seus óculos fundo de garrafa que usaria por pouco tempo.

Ainda sofria os efeitos da operação na vista que fizera pra diminuir sua hipermetropia de periclitante para alta. Foi uma coisa mesmo de pressa porque com o tempo e o aumento natural da miopia sua visão tenderia a melhorar. Tinha dificuldade de atravessar avenidas muito largas. Conseguia ler com dificuldade até sem óculos. Estava trocando um pouco de um por outro com o tempo, mas uma troca muito injusta que dificilmente lhe ajudaria a ver de longe e ia lhe tirando a visão de perto.

Pegava o ônibus do outro lado da rua ou no meio da rua. Não conseguia perceber esses detalhes. O que percebia é que era um flagelo chegar lá. Difícil perceber se estavam lhe sacaneando quando perguntava que ônibus era antes de entrar. Já pegara muitos ônibus errados porque alguém decidia dificultar sua vida. Tinha que por a cabeça na janela para parar no ponto certo, ver a placa bem de perto.

Chegava no banco e passava a vassoura por todo o lugar porque não conseguia enxergar onde estava sujo. Então era uma espécie de esquadrinhamento para passar a vassoura por todo lugar. Quando derramava alguma coisa no chão era um desespero. Tinha que passar pano molhado com convicção tentando perceber pelos outros se estava limpando o lugar certo.

Mas a maior parte do tempo estava lá na cantina ou na compensação fingindo fazer alguma coisa pra escapar de ter que agir de improviso e perceberem a sua condição. Faltavam ainda cinco anos pra aposentar embora tivesse contribuído por mais de quarenta anos. Daqui cinco anos talvez enxergasse muito melhor e estaria aposentada.

Talvez saísse pelo mundo pra ver as coisas que nunca viu. Talvez refizesse seu cotidiano caminho só pra enxergá-lo. Talvez descansasse sua vista num tricô ou croché. Ou pelo contrário cansasse. Talvez fosse a praia pra enxergar a areia. O mar já estava cansada de ver. Talvez, talvez fosse uma possibilidade.

Pamela via muito futuro nisso. Enxergar melhor fora sempre seu sonho. Isso se a catarata não viesse e enublasse sua visão novamente. Isso se a presbiopia antecedesse o aumento da miopia. Bom... pelo menos tinha essa visão, esse futurismo, esse sonho. Vamos ver...

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Sobre a arte e as hermenêuticas



A arte é muito mais eficiente ao capturar (ou ser capturada) pelo Zeitgeist (o espírito do tempo).  Portanto contar a história geral, humana, dita universal pela arte dos povos, grupos, nações parece ser uma abordagem muito mais rica, plural e sujeita a mais interpretações e mais erros. Quanto mais é possível errar, melhor é o método. Como assim seu idiota??? Você diz que o método menos rigoroso é melhor??? Não!!! Que métodos abertos são melhores que fechados.

 Não é possível descobrir uma verdade quando se sabe há pelo menos um séculoBa que as verdades são particulares. Que as ditas “verdades universais” são verossimilhanças consensuadas, algo que nos dá chão pra pisar. Estar próximo ou muito próximo da verdade é melhor que se prender a fantasias como se fossem realidades. Então você quer dizer que dois mais dois igual a quatro não é uma verdade? É sim. É uma verdade analítica, que é uma autoproclamação: só garante a si mesma.

Não era o propósito, mas estico: duas bananas mais duas laranjas são quatro frutas. Duas mangas mais duas jaboticabas igualmente. Duas bananas e duas laranjas são iguais a duas mangas e duas jaboticabas? As situações, os sujeitos, as interações mudam a reação. Usei uma lógica física ou química. Nem sociologia, nem filosofia, porque para essas é muito mais óbvio. Para qualquer hermenêutica, tudo é muito susceptível.

Textos se tornam eternos porque podem ser reinterpretados. Universais também porque a tradução permite ultrapassar realidades dispares entre as línguas. Não há fidelidade nenhuma nisso. Há a lealdade possível. Para isso há a verossimilhança de criar metáforas e metonímias para mudando tudo mostrar os aspectos primordiais do texto que se julga que deveriam ser preservados.

Somente a arte consegue numa mesma obra se dizer e desdizer do modo de sua época. Mostrar os conflitos não como discurso, as vezes nem como descrição, mas como narrativa. A narrativa do conflito é muito mais complexa: mocinho não é mocinho, nem bandido é bandido. Sem defender um ou outro, em muitas situações fazem o inverso. Na maioria, não é muito claro quem é quem. Salvo os casos limítrofes, as pessoas tendem a variar entre um ou outro, virtuoso e desvirtuado com frequência e precisam de uma narrativa para se estabelecerem como mocinho ou bandido. As melhores obras são as que não tem nem mocinho, nem bandido.

Quanto mais uma obra é particular, tem as dores, os prazeres, o espírito de seu tempo, mais ela é universal. A obra mais universal é a que explora a singularidade, as dores do individuo em seu tempo porque por mais que seja subjetiva (e, portanto, limitada) será lida por sujeitos que se identificarão. Quando se diz que o sertão, a vila isolada é o mundo é uma verdade porque mostra os aspectos essenciais. Embora as metrópoles mostrem muito mais o mundo que é intrinsecamente interligado. Essa é uma visão geral, panorâmica que não alcança as especificidades.

As narrativas particulares (escritas, pintadas ou cantadas) mostram lugares, épocas, ambientes que não vivemos, mas tem maior verossimilhança com nossa realidade do que textos que tentam descrever ou dissertar sobre o real. Não há verdade, mas verossimilhança graça por todo o lado. É muito mais completo descrever uma goteira numa poesia que num relatório técnico. O ultimo tem a virtude ser objetivo, mas deixa escapar quase tudo do que é uma goteira.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

A arte



Estava no meio da selva. Era uma formiga em seu próprio jardim. Ervas daninhas não incomodavam. Ele próprio se reconhecia como uma. Sugara o conhecimento de todos os sábios que conhecera. Uns dois ou três. De todo modo era um ser perdido numa amplitude infindável. Era um camelo perdido no deserto, longe de qualquer oásis. Ou não, perto da foz do Nilo.

Era um ser humano qualquer, nem mais, nem menos privilegiado. Apenas plenamente consciente. Apavoradamente consciente. Um pingo de ordem num oceano de caos, poderiam dizer. Mas era um pingo de caos mergulhado em infinitas outras desordens. Percebia que nada daquilo poderia ser racionalizado. Não adiantava ir com a corrente ou contra a corrente. Aquilo estava mais para um redemoinho.

Pensando bem, redemoinho tem uma ordem. A vida real não tem nenhuma. Saber disso é muito fácil. Ter consciência disso é desesperador. Sabia que ser cínico era impossível. Era possível a ilusão da hipocrisia. Era preciso se alienar. Fingir existir alguma ordem mesmo que grupal, comunitária ou só individual.

Saber desse pouco impediria qualquer um de viver, sabia. As pessoas alienavam a própria alienação. Viver era um apesar de todo o resto das coisas. Consciente ela sublimava suas verdades pintando, escrevendo... fazendo o possível. Pois sabia que só a arte pode expressar a realidade em forma de ficção. Ou essa ficção chamada de realidade só pode ser retratada pela arte.

domingo, 30 de novembro de 2025

Cortando e desvirtuando o conceito de história de Benjamin



Vou continuar a refletir sobre a minha concepção desvirtuada de Walter Benjamin. Vou pensar apenas um pequeno recorte da sua concepção de história. Os historiadores estão sempre voltados para o passado. Nós comumente construímos a história com base no passado. A construímos com base em nossa experiência. Nada mais natural porque partimos do que conhecemos.

Com isso sempre trazemos o passado para o nosso presente. Pior, o colocamos no futuro quando o usamos pra planejar. Impossibilitamos nascer o novo por estarmos sempre presos ao passado. Poxa! Mas se esquecermos o passado podemos repetir os mesmos erros de novo. Sim, mas se levarmos o passado para o futuro os erros são transportados. Não podemos esquecer o passado, mas não podemos construir o novo sem romper com o passado.

Pra fazer o novo é preciso partir do novo, de um presente ideal. É preciso romper com a linearidade. Começar uma nova história livre dos absurdos do passado. Não estou falando de uma revolução socialista ou anarquista. Estas estariam relacionadas a um passado. O negando, provavelmente. Não seria um corte epistemológico.

Para criar o novo, as escolas devem ensinar o passado como uma era repugnante já terminada e focar na criação do novo tempo desligado das mazelas do passado. Um tempo sem a lembrança da escravidão que impõe o racismo e a misoginia. Aí está o ponto que vou ser mais polêmico e vou tomar todas as porradas possíveis e justamente porque o novo não está aí. Não defendo o esquecimento. Como eu disse, 15 minutos após o estabelecimento do novo, o passado deve ser uma era desprezível já terminada. O escravismo precisa ser tirado da história da nova era para que deixe de ser referência. Mesmo que seja negativa, abominada continua sendo uma enorreferencia que pode ser retomada, fantasiada, sublimada como é hoje.

Para fazer uma nova história, é preciso fazer o novo a partir do novo, de novos pensamentos. É preciso romper com o velho. Romper, não negar. Desligar-se. Perder as referências. Reconstruir com base no que nunca foi feito ou adotado. Do passado só podemos se muito adotar ideias perdedoras por razões econômicas, políticas ou de preconceito se convenientes. Para fazer uma nova história é preciso agir diferente. Para agir diferente é preciso romper com a velha história: o tempo antigo, o tempo morto.

O que proponho é algo muito perigoso. O fascismo e o nazismo propuseram algo semelhante. Mas tem uma enorme diferença: não estou propondo uma volta a um passado mitológico poderoso. Estou propondo romper com qualquer passado, real ou mitológico. Proponho deixar de repetir erros. Cometer erros novos. Nós temos horror ao desconhecido, mas se quisermos algo novo precisamos avançar para o incógnito.

A vida segue

  Atravessei dois ou três prédios pela rua Inspirou-me confiança Acenei efusivamente para o nada Recolhi todos ou louros da ação Esc...