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sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Conta de Sebastian

 


Convidaram Sebastiana para dançar um xaxado na Paraíba... Tocava no rádio. Sebastian não tocava guitarra. Tocava bodes. E tinha um bode bem na sua sala: mudara da chácara para a cidade. Resolveram que a melhor coisa que podiam fazer era afogar seu vilarejo.

Resolveram assim do nada. Não perguntaram ninguém. Não fizeram um plebiscito. Chegaram a conclusão de que faltava energia lá no sul e que tinham que fazer uma usina no seu estado que por assim dizer já produzia umas dez vezes a energia que consumia.

Não deu muito tempo de vender seus cinco bodes. Teve que soltar dois no mato e torcer pra não se afogar. Três vendeu para um restaurante da capital que é pra onde desgostosamente foi.  As galinhas foi tudo numa galinhada pra despedir dos vizinhos antes de todos terem que capar o gato. Expressão infeliz de quem nunca teve que capar um gato.

O arroz foi da mercearia do Seu Zé, que na verdade chamava Dêmocles, mas era mais fácil chamar de Zé mesmo. As mercadorias que tinham prazo ele revendeu a preço de custo para uns supermercados da capital. O arroz que estava vencendo foi todo pra galinhada. Por sorte Sebastian tinha muitas galinhas.

Sebastian ia morar na Vila da Investco. Mas decidiu que não ia entrar em acordo com a empresa não. Afogaram seu bongô. Isso era inaceitável! Sua cachorra foi ficando doente a medida que chegava o tempo do alagamento. Morreu um dia antes. Era uma espécie de anuncio da tragedia.

A cadela foi perdendo os pelos. Já tinha muitas falhas. Perdeu os dentes também aos poucos. Ficou banguela antes de ficar sem pelos. Era de dá dó, mas não era um caso isolado. Muitos caninos perderam parte dos pelos ou dos dentes ao internalizar a angustia de seus donos. Mas nenhum outro ficou careca e banguela como a Esperança, cadela de Sebastian.

Nunca ia perdoar aquele povo da usina e aqueles políticos por terem feito aquilo. Afogar o povoado era suma maldade. Tirar um povo que vivia lá há muito mais tempo que o pessoal da capital pra umas empresas ter energia pra fabricar cimento, moldar aço... era um absurdo. Acabar com um dos luares mais lindos do mundo pra ligar lâmpadas num galpão de fábrica...

Era revoltante aquilo. O bode estava na sala. Ninguém podia explicar aquilo. Ficou abestalhado como os entreguistas haviam conseguido se reeleger. Mas dinheiro compra tudo, até dignidade. Até a ponte que atravessa o lago que afogou sua localidade ganhou o nome do presidente que soltou dinheiro (verba federal) para construí-la e depois tiraram o nome pra pôr o do governador da época.

Mas bode na sala não chateia tocantinense. Até a sede da FIETO (Federação das Indústrias do Tocantins) tem o nome do presidente da CNI (Confederação Nacional das Indústrias) que liberou o dinheiro pra construí-la. Só mesmo Sebastian é que tinha um bode chifrudo na sala. Que incomodava por demais.

Essa é a história do bode, quer dizer do Sebastian. Não boto nem a canela dentro d’água pra continuar a contá-la. Não acredito em destino, mas parece obvio que tem uns, que não importa a situação, sempre vencem. Sebastian não é um deles. Nem eu. E, provavelmente nem você.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Conto de Rafael


 

Rafael não era um anjo. Mas parecia. Um anjo trincado. Daqueles de porcelana com uns poucos cacos faltando. Voava em seu skate com extrema elegância. Exibia seus arranhões e roxos como cicatrizes de guerra. Dificilmente batia no chão ou na parede. Mas quando chocava... não era só um galo, só umas escoriações, alguns calos e joanetes.

Usava sempre seu velho tênis acolchoado dentro com algodão e penas. Até mesmo joelheiras e cotoveleiras tinham suas proteções extras. Capacete sempre usava. Por um bom tempo usou até protetor de pescoço. As asas, nunca protegeu. Vai ver que é por isso que não se viam. Sei lá se não tinha mais. Ou se ficou só um potoco.

Gostava de viver aventuras. Voar alto. Alcançar velocidades inéditas para ele. Não daqueles de extrema técnica que faziam os lances com aparente naturalidade. O que fazia era por instinto. Acreditava piamente que cada manobra era possível, ia acontecer. Não as fazia pra enfeitar movimentos. So as fazia porque era necessário para se mover na velocidade desejada. Porque precisava voar. Tinha que desviar de algo ou de alguém.

Se deslocava de casa para o trabalho, do trabalho pra casa no velho skate remoldado várias vezes. Seria um paradoxo de Teseu se Rafael entendesse de mitologia grega ou de paradoxos. Shape várias vezes refeito. Rodas constantemente trocadas. Amortecedor constantemente refeito e aperfeiçoado. A pintura trocava constantemente de acordo com sua vibe. Nem tanto assim. Mas digamos, a cada quatro ou cinco meses.

No trabalho usava uma moto para sair por aí pegando, pagando, distribuindo documentos. Era motoboy. Queria ser skateboy, mas não dava. Mas mesmo assim levava o skate consigo. Se tivesse uma brechinha para usá-lo... Também tinha medo de alguém pegar e estragar sua prancha sobre rodas.

Quando sobrava um tempinho no fim de semana pintava seus quadros. Não era lá uma Capela Sistina, mas... pintava até bem. Não era um De Sanzio. Mas tinha suas desproporções nada arbitrarias. Um quadro seu foi arrematado por milhões num leilão. Tanto o leiloeiro quanto o comprador confundiram o autor. Depois ficaram com vergonha de demonstrar a ignorância. Foi a única vez que vendeu um quadro seu. Passou a pintar para si mesmo e para encomendas. Mas toda vez que vinham pechinchar ele ficava ofendido. Daí vociferava sua frase: “Vai. Leva essa merda!”.

No tempo que não sobrava estava a cultivar o jardim do vizinho do fundo. Por uma dessas infelicidades urbanas sua casa não tinha nem quintal, nem varanda. Passava por um corredor exíguo  à esquerda ou direita das casas toda madrugada e alta noite pra regar as bromélias, lírios e alfazemas plantadas. Elas perfumavam seu sono. Sonhava.

Bom deixa sonhar. Não vou atrapalhar os sonhos. É hora de terminar.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Antônio e a vida

 


Antônio via a vida. Corria em suas vias suave suco. Bombado ora violentamente, ora compassado. Antônio não pensava nisso. Como eu disse, ele via a vida. A vida floria. A vida secava. A vida se desdobrava. A vida não era um rio. Não tem leito. A vida não tem pulsação. A vida tem ciclos? Tem revolução? Digo: tem frequência?

Antônio observava. Os cenários se desdobravam. Mas tem lógica? Era caos absoluto ou a ordem não foi descoberta? A vida seria um teatro? Uma peça sobre a guerra ou a guerra mesmo? Uma tragédia ou uma comédia? Somos todos atores? O enredo já está escrito? Os gregos ou Espinosa estão certos? Existe destino? Ou existe um livre-arbítrio individual que no conjunto, na soma das forças não altera a providência?

A vida vai passar e Antônio não. Antônio vai ficar em algum ponto. Vai virar esterco ou cinza. No final, Antônio passa e a vida não. A vida é que observa Antônio.

domingo, 7 de dezembro de 2025

Romantismo

 


O rio cruza a mata

Em silêncio

Coaxa um sapo pra lá pra cá

A fênix persiste silenciosa

Escondida

Invisível

O saci perereca

Pra lá e pra cá

Na sombra do sol

A dama da noite

Cresce em direção a luz da lua

A lua e o sol dançam um tango

Mas a selva...

Na floresta é batidão

É pedra rolando...

Poesia concreta

Não romântica

sábado, 6 de dezembro de 2025

Real

 


Aspirou a ser grande

Mas nunca foi pequeno

Fez muita média

e...

ponto final

Nada a acrescentar

Ninguém nasceu

Nem morreu

Existe???

O rei enforcou o antigo rei

O príncipe sempre será

Nunca rei

Das tripas se faz coroas

A educação faz príncipes

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Conto de Queila


 

O que diria Queila? É sempre uma boa pergunta que teria sempre uma resposta inesperada. Queila certamente diria algo que não desejasse dizer. Não pra agradar ninguém. O que, aliás, não agradava. Tinha sempre aquela resposta a uma pergunta não feita disfarçada de má compreensão da pergunta feita. Era como se fosse um exercício de contorcer, torturar as palavras, desfazer rimas e colocar farinha na areia.

Foi assessora da câmara municipal por muito tempo. Sempre deixava todo mundo insatisfeito. Não comprometia os vereadores, mas também não os defendia. Ah! Então ela se limitava aos fatos? Longe disso! Seu discurso até tinha alguma veracidade, mas fato era o que menos tinha ali.

Tudo pra ela era um causo onde em nome de ilustrar a história retirava todos os fatos, as narrativas centrais e amarrava uma serie fuxicos marginais de modo a dar uma interpretação mais justa às coisas. No meio da conversa deslocava uma ou duas rimas de lugar de modo a tirar todo o ritmo da conversa.

Ninguém era mais atenta às seções pra que nenhum fato saísse sem o seu floreio. Bom floreio é uma péssima palavra porque se tivesse qualquer gramínea ali o que ela fazia era passar um dessecante. Tornava tudo aquilo ali desinteressante para quem não tivesse paciência para minerar as histórias. Transformar minutos de conversa em um ano de constatações ao apurar todas as pistas deixadas.

Queila precisava ser compreendida. Quase ninguém a compreendia. Sobretudo os vereadores e funcionários graduados da casa. Se a compreendessem seria sumariamente demitida por vazar tantos indícios. O grande problema é que ninguém tinha um on. Precisava cavoucar os indícios pra achar os fatos denunciados. Quando perguntavam a um vereador não podiam dizer de onde tiraram e muitas vezes estes se indignavam, diziam que é um absurdo e retoricamente perguntavam de onde teriam tirado aquelas perguntas absurdas, aquelas blasfêmias, injurias e difamações.

Certa vez, no meio da conversa, disse que os funcionários de uns vereadores tinham uns meses que não recebia os salários integrais. Uns dias depois que o partido de um tal vereador estava com muito dinheiro pra campanha. Outra oportunidade que outro tinha comprado um barco enorme. Se tivessem perguntado a ela se alguns vereadores estariam desviando dinheiro dos funcionários ela diria que não poderia afirmar, não tinha como saber disso.

Ela só repassava as conversas da câmara. Nada além disso. Sem nenhuma intenção por traz. Apesar de dizer que ninguém ali era ingênuo. Ninguém. Sempre tinha desdobramentos. Toda fala. Ela mesmo não falava mal de ninguém. So repassava o que essas pessoas maldosas falavam pras pessoas saberem como são as coisas. Se tinha uma coisa que odiava era fofoca.

Essa é a Queila que só não era sincera porque é perigoso. Se fosse sincera ninguém suportaria ela, segundo ela mesma não cansava de dizer. Dizia que mentia, mas mentia só pra se defender porque as verdades são muito agressivas. Fiquei com medo! Tchau! Hora de terminar esse relato...

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Truco

 


Breve mormaço antecede a chuva. Esvai-se a esperança. Glória!!! Cai a realidade do céu. Nenhuma estrela há de me salvar. Nem de mim mesmo. Nem do outro eu que retruca. Na mesa um par de ases. Outra carta. Tomara que seja um quatro. Um zap. Eu truco! Para acabar com o marasmo. O az era de espadas. Mas não era um quatro. Quase! Era um três. Só uma espadilha é pouco. O que terá meu parceiro? Passo instantes entre a euforia e a dor de barriga.

O destino há de definir o resultado...

Conto de Ulices

  Ulices não foi pra ilha de Creta. Nunca pretendeu tomar uma rainha. Quer dizer, uma vez no xadrez sim. Na Dama nunca chamou a dama de rain...