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sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Conto do Guilherme

 


Guilherme Tell, ou Guilherme de Tell, foi um arqueiro famoso cantado em prosas e verbos pelo mundo ocidental todo. Mas nunca foi nem a sombra de seu bisneto Guilherme de Tal, que não precisava de frutas tão vistosas como uma maçã para acertar a poucos quilômetros de distância.  Coisa de amador! Gostava de cortar longitudinalmente fios de cabelo arremessando do arco pequenas agulhas para infligirem módicos furos em fios de cabelos em sequência.

Com tamanha precisão não podia trabalhar num castelo, nem mesmo num teatro. Precisava se exibir num circo de pulgas. Era preciso uma micro atenção, uma visão microscópica para sua arte. Só mesmo com a ampliação de milhões de vezes numa tela era possível se maravilhar com tamanha destreza. Era muito complicado! Confundiam arte milimétrica com minimalismo.

Tinham que ampliar milhões de vezes num telão para as pessoas verem. Tanta destreza e eficácia dificultava tudo. Não era uma habilidade que lhe sustentaria por muito tempo. Virou chefe de cozinha molecular. Assim podia fazer seus malabarismos e se exibir em pratos exóticos acuradamente calculados. Reações vistosas e belas.

Adorava fazer luzes, controlar luzes. Ver as mudanças de cores, odores, sabores. Mudar texturas. Transformar a culinária em laboratório para fazer malabarismos. Lançar temperos aos pratos com precisão milimétrica. Virar omeletes, tortas, tortilhas, panquecas...  Arremessar pratos às mesas.

Chegava todo dia de madrugada na cozinha pra treinar os seus novos truques, testar composições. Se divertir com cores, odores e sabores. Depois ia a feira quase no amanhecer pra fazer malabarismos com frutas e verduras. De volta a cozinha picava os ingredientes em diferentes formas e texturas. Tirava um cochilo num quartinho ao fundo da cozinha. O restaurante só abria uma hora da tarde.

Quem quisesse provar só tinha das 13h ás 17h pra aproveitar. O restaurante ficava aberto até às 22h mas o artífice era outro. Guilherme era irredutível com o horário de trabalho: das 3h ás 9h, das 12h às 17h. Dia sim, dia não. Nos dias não treinava em casa a tarde inteira os arremessos de pratos com o arco.

Era uma espécie de teste de qualidade dos pratos. Era o maior descobridor dos lotes com defeitos. As louças eram testadas com muita delicadeza. Pois ele sabia fazer os pratos aterrizarem com maior cuidado que se fossem colocados com a mão na mesa. Também testava os forros de mesa pra descobrir se eram lisos o suficiente para serem retirados sem mover o que estava acima deles.

Uma rotina muito regular que não permite o descanso de Guilherme que aliás já me confidenciou que é o momento. Boa noite, Guilherme! Bom dia leitor. Eu sigo minha insônia por aqui, mas não nesse texto. Descansem!

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Presente e Passado

 

Quanto mais me despeço

Mais me prendo

À um futuro aberto

À prisão das lembranças

 

Quanto mais me desprendo

Mais preso estou

Às ações futuras

Aos acertos do passado

 

Se a locomotiva chega

Traz consigo um monte de vagões

À frente trilhos inexplorados

Nos vagões muita carga

domingo, 28 de setembro de 2025

Oligo e Poli

A variedade quase sempre renega a qualidade dos produtos, cria a impressão de que tudo é uma porcaria ou pior ainda que tudo é a mesma porcaria. Quando há pouca variedade de oferta a qualidade é muito mais destacada. Não digo que os produtos se tornam melhores, mas que se torna muito mais fácil comparar um e outro. Tendemos a escolher o de melhor qualidade.

Quando há variedade, sobretudo muita variedade, fica difícil comparar e se encontramos uma variedade de produtos ruins. Basta serem dez ou vinte porcento, tendemos a perceber que a maioria é ruim, quando não todos são ruins. Aí se destaca o preço como um diferencial perceptível cuja a variedade naturalmente provoca e ofusca a qualidade.

Podemos estender isso pra uma série de coisas quando se amplia a oferta: música, séries, filmes. Nem preciso discutir os produtos físicos com a sua validade. A questão de moda ou de caducidade. Retirando a questão da memória afetiva que tende a ressaltar as qualidades e esconder os defeitos que interfere absurdamente nessa questão, dizer que as músicas de ontem ou os filmes de ontem são melhores que os atuais é afetado pela disponibilidade.

Sem dúvida a questão da concorrência faz com que se fabrique cantores, cantoras, grupos e músicas pra fazerem sucesso mesmo que momentâneo. Mas isso não é nada novo. Boys Band são criadas há décadas. Quando eram em menor quantidade, quando gravar não tinha se popularizado tanto tinham que ser melhores porque senão nem gravavam a principio e se gravassem era relativamente fácil comparar as obras com parcimônia. Não havia tantas para apreciar.

       Além disso, reforço um por cento dos indianos faz mais barulho que dez ou vinte por cento dos espanhóis ou italianos. O volume dá a falsa impressão de alguma apreciação. Mesmo que no passado metade das músicas fossem ruins, vinte por cento das músicas hoje serem ruins faz muito mais volume e barulho. A metade ou só cinco por cento das músicas do passado eram facilmente ignoradas se concentrando nas boas. Hoje o volume é tão grande que você não tem tempo nem de conhecer quanto mais de apreciar e separar. Rapidamente se chega ao julgamento: é tudo uma m...!!!

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Conto do Felício

 


Era feliz Felício? Fora feliz pelo menos no início? Queria ser igual seu irmão Betinho, um Felizberto. Era chamado de felínio, felino na escola. Era um ser que se incomodava de ser considerado um gato. Gato Guerreiro talvez. Não gostava de ser comparado com um Pacato.

O felino era um tigre, uma onça, um guepardo? Betinho era um nome mais legal! Pelo menos era mais usual, comum. Felício pensava, pensava, pensava. Refletia demais. Isso gastava tanto seu tempo que nem sabia se era feliz.  Se eu fosse chutar, diria que seria muito feliz quando parasse de pensar tanto nisso.

Felício não tinha barba, mas ostentava um ralo bigode de tigre. Poucos, mas grossos pelos. Betinho não tinha pelos. Nenhum. Nem cabelo desde bebê. Felino, opa, Felício dobrava as esquinas com rara habilidade. Driblava os obstáculos e se pulava caia com majestosidade sobre as duas patas, digo, os dois pés.

Conhecia aquelas ruas como ninguém. Comera médias em praticamente todos aqueles bares. Conhecia dos hábitos matinais de todos aqueles boêmios daquela região. Guiava-se com extrema destreza no pequeno breu que antecede o nascer do sol naquela região de muitas luminárias queimadas ou quebradas. Sabia de cor a localização de todos os postes, arvores e samambaias pelo caminho.

Trabalhava desde muito cedo na pequena mercearia/restaurante árabe da região. O dono da mercearia, Tufic, só conhecia os clientes. Os conhecia muito bem. Mas muito pouco da região. Andava apenas do deposito pra loja. Da loja pro deposito. Caminho decorado. Vasos, porcelanas, aromas, sabores... O bastante para guiar o caminho com olhos vendados, ouvidos moucos daqui pra lá e de lá pra cá na sua usual trilha da entrada ao fundo da loja.

Cedo tinha que juntar moedas, trocar dinheiro, fazer o troco pelas ruas visitando os comércios um a um. Cumprimentando um a um pelas ruas e avenidas. Avaliando o trafego de transeuntes, o ritmo, as pausas. Tentando prever o movimento do dia na mercearia, o gasto. Conseguia prever quase com exatidão. Era puro instinto.

Era muito hábil. Contornava os obstáculos com muita malevolência.  Do mesmo modo driblava os clientes para atendê-los com mais rapidez. Fluía por entre as pessoas para tornar o ambiente confortável. E quando algum engraçadinho com excesso de cachaça se tornava incomodo, com enorme agilidade Felício o imobilizava. Nenhum arranhão sofria. Já o incauto azarado talvez fosse necessário tomar uma antitetânica. Felício tinha unhas maravilhosas e bem cuidadas, um tanto longas.

Vambora porque já é cedinho e Felício vira uma fera se não tomar seu pratinho de leite com cereais ou frutinhas. Eu que virei a noite inteira escrevendo esse texto vou dormir. Boa Noite, gente! Boa Noite, felino, quer dizer, Felício!

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Democracia

Eu sou a linha que costura os corpos

Mantenho os poderes equilibrados

Inflamo um poder se machucado

Bato o martelo da justiça se necessário

Tento executar o executável

Tento entrar na cabeça dos legisladores

Rechaço criar despachantes

Deixo qualquer um se opor

Mas costuro o acordo

Até se for na marra

E se rasgam minhas linhas

Sangro

Avermelho os filhos duma

Banho-os do meu liquido vital

Sinalizo que a represa rompeu

A aorta está aberta

E se há um hábil pra costurar

Evitar o desastre

Me rendo a ele

Como puta a democracia

A realizar seus mais recônditos desejos

Democracia

Não me alinho

Eu componho

Não faço letra

Não tenho ginga

Só me ajusto

Às conveniências

A música compõe o universo

O ambiente dá a letra

Me chamam demagogo

Maria vai com as outras

Outros de murista

Eu sou a cola

Me chamo político

Estou aberto a negociar

Chegar num consenso

Amo a democracia

terça-feira, 23 de setembro de 2025

É hora de política

         


 

      O Congresso brasileiro durante os governos Temer e Bolsonaro foi muito sensível aos Lobbys econômicos empresariais aprovando pautas que além de danosas são absurdamente impopulares mesmo com ajuda da mídia cujo os donos são parte de uma mesma elite financista. De dezembro do primeiro ano de Bolsonaro o Congresso foi libertando de qualquer amarra e até mesmo progressivamente dos lobbys porque percebeu que não precisa mais do apoio dos grupos organizados porque podem ser eleitos na base do dinheiro bruto inclusive inflacionando o mercado propositalmente para restringir a oferta. Ou seja, os deputados estão fazendo dumping.

É preciso que os grupos populares, que a base organize seus lobbys não só pra fazer lobbies, mas para fazer abaixo-assinados, realizar protestos... constranger os parlamentares. É preciso pipocar pelo Brasil vaquinhas para colocar os rostos dos traidores apoiadores da PEC das Quadrilhas de cada estado no seu domicilio eleitoral. Se alugarmos outdoors por uma semana pra expor os Joãos Silverios e os Judas e ameaçarmos fazer outras vezes... os legislativos vão se tornar mais cautelosos.

Hannah Arendt em Condição Humana foi mestra em nos mostrar como fomos regredindo de majoritariamente construir coisas, inovar para trabalhar para sobreviver. Ocupar todo o nosso tempo com a própria sobrevivência ficando sem tempo para agir. Agir na gramatica arendtiana é colocar algo novo mundo tanto que o nascimento é uma espécie de ação. Agir é uma atividade pública por excelência em contraponto a economia que cuida do privado. A praça publica tem sido as redes antissociais que são no mínimo tuteladas pela economia. Na melhor das hipóteses capitalista. Na mais provável tecno-feudalista. É preciso tornar as ruas e praças o espaço público novamente.

A vida segue

  Atravessei dois ou três prédios pela rua Inspirou-me confiança Acenei efusivamente para o nada Recolhi todos ou louros da ação Esc...