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sábado, 29 de março de 2025

Julgamento

 

Pisei no calo.

Ele julgou-me.

Quem disser que lhe julguei mal

Provavelmente está errado.

Quem disser que lhe julguei bem

Provavelmente está condescendendo.

 

Eu, como todo mundo,

Sou fruto de infinitos julgamentos.

 

Pisei-lhe o calo.

Ele ficou em dúvida

Se me livrava de meus sofrimentos por ódio.

Ou me era grato por lhe revelar mais um pouco de si.

Helô

 


Nessa densa floresta

De pesada complexidade

Solto meus bichos

Um a um

Sem querer empatar nada

 

Na volúpia do teu relevo

Sonho minha caminhada

Devaneio tua perfeição

 

Enquanto desfruto do máximo prazer

de tocar tua estrada célula à célula

Num angustiante passeio

Romaria, devoção

sexta-feira, 28 de março de 2025

A Ética, a Razão e a Felicidade

 


Aristóteles em suas Éticas (Ética a Nicômaco e Ética a Eudemo) dizia que o único fim-per-se ou fim-em-si-mesmo é a felicidade. Provavelmente, após a modernidade e o consumismo temos que reconsiderar essa questão da existência de uma finalidade final. Mas a discussão mais interessante, e que nos interessa, é a afirmação dele de que somente os que tem a vida contemplativa poderiam alcançar esse bem último por se guiarem pela racionalidade enquanto os da vida laboral ou produtiva não se guiam e estarem imunes a corrupção da vida material, os da vida política não estão. Portanto, Aristóteles coloca a sabedoria, ou melhor o amor a sabedoria, em condição privilegiada para alcançar a felicidade.

Em vários trechos do evangelho é descrito justamente o contrário: que a felicidade pertence aos ingênuos e aos ignorantes. Em Werther, Goethe descreve muito bem esse contraponto à Aristóteles e faz uma bela síntese:

No entanto, para viver uma vida sob a ética humanista ou sob a inspiração cristã, a busca da felicidade não faz parte da equação. Para os cristãos, em muitas passagens do novo testamento, da boa nova do amor depois da vinda do Messias, a vida na terra é uma vida de provações, de sofrimento para alcançar a redenção após a morte. Para os humanistas, a ética visa o bem comum, não a felicidade pessoal e, esta é, de certa forma, incompatível: é preciso sacrificar os desejos em nome de um bem maior: o bem comum.

A vida humana não passa de um sonho. Mais de uma pessoa já pensou isso. Pois essa impressão também me acompanha por toda parte. Quando vejo os estreitos limites onde se acham encerradas as faculdades ativas e investigadoras do homem, e como todo o nosso labor visa apenas a satisfazer nossas necessidades, as quais, por sua vez, não têm outro objetivo senão prolongar nossa mesquinha existência; quando verifico que o nosso espírito só pode encontrar tranquilidade, quanto a certos pontos das nossas pesquisas, por meio de uma resignação povoada de sonhos, como um presidiário que adornasse de figuras multicoloridas e luminosas perspectivas as paredes da sua célula... tudo isso, Wilhelm, me faz emudecer. Concentro-me e encontro um mundo em mim mesmo! Mas também aí, é um mundo de pressentimentos e desejos obscuros e não de imagens nítidas e forças vivas. Tudo flutua vagamente nos meus sentidos, e assim, sorrindo e sonhando, prossigo na minha viagem através do mundo.

As crianças – todos os pedagogos eruditos estão de acordo a este respeito – não sabem a razão daquilo que desejam; também os adultos, da mesma forma que as crianças, caminham vacilantes e ao acaso sobre a terra, ignorando, tanto quanto elas, de onde vêm e para onde vão. Não avançam nunca segundo uma orientação segura; deixam-se governar, como as crianças, por meio de biscoitos, pedaços de bolo e vara. E, como agem por essa forma, inconscientemente, parece-me, que se acham subordinados a vida dos sentidos.

Concordo com você (porque já sei que você vai contraditar-me) que os mais felizes são precisamente aqueles que vivem, dia-a-dia, como as crianças, passeando, despindo e vestindo as suas bonecas; aqueles que rondam, respeitosos, em torno da gaveta onde a mamãe guardou os bombons, e quando conseguem agarrar, enfim as gulodices cobiçadas, devoram com sofreguidão e gritam: “Quero mais!” Eis a gente feliz! Também é ditosa a gente que, emprestando nomes pomposos às suas mesquinhas ocupações, e até às suas paixões, conseguem fazê-las passar por gigantescos empreendimento destinados à salvação e prosperidade do gênero humano. (GOETHE, 2003, p. 226 a 228).

Mas não se pode negar que ter uma vida feliz é, razoavelmente fácil: basta viver uma vida egoísta, pautada em seus próprios desejos e ter poder para que sua onipotência particular não seja punida. Algo perfeitamente possível para no mínimo de cinco a quinze por cento do mundo. Muito pouco estatisticamente, mas em números, gente demais; centenas de milhões.

quinta-feira, 27 de março de 2025

A lei como forma

     


     Hegel, um dos mais notáveis filósofos que conseguiram explicar a modernidade e o liberalismo que a cria, viveu numa época em que a maioria dos regimes eram absolutistas, a maioria tirânicos. Ou seja, as decisões do estado eram subjetivas. Uma pessoa poderia morrer por uma birra de um adolescente (um adulto infantilizado ou até uma criança mesmo).  Por isso, Hegel tem uma grande devoção pela burocracia moderna, um conjunto de regras impessoais. Quer dizer, teoricamente ficaríamos livres do despotismo da emoção. É verdade que não ficamos livres da pessoalidade e que nenhuma fase histórica fica livre de resquícios da outra.

    Essa ideia de que regras neutras e objetivas poderiam administrar melhor o mundo é a marca do estado moderno com suas constituições e direitos compartimentados, civil, público, penal, etc. Até mesmo as regras não escritas, que sempre existiram, mas que se tornaram vitais apenas com o surgimento da sociedade civil, o para além do Estado. Nos despotismos, quase tudo ou tudo é Estado.

    Raras pessoas refletiram como Kafka sobre essa realidade. Sobre a lei, a justiça (que abarca o poder judiciário, mas vai muito além dele):

              A teologia negativa ou da ausência, a transcendência da lei, a priori da culpa são temas recorrentes em muitas interpretações de Kafka. Os textos celebres do Processo (e também da Colônia penal e da Muralha da China) pressentem a lei como pura forma vazia e sem conteúdo, cujo objeto permanece irreconhecível; a lei não pode, portanto, enunciar-se a não ser em uma sentença; e a sentença não pode se apreender senão em um castigo. Ninguém conhece o interior da lei. Ninguém sabe o que é a lei no interior da Colônia; e as agulhas da máquina escrevem a sentença no corpo do condenado que não a conhecia, ao mesmo tempo em que elas lhe infligem o suplício. “O homem decifra a sentença com suas chagas”. [...] Kant fez a teoria racional do reviramento, da concepção grega à concepção judaico-cristã da lei: a lei não depende mais de um Bem pré-existente que lhe daria uma matéria, ela é pura forma, da qual depende o bem como tal. É bem o que enuncia a lei, nas condições formais em que ela mesma se enuncia. (DELEUZE, 2004. p. 81 e 82).

     Kafka mostra como a burocracia, as regras escritas ou não escritas ocupam todos os espaços na modernidade. Disciplinam a convivência e permitem a racionalização do Estado e a existência da sociedade civil. Mas acabam se espalhando para todos os espaços, inclusive as relações mais intimas. Principalmente como essa necessidade de ocupar todos os espaços e a dificuldade de se adaptar às particularidades faz com que as regras se tornam vazias tendo apenas forma, fórmula. Como não há conteúdo, não existe argumento pra contraditar

quarta-feira, 26 de março de 2025

As virtudes e os vícios

 


Uma boa discussão sobre virtudes e vícios podemos encontrar em dois discursos famosos: o primeiro de Sidarta Gautama e o outro de Vaclav Havel. Ambos mostram filosoficamente muito bem os problemas e soluções ocasionadas, ou melhor, as origens e consequências dos atos humanos que se referem à virtude ou vício. Bom, vamos ao primeiro deles, o Sermão sobre a Injúria:

E o Bem-Aventurado observou os costumes da sociedade e notou quanta miséria decorre da malícia e de estúpidas ofensas feitas somente para satisfazer a vontade e o amor-próprio. Buda disse: “Se um homem insensatamente faz o mal, eu lhe pagarei com a proteção de meu desinteressado amor; quanto mais mal vem dele, mais bondade sairá de mim; a fragrância do bem sempre vem para mim e o ar nocivo do mal vai para ele”.

Certo homem insensato, sabendo que o Buda seguia o princípio do amor que recomenda revidar o mal com o bem, começou a insultá-lo. Buda permaneceu em silêncio, lamentando sua insensatez. Quando o homem terminou de insultá-lo, Buda chamou-o, dizendo-lhe; “Filho, se um homem declina de aceitar uma dádiva que lhe é feita, a quem esta pertencerá?” E ele respondeu: “Neste caso a dádiva pertencerá ao ofertante”.

“Meu filho, disse Buda, tu me injuriaste, mas eu declino de aceitar teus insultos, rogo-te que os guardes tu mesmo. Não será isso uma fonte de desgosto? Como o eco pertence ao som e a sombra à substância, assim o mal recairá sem falta sobre o doador do mal”. O insultante não respondeu e Buda continuou: “O homem perverso que censura o virtuoso é como aquele que olha para o alto e escarra para o céu; o escarro não mancha o céu, mas recai e suja a sua própria pessoa”.

As palavras de Sidarta Gautama parecem uma profilaxia, uma receita, mas não tem o mesmo poder analítico das palavras do defensor dos direitos humanos e presidente da República Checa, Vaclav Havel. Ele consegue demarcar as origens de muitos vícios e tem a grande virtude de fugir ao maniqueísmo religioso ao qual obviamente nem mesmo o relativista Buda consegue escapar. Vejamos como ele não poupa nada, nem ninguém:

Vivemos sob um ambiente moralmente contaminado. Caímos moralmente doentes, porque costumamos dizer coisas diferentes daquilo que pensamos. Aprendemos a acreditar em nada, a ignorar uns aos outros, a nos importar somente com nós mesmos. Conceitos como amor, amizade, compaixão, humildade ou perdão perderam sua profundidade e dimensões, e para muitos de nós representam somente peculiaridades psicológicas, ou eram iguais às saudações que se perderam no tempo, um pouco ridículo nesta era de computadores e espaçonaves. Somente poucos de nós fomos capazes de levantar a voz e dizer que os poderes não podem ser todo-poderosos, e que as fazendas especiais, que produziram alimentos ecologicamente puros e de alta qualidade somente para eles, deveriam mandar seus produtos para as escolas, orfanatos e hospitais, caso a nossa agricultura não fosse capaz de suprir todo mundo.

Quando falo de um ambiente moralmente contaminado, não estou me referindo somente às pessoas que comem vegetais orgânicos, que não olham pela janela do avião. Estou falando de todos nós. Todos nós nos acostumamos a este sistema totalitário como um fato consumado, ajudando na sua perpetuação. Em outras palavras, somos todos – mais ou menos – responsáveis pela operação desta máquina totalitária; nenhum de nós é somente vítima: somos todos seu criador.

segunda-feira, 24 de março de 2025

Parteiros de ideias

 


Assim como um excesso de individualismo minou a interatividade, o egoísmo dificultou, sobretudo, o aceitamento da pluralidade, conceitos fundamentais de política para a filósofa que melhor traduziu a filosofia política antiga de Aristóteles para a modernidade, a saber, Hannah Arendt. Sem esses dois valores fundamentais, perdemos boa parte de nossa capacidade crítica: não nos interessa entender o outro. Perdemos a capacidade de sermos parteiros e parteiras de ideias. Perdemos a capacidade da Maiêutica, a qual Platão explica muito bem com uma fala de Sócrates, deste modo:

Ora, em todo o resto, a minha arte obstétrica se assemelha à das parteiras, mas difere em uma coisa; ela [...] assiste as almas parturientes e não corpos. E minha maior capacidade é que, através dela, eu consigo discernir seguramente se a alma [...] está parindo fantasmas e mentiras ou alguma coisa vital e real. Pois algo eu tenho em comum com as parteiras: também sou estéril [...] de sabedoria. E a reprovação que tantos já me fizeram, segundo à qual eu interrogo os outros, mas, eu próprio, nunca manifesto meu pensamento sobre nenhuma questão, ignorante que sou, é reprovação muito verdadeira. E a razão é exatamente esta: Deus me leva a agir como obstetra, mas me interdita de gerar. Em mim mesmo, portanto, não sou nada sábio, nem de mim qualquer descoberta sábia que seja geração de minha alma. Entretanto, todos os que gostam de estar comigo, embora alguns deles pareçam inicialmente de todo ignorantes, mais tarde, continuando a frequentar minha companhia, desde que Deus les permita, todos eles extraem disso extraordinário proveito, como eles próprios e os outros podem ver. E está claro que não aprenderam nada de mim, mas de si mesmos encontraram e geraram muitas e belas coisas. (REALE, 1990, p. 99),

 

domingo, 23 de março de 2025

Sobre_viver

 Viver é uma grande aventura

Transcende as explicações

É um quadro por pintar

Um livro por ler

 

Viver é inacabado

É impreciso

E imensamente necessário

 

Viver não tem razão

É um destino óbvio

Ao qual todos se agarram

Quando deveriam se soltar

 

Viver é incerto

É inadiável

E fortemente simbólico

Conto do Théo

  A história de Théo seria uma teogonia? Se a questão se refere a um demiurgo, certamente não. Mas é uma história do todo-poderoso, oniscien...