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sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Conto de Amara

 



Andava perdido uma meia légua quando encontrei Amara. Estava ela no lugar exato. Numa encruzilhada entre hoje, ontem e amanhã. Era uma espécie de totem existencial. Um marco que deixaria profundas cicatrizes em seu corpo, uma breve coceira na alma. De todos que encontrei só ela nunca estava perdida. Tinha achado seu lugar no mundo: à margem de qualquer momento. Era um ser marginal. Não queria estar no palco. Odiava estar no centro de algo. Não queria chamar a atenção de ninguém. E nunca chamava. Nunca repreendia ninguém. Mas ao mesmo tempo era impossível não ser notada: era uma pessoa linda e expressiva.

Nascera em Alexandria. Não naquela segunda mais famosa no sul da Itália, mas no Rio Grande do Norte. Alexandria é uma cidade do  distante 383 quilômetros de Natal. O nome do município, vigente desde 1936, é uma referência a Alexandrina Barreto Ferreira Chaves, mulher de Joaquim Ferreira Chaves, que foi senador e governador do Rio Grande do Norte. Nada referente àquele Alexandre, o pequeno, filho de o breve. Que conquistou meio mundo, mas não conseguia sair da frente de Diogenes tampando seu sol. Não que o Sol fosse de Diogenes. O Cínico não desejava ter nada. Nem sua barrica, usada apenas pra cobrir sua nudez.

 Alguns diziam que era meio coxinha da perna esquerda. Seu instrutor físico dizia que era um mero cacoete, um tique. A inveja preenchia o mundo. Aquele diminuto ser devia ter alguns defeitos inomináveis para compensar aquela cômoda falta de qualidades. Todos, inclusive o narrador invejava sua perfeita mediocridade. Era o ser mais comum que alguém poderia encontrar. Qualquer ser se deliciaria no tête-à-tête com ela. Não lhe faltava lugares comuns ao mesmo tempo que surpreendia com sua fluidez ao discutir desde a vida das formigas à crise nuclear na Argélia.

Sua respiração tinha um ritmo marcadamente musical. Poucas aves ressonavam tão belo. Andava as vezes como se dançasse uma valsa outras vezes um bolero. Não era dada a improvisação, embora surpreendesse a todos com suas singelas mudanças de direção. Observar uma bailarina cruzar uma rua não é nada tedioso, mas os carros não tem paciência. Um dia talvez apareça em uma central automotiva de jogos, mas não para o motorista, esse ser tenso.

O mundo precisa de um tempo para apreciar a beleza. Mas todos estão muito atarefados com seus ofícios, divertimentos e devaneios. Agora até o ócio é produtivo. Postergar causa ansiedade, pois a lista de tarefas é infindável e constantemente renovada. Amara é perfeita. Ela está fora disso. Amara ama uma rede. Não pretende fazer mais do que é necessário. Ter mais do que tem. Apreciar o que não pode ser apreciado.

Amara anda pelo mundo. Mora onde é preciso e faz o estritamente indispensável. Ela sempre está no lugar certo, mas apenas pelo tempo necessário. Eu e você gostamos que Amara esteja lá. Mas não conhecemos Amara. Não gostamos ou desgostamos de Amara e Amara ama isso. Amara adora ser útil. Sabe que é apreciada pela sua prestatividade e beleza. Mas não quer permanecer. Constrangesse-se com os elogios.

Ela não deseja estar. Adora a estrada. Permanecer implica juízos. Amara não quer ser julgada. Odeia que pensem algo dela. Todas as melhores considerações do mundo não valem sua privacidade. Então ela decidiu sair da vida apenas o necessário. Mostrar apenas o seu lado privilegiado e esconder seus defeitos.

Amara anda pelo mundo sem se deter nos obstáculos sendo das coisas mais belas e perfeitas que você pode ver. O que a denigre está contido, armazenado fora de disponibilidade. Amara é um personagem de Amara. Amara mesmo é amável. Não precisa de um personagem. Mas porque libertar suas falhas pra julgamento? Porque expor seus erros? Não que se importe com isso. Amara é livre pelo mundo. Não se prende a julgamentos. Mas porque deixar porem-na numa caixa?

Ela está onde deseja estar. Faz o que precisa. Só isso e no que lhe sobra vive. Talvez só Amara viva. Fico feliz por gastar esses quinze minutos de minha vida para falar de Amara. Amara não. É exatamente isso.

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